Na semana passada escrevi aqui que esperava que esta nova vaga da pandemia não nos levasse a assistir de novo ao estabelecimento de restrições ou mesmo suspensões dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, através de simples resoluções do Conselho de Ministros, meros regulamentos do Governo, que nem sequer são sujeitos a promulgação pelo Presidente da República. Lamentavelmente, no entanto, tal veio novamente a ocorrer através da Resolução do Conselho de Ministros 157/2021, publicada no Diário da República de 27 de Novembro, para entrar em vigor amanhã, dia 1 de Dezembro, que declara a situação de calamidade no âmbito da pandemia da doença covid-19.
Antes de tudo é preciso salientar que a declaração da situação de calamidade não se encontra prevista constitucionalmente, uma vez que o art. 19º, nº1, da Constituição refere que “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição”. Ora, precisamente, uma das situações que justifica que o estado de emergência seja decretado é a “calamidade pública” (art. 19º, nº2, da Constituição).
O Governo invoca para decretar esta situação de calamidade o disposto na Lei de Bases da Protecção Civil (arts. 19º e ss. da Lei 27/2006, de 3 de Julho), mas é muito duvidoso que esta Lei permita o que é determinado pela referida Resolução do Conselho de Ministros. Antes de tudo, há que salientar que, nos termos do artigo 9º, nº3, dessa Lei “a situação de calamidade pode ser declarada quando, face à ocorrência ou perigo de ocorrência de algum ou alguns dos acontecimentos referidos no artigo 3.º, e à sua previsível intensidade, é reconhecida a necessidade de adoptar medidas de caráter excepcional destinadas a prevenir, reagir ou repor a normalidade das condições de vida nas áreas atingidas pelos seus efeitos”. Ora, os acontecimentos referidos no art. 3º são o acidente grave e a catástrofe, sendo esta última definida no nº2, como “o acidente grave ou a série de acidentes graves susceptíveis de provocarem elevados prejuízos materiais e, eventualmente, vítimas, afectando intensamente as condições de vida e o tecido socioeconómico em áreas ou na totalidade do território nacional”. Estamos assim a falar de acidentes e não de pandemias, sendo de salientar que em lugar algum da Resolução do Conselho de Ministros 157/2021 se fala em acidente grave ou catástrofe, quando são esses os pressupostos da declaração da situação de calamidade.
Para além disso, deve salientar-se que, nos termos do art. 8º, nº3, da Lei 27/2006, “a declaração de situação de contingência ou de situação de calamidade pressupõe, numa lógica de subsidiariedade, a existência prévia dos actos correspondentes aos patamares precedentes, salvo na ocorrência de fenómenos cuja gravidade e extensão justifiquem e determinem a declaração imediata de um dos patamares superiores”. Daqui resulta que, salvo perante a ocorrência de fenómenos inesperados, a declaração da situação de calamidade pressupõe a declaração prévia da situação de contingência. Ora, Portugal esteve em mera situação de alerta até ao dia de hoje e amanhã passará a estar em situação de calamidade sem passar pela situação de contingência, o que contraria essa disposição da Lei de Bases da Protecção Civil.
Acresce que, para além do seu duvidoso enquadramento na lei, as medidas tomadas pela Resolução 157/2021 correspondem na prática a um verdadeiro estado de excepção. O problema é que vão muito mais longe do que a própria Constituição permite em relação ao estado de emergência. Basta ver que o art. 172º da Constituição proíbe a dissolução do Parlamento na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência, mas pelos vistos nada vai impedir o Presidente da República de dissolver o Parlamento na vigência deste estado de excepção atípico, apelidado de situação de calamidade. Por outro lado, o estado de emergência tem que ser renovado a cada quinze dias (art. 19º, nº5 da Constituição) enquanto que esta declaração de situação de calamidade vai durar até 20 de Março de 2022, abrangendo um período altamente sensível como as eleições legislativas e o processo de formação do novo Governo.
Confirmam-se assim totalmente as minhas previsões de que esta nova vaga da pandemia pode ser altamente perigosa para o nosso Estado de Direito.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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