Stephen Sondheim. Morreu o grande relojoeiro do musical americano

Stephen Sondheim. Morreu o grande relojoeiro do musical americano


Esse tic-tac que nos faz ouvir a alma numa letra de canção, foi esse o grande labor de Stephen Sondheim, um génio das palavras que, sem ter nunca esmagado as audiências, afinou como ninguém a experiência humana ao ritmo da música. 


Por uma vez, podemos deixar que o comedimento tire folga. Na morte do mais reverenciado e influente compositor e letrista da Broadway, os epítetos rasgaram as vestes, num incontido e apesar de tudo cerimonioso esforço de homenagem, quando o mundo se despedia de Stephen Sondheim. Não há muitas ocasiões em que, perante a morte de um artista, se oiça aquele uivo unânime a subir das entranhas do silêncio (uma imagem de Nelson Rodrigues), e, por essa razão, é importante anotar quando acontece. O jornal (The New York Times) que mais do que ditar a sombra reflecte o próprio rosto da América, abriu o catálogo do elogio e, por uma vez, fez um uso desbragado de alguns dos mais ribombantes adjectivos, qualificando Sondheim como um “titã do musical americano”, e isto numa publicação que prima por aquele impessoal tom informativo que causa um desacerto em quem lê, pela incapacidade de os factos, quando são absurdos, espantosos ou chocantes, organizarem minimamente o sentimento que os torne claros para o leitor. Aí estava a fulgurante excepção inequívoca, o reconhecimento enfático do percurso extraordinário do homem que, com um gozo acriançado, levou mais longe que ninguém as suas explorações no que toca a fazer da linguagem um mecanismo hábil tanto para cercar a beleza nos contornos que dava a questões de grande e complexidade, e isto num género imensamente popular que, de algum modo, se tornou sinónimo da própria emoção que anima a consciência americana. Para o Times não há a menor dúvida de que ele foi a grande figura da Broadway na segunda metade do século XX, tendo as suas letras e músicas elevado e até redefinido a fasquia deste género artístico.

A notícia da sua morte, na passada sexta-feira, aos 91 anos, na sua residência em Roxbury, no Connecticut, foi dada pelo advogado e amigo F. Richard Pappas, que adiantou que foi algo inesperado, uma morte súbita. Na entrevista que deu dias antes àquele jornal, além de uma entorse no tornozelo, que lhe causava dores ao andar, Sondheim dizia estar de boa saúde, e mostrou-se até ansioso por revelar algumas músicas em que estava a trabalhar para um futuro musical com o título “Fat Chance!” (Uma hipótese improvável). Michael Paulson, o jornalista que conduziu a entrevista, disse que, apesar da fragilidade do seu estado físico, nada indicava que cinco dias depois se apagaria de vez aquela luz que se tornou um farol na história do teatro musical. “Ele estava todo ali, animado, lúcido, exprimindo as suas opiniões fortes, com o seu estilo belicoso mas brincalhão, e cheio de prazer por levantar o véu sobre aquele que seria o seu derradeiro musical, há anos em gestação.” E quando Paulson lhe pergunta porque é que não se limita a descansar sobre os seus louros, ele diz que está velho demais para andar por aí, para viajar e participar em cerimónias, e que, por isso, não tinha mais nada que fazer com o tempo que lhe restava senão ir entre lampejos sonhando com uma obra de despedida.

É essa a defesa da escrita, essa disciplina lenta que serve bem a um artista que se demarcava pelo rigor e empenho intelectual, que nunca se contentou em apurar uma fórmula de sucesso, mas rasgou sempre novos caminhos, o que levou a que a sua relação com as audiências nem sempre fosse a melhor. Com as suas letras farejando formas complexas de transmitir o tumulto interior das personagens, muitas vezes mergulhando nessas profundidades de alma em que as emoções se bifurcam, num regime de ambivalência, angústia e crise, muitas vezes a ambição artística levava a melhor sobre o lado sedutor dos musicais, que devem muito do seu encanto a essa capacidade de ver um sentimento ser carregado às costas de uma multidão. O que Sondheim fez, segundo Michael Schulman, crítico da New Yorker, foi levar aquela forma artística da adolescência para a maturidade, infundindo-a de elementos que até ali a Broadway não tinha ousado explorar. Não era apenas a forma como abordava temas sérios, mas também a experimentação melódica, a capacidade de introduzir emoções que não se explicam a si mesmas. Assim, se os seus espectáculos foram quase sempre êxitos de crítica, quase nunca alcançaram um grande êxito de público. Ainda que todos o admirassem, a sua reputação era a de alguém que não compunha canções dessas que, depois do espectáculo, nos seguem até casa, tomam conta do ouvido e levam-nos ao embaraço de, dias depois, ainda andarmos a cantarolar pedaços, como rouxinóis desarticulados da restante paisagem. Há boca pequena dizia-se que ele estava a tentar trazer uma aura de respeitabilidade ao musical que fazia de uma festa um velório.

Assim, quando alguma das suas peças estreava na Broadway, as audiências iam mais intrigadas, tentar perceber que raio se iria abater sobre o palco, ao invés de irem já a cavalo numa certa efusividade, esperando aquela força efervescente e imensamente animadora das narrativas que não dão trabalho a ninguém e simplesmente fritam o coração na sua própria banha. As suas histórias estavam longe de ser fáceis de seguir, e Sondheim não recorria aos artíficios e truques que os seus predecessores sabiam garantir uma audiência bebêda de emoção e berrando a sua glória. E talvez o maior dos seus pecados fosse não ceder à ditadura estética que manda que um musical seja um espectáculo cheio de opulência, com o registo melodramático a ser exacerbado pelas canções. Foi esse o tom que imperou nas décadas de 1980-90, quando o britânico Andrew Lloyd Webber chegou ao Novo Mundo para dominar os palcos com sessões ininterruptas de super-êxitos como “Cats” ou “O Fantasma da Ópera”, ou também “Os Miseráveis” e “Miss Saigon” de Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, que abriram caminho para o domínio das produções da Disney. 

Dos musicais em que Sondheim escreveu não apenas as letras mas compôs as músicas, foi o primeiro, “Forum”, aquele que teve uma temporada mais longa, com 964 actuações. Seguiu-se “Anyone Can Whistle”, e este só aguentou nove actuações. Houve outros que não tiveram muito mais sorte, e mesmo os que atraíram mais público dificilmente disputaram a coroa. A maioria dos seus espectáculos na Broadway, na sua primeira incursão, nem os custos de produção pagaram. Mas Sondheim defendia-se do sucesso, e vincava que foi consciente o seu esforço para nunca fazer a mesma coisa duas vezes. Numa entrevista que deu ao Times em 2000, quando fez 70 anos, disse isto: “Se corres em campo aberto, não te conseguem atingir com tantos tomates. E é claro que me sinto alheado do mainstream porque o que aconteceu aos musicais é que foram açambarcados pelas grandes produções corporativas e que aplanam sempre o terreno. Assim, eu estou fora de moda, estou fora de prazo. Correr riscos não passa apenas por ser diferente. É uma questão de defender a nossa visão de como o espectáculo deveria ser feito.”

E a noção de espectáculo que Sondheim defendia passava pela articulação minuciosa das letras com a música, de forma a que ambas se reforçassem. Desde os seus primeiros sucessos no final dos anos 1950, quando escreveu as letras de West Side Story e Gypsy, até aos anos 1990, quando escreveu as letras de dois audaciosos musicais, Assassins e Passion, Sondheim foi uma força teatral "implacavelmente inovadora", destaca o The New York Times. Em Assassins, por exemplo, ousou dar voz a homens e mulheres que mataram ou tentaram matar presidentes norte-americanos. E ainda que se tenha guiado pelo gosto de surpreender, pelo entusiasmo de levar ao limite a sua versatilidade, as músicas tinham uma assinatura que as tornava sempre reconhecíveis como suas. Explorando a vida intricada das coisas simples, Sondheim variava a escala e traía todas as expectativas, podendo escreveu solilóquios bastante densos, duetos em tom aberto, leve, conversacional e trios e quartetos tagarelas. Nunca se cansou de variar registos seja brincando no tempo e com a forma. E para “Night Music”, como lembra o Times, “escreveu uma valsa, duas sarabandas, duas mazurcas, uma polonesa, um étude e uma giga – quase uma partitura inteira escrita em permutações em compasso ternário”.

As décadas de 1970 e 1980 foram o seu período mais produtivo, onde criou uma série de obras surpreendentemente originais e variadas como Company (1970), Follies (1971), A Little Night Music (1973), Pacific Aberturas (1976), Sweeney Todd (1979), Merrily We Roll Along (1981), Sunday in the Park With George (1984) e Into the Woods (1987). E durante todo esse tempo arrecadou vários prémios, incluindo nove Tonys, um Óscar e oito Grammys, além de um Pulitzer e outras condecorações.

Numa crónica no Público, Miguel Esteves Cardoso apontou alguns defeitos à escrita de Sondheim, notando como ele poia ser rebuscado. “Trabalhava excessivamente as palavras. Tanto as polia que ficava só o brilho. Faltava-lhe calor, frivolidade, emoção, empatia, curiosidade, compreensão e leveza.” Antes de passar aos elogios, quando reconhece que, por outro lado, as suas qualidades eram estonteantes (“era ferozmente original, inteligente, íntegro, inovador, irrequieto, espirituoso e tão devastadoramente engraçado que se diria que tinha um segundo cérebro só para o sentido de humor”), o cronista português consegue ainda ser bem mais acutilante nos ataques: “Sofria de frieza observacional, de distância, de lascívia crítica, de logorreia, de arrogância e de paternalismo. Parecia que estava sempre fechado no laboratório, a medir os movimentos dos estúpidos dos ratinhos e a compor quadras cruéis sobre eles, mais cruéis ainda por serem tão bem observadas, tão verdadeiras.
Terá sido um psicopata? Um narcisista? Uma prima donna? Era mesquinho e rancoroso com os antecessores mais ilustres do teatro musical, sobretudo com os compositores, a quem invejava, com toda a razão, a facilidade melódica. Sondheim era um compositor assim-assim, muito a metro: usava a música para fazer passar as letras, essas sim geniais.”

As letras eram geniais, nisso todos estão de acordo. E se era através do uso das palavras que Sondheim exerceu uma virtude incomparável, Michael Schulman diz-nos que esse domínio elevou as suas melodias ao melhor que foi feito em qualquer género literário. “As suas personagens estavam imbuídas de uma inteligência panorâmica, uma auto-consciência que se revelava por meio de deslumbrantes rimas internas que causavam a sensação de se assistir a grandes proezas atléticas – não admira que ele fizesse uma perninha criando crípticas palavras cruzadas.”

Um apaixonado por jogos de palavras, elaborando complicados enigmas da sua própria invenção, Sondheim exerceu esse fascínio de relojoeiro na articulação verbal colaborando com dolorosos enigmas numa série de palavras cruzadas que foram publicadas no final da década de 1960 nas páginas da revista New York. E embora preferisse ser encarado não como um escritor de canções mas como um dramaturgo que escrevia peças bastante curtas e que se servia da música para tornar mais pungente a sua mensagem, ainda que fosse um inveterado solitário, preferindo trabalhar pela noite dentro, muitas vezes reconheceu que a colaboração foi essencial para o libertar da sua tendência para procrastinar, e era esse o aspecto que mais estimava no trabalho do teatro, o ser um esforço colectivo.