Chamam-se altas proteladas por motivos sociais. Na prática, significa que uma pessoa que podia ter alta do hospital não tem para onde ir, pelo que poderia ficar em risco, o que leva os serviços sociais a intervir. Acontece porque não há vaga num lar com apoio da Segurança Social ou na Rede Nacional de Cuidados Continuados, ou porque a família não tem condições para levar para casa o seu parente. Ou não consegue – ou recusa – pagar a despesa que lhe cabe, mesmo quando existe uma reforma, que continua a receber apesar de o idoso estar no hospital. Ou porque não há família ou porque há um processo de tutela na justiça que se arrasta. Ficam a viver nos hospitais não um dia, mas vários, em alguns casos meses, noutros mais de um ano.
Há duas semanas, um recorde de internamentos sociais no Amadora-Sintra foi um dos motivos para o hospital fechar a urgência a encaminhamentos do INEM e bombeiros: não havia capacidade para continuar a internar doentes em enfermaria se tal fosse necessário. Nessa altura, havia 17 doentes internados por motivos sociais no hospital, além de 20 em camas pagas pela unidade num lar privado para não entupir ainda mais o internamento. Na altura, o Nascer do SOL pediu um levantamento destes casos à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, não tendo tido resposta, nem sobre a situação atual na antecâmara do pico de procura no inverno, nem sobre que medidas estavam a ser preparadas.
Partimos então para um retrato numa amostra de hospitais, cobrindo não só os maiores de Lisboa mas as unidades de maior dimensão no resto do país. De 15 contactados, de um universo de 42 hospitais e centros hospitalares do SNS, nove aceitaram fazer o ponto de situação e uma análise sobre o impacto dos internamentos sociais no quotidiano. Interpelados pelo Nascer do SOL, apresentam também propostas sobre o que é preciso rever e mudar, que se publicam nesta edição. Na mesma semana, o Instituto de Segurança Social anunciou que cerca de uma centena de pessoas iriam ser retiradas dos hospitais, permanecendo 130, mas só nos hospitais contactados pelo Nascer do SOL, que deram resposta entre 18 de novembro e 25 de novembro, contam-se mais de 200 casos e incluem-se os doentes que estãoà guarda dos hospitais e não da Segurança Social mesmo que noutras instituições, como lares privados onde os hospitais passaram a contratar camas para diminuir a pressão a expensas do orçamento que têm para tratar doentes. Só aí, a despesa ascende a centenas de milhares de euros, mais o custo de ter camas hospitalares ocupadas por doentes que deviam estar noutros sítios.
A pressão dos casos e a impotência para os resolver
Das unidades contactadas, o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central – que inclui os hospitais São José, Dona Estefânia, Hospital Santa Marta, Hospital Santo António dos Capuchos e Maternidade Dr. Alfredo da Costa – apresenta os números mais elevados. Atualmente, revelou ao Nascer do SOL, tem registado uma média diária de 70 doentes internados com alta protelada, cerca de 30 a aguardar uma resposta do foro social e 40 uma vaga na Rede Nacional de Cuidados Continuados.
«Na base destes casos estão situações de várias ordens, habitacionais, financeiras e familiares», salienta a administração, destacando o caso de um doente que tem alta clínica há praticamente um ano e que «se mantém internada uma vez que a família alega não poder pagar a comparticipação do internamento na Rede Nacional de Cuidados Continuados, que corresponde ao montante apurado pela Segurança Social de acordo com a condição de recursos».
Neste caso, a alta clínica poderia ter sido dada a 9 de dezembro de 2020, fará um ano dentro de pouco mais de uma semana.
«O Centro Hospitalar não tem instrumentos para resolver a situação, restando-lhe apenas continuar a prestar os cuidados de que o utente necessita, mas que poderiam estar a ser assegurados noutro nível de cuidados», assume o hospital, sublinhando que esta, que é uma preocupação de todos dias, se agrava quando se vive um alerta permanente por causa da evolução da pandemia, a emergência da gripe e, nas últimas semanas, uma procura maior à urgência de doentes com quadros mais graves e complexos, que levam a maiores necessidades de internamento. Para aliviar a pressão, o centro hospitalar tem 30 camas de cuidados continuados contratadas a sua expensas, que representam um encargo mensal de 99.500 euros para a unidade.
A mesma solução é encontrada noutros hospitais de Lisboa. No Centro Hospitalar de Lisboa Norte, que inclui Santa Maria e Pulido Valente, havia à data da resposta ao Nascer do SOL 19 pessoas com alta protelada por motivo social, 15 enviadas para camas de retaguarda de 64 que o hospital tem contratualizadas para estas situações, de forma a não congestionar o internamento. Quando estão todas ocupadas, o encargo é de mais de 5 mil euros por dia. E é numa destas camas que se encontra o caso mais antigo: uma idosa que podia ter tido alta hospitalar em março de 2020. «Aguarda que o acompanhante, nomeado pelo Ministério Público, tome as diligências necessárias para a sua transferência para um lar», explica o hospital.
No Amadora-Sintra, registavam-se no final da semana passada 45 internamentos sociais, mas já após serem públicas as dificuldades a unidade recebeu a indicação da Segurança Social de que seria dada resposta urgente a 13, oito internados no hospital e cinco que estavam em camas contratadas pelo hospital a um lar privado. Passaram assim a 32.
O caso mais antigo entrou no hospital em abril, teve alta clínica em junho mas ainda não foi encontrada uma solução, respondeu ao Nascer do SOL o hospital, traçando um perfil comum ao traçado pelos restantes hospitais. «São sobretudo idosos, com dependência associada, alguns sem familiares diretos, outros com família que refere indisponibilidade por motivos laborais ou exaustão. Mesmo existindo na comunidade resposta de apoio domiciliário, esta mostra-se insuficiente face às necessidades de apoio social identificadas».
Os doentes que ficam por tratar
Saindo de Lisboa para a outra margem do Tejo, no Hospital Garcia de Orta, em Almada, estavam internados no início da semana 29 doentes que já poderiam ter alta, a que acrescem mais 23 em camas contratualizadas fora do hospital, num total de 52 casos sociais. «Acrescem ainda sete doentes da área da saúde mental que se encontram em camas contratualizadas numa unidade exterior», complementa o hospital, sendo este um problema também invocado por mais do que uma unidade: a falta de resposta de retaguarda não só para idosos mas para pessoas com problemas do foro mental em cuidados continuados.
Fazendo contas ao impacto, o Garcia de Orta estima que as camas ocupadas por altas proteladas entre janeiro e setembro poderiam ter dado para internar 612 doentes, pelo que este não é um problema apenas do inverno. «É uma situação que motiva preocupação e limita a capacidade do hospital em qualquer altura do ano», afirma a administração. As camas contratualizadas fora do hospital, 25 de cuidados continuados e 10 na tipologia mental, representam uma despesa que só nos primeiros oito meses do ano é superior a 500 mil euros.
A Norte, o mesmo cenário
Subindo para Norte, repete-se o mesmo quadro, com alguns hospitais a registarem mais pressão destes casos este ano do que em 2020. É o caso do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, que salienta as consequências «nefastas» para quem fica a viver nos hospitais e para a unidade, nos recursos técnicos que são gastos em pessoas sem necessidade de cuidados hospitalares, «comprometendo a celeridade da resposta a outros doentes com efetiva necessidade de internamento». Havia à data de resposta 17 doentes internados no hospital que já poderiam ter tido alta, o mais antigo com alta protelada há 173 dias, quase seis meses.
Se em Gaia não há ainda camas contratadas fora, no caso do Hospital Braga a decisão foi tomada este mês.
Atualmente, há 24 internamentos sociais, quatro por motivos sociais e 24 aguardavam no início da semana vaga na Rede Nacional de Cuidados Continuados. E a partir de novembro passa a haver 20 camas contratualizadas no exterior. «Esta medida libertará espaço de internamento indispensável de forma eficaz aos doentes que nos procuram, principalmente numa época sazonal onde se torna expectável um aumento de internamentos», dizem.
A questão é se esta solução de recurso ou a libertação de camas em situações mais críticas chega e para os hospitais ouvidos pelo Nascer do SOL, que deixam propostas concretas (ver páginas seguintes), a resposta é que não.
No São João, no Porto, havia a 19 de novembro 25 doentes com alta clínica que se mantinham internados por motivos sociais. Com a intervenção da Segurança Social esta semana, passaram a ser 11. «A pronta resposta da Segurança Social no auge da pandemia contribui para uma melhor eficácia organizacional. O ideal seria que fora dos períodos de picos de pandemia houvesse uma continuidade de resposta célere de modo a minimizar o tempo de espera», diz Alexandra Duarte, diretora de serviço de Ação Social do Centro Hospitalar Universitário de São João. «Continuamos a expressar preocupação face à uma eventual tendência evolutiva da falta de resposta, que se prevê que venha a agravar no período de Inverno, se não houver inversão do cenário».
Até 19 de novembro, a média dos internamentos sociais era de 148 dias e a pessoa há mais tempo nesta situação estava no hospital há 277 dias. Atualmente, o caso mais longo tem 226 dias de alta protelada, quase oito meses. Por dia, são custos superiores a 400 euros e «a impossibilidade de utilizar essas camas para resolver problemas de doentes agudos», nota a responsável, além do risco de contraírem infeções hospitalares e a noção «de que o ambiente hospitalar não é seguramente o mais humanizado para pessoas que precisam fundamentalmente de cuidados sociais».
Dos nove hospitais que facultaram informação sobre esta realidade, apenas o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra disse não ter uma situação preocupante do ponto de vista da pressão. Mas os dois únicos casos de internamento social que tem completam o retrato das situações delicadas em que os hospitais têm de intervir: são dois recém-nascidos com alta adiada por motivos sociais, a aguardar colocação em estruturas de acolhimento.