“Este pedido vem na sequência da possibilidade de inclusão e adaptação das condições de trabalho para as pessoas com deficiência e conciliação entre a vida profissional e pessoal, alinhado com indicações espelhadas no ‘Livro Verde sobre o futuro do trabalho’ e políticas públicas”. É este o primeiro parágrafo de requerimento que Mariana (nome fictício) enviou às chefias do instituto público em que trabalha, no distrito de Setúbal, para continuar em regime de teletrabalho. No entanto, a mulher de 43 anos, que sofre de uma doença neuromuscular degenerativa e possui, desde 2005, um atestado médico de incapacidade multiuso que comprova um grau de incapacidade de 60%, teve de regressar ao desempenho de funções de modo presencial. E pondera pôr fim à vida se a situação não se alterar.
“Tenho algumas dificuldades motoras, principalmente, nos membros inferiores. Faço a minha vida normalmente, mas o esforço e a fadiga agravam-se mais com o stress e o esforço. Moro a cerca de 30km do trabalho e desloco-me num carro com mudanças automáticas. Desde o início da pandemia, como pertenço aos tais grupos de risco, independentemente de quando o meu instituto teve todos os trabalhadores em teletrabalho, antes disso já tinha usufruído deste regime até ao momento em que fui vacinada”, explica ao i a mulher que não esconde a perplexidade ao revelar que “a médica da Medicina do Trabalho disse que não se justificava continuar em teletrabalho”.
Mas não é isto que a legislação nos diz, na medida em que o teletrabalho já não é obrigatório na maioria das situações. Porém, existem as seguintes exceções: os trabalhadores que, mediante certificação médica, estão abrangidos pelo regime excecional de proteção de imunodeprimidos e doentes crónicos; aqueles que possuem deficiência, com grau de incapacidade igual ou superior a 60%; e ainda os que têm filhos ou outros dependentes a cargo que tenham uma idade inferior a 12 anos, ou, independentemente da idade, padeçam de deficiência ou doença crónica, que, de acordo com as autoridades de saúde, sejam considerados doentes de risco e que estejam impossibilitados de assistir ao funcionamento das aulas presenciais.
“Quando me disseram que já não estava abrangida pela legislação, fiz um requerimento ao nosso presidente, expus a minha situação e a Medicina do Trabalho já tinha conhecimento desta. Solicitei continuar em teletrabalho. O documento foi para os recursos humanos no início de outubro. Em setembro, toda a gente regressou ao trabalho presencial, mas eu ainda estava de férias e só fui a meio do mês”, adianta a funcionária que se dedica à organização de eventos e formações que têm sido realizados virtualmente. Todavia, os recursos humanos encaminharam o requerimento para o diretor de departamento de Mariana e este disse que as funções dela não se adequavam ao teletrabalho.
“Estima-se que, em Portugal, existam alguns milhares de doentes neuromusculares. Na sua maioria, estas doenças não têm cura e afetam gravemente a capacidade motora dos seus portadores, impondo-lhes uma drástica perda de autonomia. Estes doentes dependem totalmente de tecnologias de apoio e da ajuda de terceiros para superarem as dificuldades diárias”, lê-se no site oficial da Associação Portuguesa de Neuromusculares. Mariana é um destes rostos sem nome e recusa ser apenas “mais uma” para a estatística. Neste caso, em contas que ainda não foram feitas. “Nunca tinha estado em teletrabalho e não tinha consciência daquilo que era e como funcionava. A minha qualidade de vida melhorou, pois não tinha de conduzir e não andava ao frio nem à chuva”.
Assim sendo, propôs o regime híbrido, que combina o regime presencial com o teletrabalho e garante mais autonomia aos trabalhadores, que podem escolher como, quando e onde concretizam as tarefas que têm em mãos. “Trabalharia em casa quando o trabalho permitisse e isso não invalidaria que me deslocasse, mas minimizaria a questão das deslocações diárias. Tenho muita dificuldade no trânsito, no pára-arranca. O meu diretor deliberou que as minhas funções não se adequavam e, a partir daí, o meu presidente disse que não podia fazer nada. Voltei à médica, ela disse que ia falar com os recursos humanos e, até agora, tenho ido trabalhar presencialmente. Estou na esperança de que saia alguma legislação. Vi uma luzinha ao fundo do túnel com o teletrabalho e agora tiraram-me o tapete debaixo dos pés”, confessa, entre lágrimas, aquela que gostaria de continuar a pertencer aos 20,1% dos trabalhadores em teletrabalho, segundo dados veiculados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
Há um ano a proporção era de 31,1% e se, atualmente, 17,5% justificam o teletrabalho com a pandemia, no ano em que surgiu o novo coronavírus essa proporção correspondia a 29,6%. “De repente, disseram-me que não há esta hipótese e passou-me tudo pela cabeça, inclusivamente, suicidar-me. Não sou seguida por psicologia nem psiquiatria, mas tomo um ansiolítico. Já tomo tantos medicamentos que pensar em tomar mais, principalmente da área do foro psiquiátrico… não é algo que queira”, admite, constatando que é o filho que lhe dá alento para continuar a lutar, até porque não partilha esta ideação suicida com o pai da criança e seu companheiro. “Vou gerindo a situação, mas se calhar um dia vou ter de ser medicada. Nos dias em que as dores são piores, penso em matar-me. Está tudo bem entre mim e o meu companheiro, eu é que não quero verbalizar aquilo em que penso. Não paro de pensar que houve uma decisão superior, o teletrabalho não foi autorizado e tenho de ir ao instituto todos os dias. Sinto-me muito cansada e desmotivada”.
O relatório “Uma Nova Referência para os Sistemas de Saúde Mental”, veiculado em junho pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), analisou a forma como os países estão a desenvolver políticas e serviços importantes para a área da saúde mental e concluiu que a doença mental tem custos económicos equivalentes a mais de 4,2% do PIB, entre custos diretos de tratamento e custos indiretos relativos ao emprego e à produtividade. Os autores do estudo defenderam que “pelo menos uma parte” destes gastos poderia ser evitada. Confrontada com estes dados, Mariana deixa claro que acredita que, em Portugal, naquilo que diz respeito ao teletrabalho, os funcionários que dele necessitam poderiam sentir-se menos deprimidos se a sua permanência em casa continuasse a ser encarada com normalidade mesmo em fases menos agudas da pandemia e quando esta terminar. Isto porque, em conversa com os colegas, já entendeu que não é a única que sente falta de conjugar as vidas pessoal e laboral com mais leveza. “Quando falamos ao almoço, oiço as duas versões: as pessoas que têm os filhos mais crescidos e moram perto do trabalho, preferem ir para lá todos os dias. Quem tem filhos pequenos e/ou problemas de saúde, quer ficar em casa”, refere, apontando que frisou a necessidade de conciliação das duas vertentes anteriormente mencionadas no requerimento que entregou e ao qual o i teve acesso.
“O objetivo é desempenhar a minha atividade laboral em condições que permitam a conciliação do meu trabalho e funções profissionais com a qualidade de saúde e de vida familiar e pessoal, limitações e fraqueza física, por forma a evitar/retardar um agravamento degenerativo e progressivo da minha comorbidade e dificuldades específicas que são suscetíveis de limitar e dificultar a minha atividade diária, nomeadamente motoras, perturbações da marcha e equilíbrio, de deslocações diárias e não perder autonomia e inclusão na vida profissional e também na esperança de diminuir as minhas dores e fraqueza crónicas e limitações diárias. E que a possível melhoria de saúde física e psicológica possa influenciar positivamente o meu desempenho profissional”, elucida a mulher que, em anexo, enviou seis documentos e relatórios médicos das especialidades em que é acompanhada periodicamente, sendo que estes comprovam o estado de saúde em que se encontra.
“Declaro que disponho de todo o equipamento e condições para trabalhar à distância e que continuarei a corresponder de forma atempada e adequada a todas as solicitações e necessidades do serviço. Mantenho-me disponível para todas as deslocações e trabalho presencial solicitado e adequado aos objetivos e funções do meu posto de trabalho, mantendo o sentido de responsabilidade, disponibilidade e compromisso, tal como foi verificado no decorrer do período excecional de proteção aos doentes de risco durante a pandemia”. Este ponto é especialmente relevante, pois, de acordo com o INE, no relatório dado a conhecer ao público há dois dias, 87,3% das famílias portuguesas têm acesso à internet em banda larga em casa, isto é, oito em cada dez portugueses (82,3%) utilizam internet.
“Quando o meu presidente me chamou para dizer que o requerimento foi indeferido, disse que ia aguentando até conseguir. Quando não for possível, ponho baixa. O departamento de recursos humanos disse que podia reformar-me ou mudar de funções. Nunca tinha exposto tão claramente os meus problemas de saúde, só a médica da Medicina do Trabalho é que sabia. Sempre achei que seria autorizado”, lamenta Mariana, salientando que “os programas de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho pressupõem que estas tenham emprego e não que realizem funções em determinados sítios”. O que, na sua ótica, faz todo o sentido: “A adaptação do local de trabalho não pode ser estarmos na nossa residência? A única coisa que pondero, se não conseguir, é trabalhar mais perto de casa. Não vou sair da função pública, sou técnica superior. No sítio onde vivo, não há muitas hipóteses. Já mandei candidaturas espontâneas, vejo a bolsa de emprego pública… Estou atenta, mas não é assim tão simples. Não disse ao meu presidente e aos outros dirigentes que pensava em suicidar-me diretamente, mas isso ficou espelhado”.
“Implementem o teletrabalho em Portugal” “Eu sou feliz em teletrabalho. Mesmo na altura em que era obrigatório, fui várias vezes para o escritório, obrigaram-me. E as minhas funções podiam ser cumpridas a partir de casa. Para estar no escritório às 8h, tenho de acordar às 5h30 para apanhar transportes. Para mim, o teletrabalho devia ser um direito assistido para mães, como eu, com duas filhas e pouca ajuda”, relata Filipa (nome fictício) que regressou ao regime de trabalho presencial na semana passada bastante contrariada. “Sabia que tive três colegas próximos infetados”.
“Trabalhei anos a fio com equipas virtuais e foram as melhores que tive até hoje. É uma questão de gestão e tornar os nossos colaboradores mais próximos de nós. Implementem o teletrabalho em Portugal para fazer render a performance das pessoas e haver equilíbrio entre a vida e a profissão. Os filhos não se criam em piloto automático”, critica a funcionária de 41 anos que se foca nas novas tecnologias e vive com as duas filhas – uma de nove e outra de seis anos – e os pais diabéticos – de 70 e 75 anos.
“Nos últimos dias, tenho-me sentido ansiosa porque são horas de transportes públicos sem condições sanitárias para a covid-19. Quando tenho duas miúdas em casa, mais dois diabéticos… Com o stress, tive princípio de anemia, o meu cabelo caiu bastante e emagreci quatro quilos. Tenho de procurar formas de estar bem pelas minhas meninas”, indica Filipa, que faz parte do grupo de mulheres que esteve em teletrabalho até há pouco tempo. “A proporção de mulheres em teletrabalho (22,7%) mantém-se superior à de homens (17,5%)”, explicitou o INE, sendo que, ao contrário daquilo que se possa pensar, a carreira do género feminino não parece ficar estagnada devido ao afastamento do local de trabalho e Filipa pode efetivamente estar certa.
No final de setembro deste ano, um inquérito da YouGov, para a BBC, revelou que mais de metade das mulheres (56%) no Reino Unido pensa que trabalhar à distância é um fator que as pode auxiliar no âmbito da progressão na carreira, pois, ao não estarem num emprego com moldes “tradicionais”, conseguem gerir a vida pessoal mais facilmente. Apesar disto, um quarto das mulheres (25%) inquiridas pelo YouGov no Reino Unido disseram que era “pouco provável” que o teletrabalho favorecesse a progressão profissional. Já 65% dos gestores sentem que trabalhar à distância ajuda as mulheres a progredirem. Entre as 1.684 mulheres inquiridas pelo YouGov, aquelas que se encontram na faixa etária dos 18 aos 24 anos (65%) são as que confiam mais nas potencialidades do teletrabalho, enquanto as restantes não têm tantas certezas. Mas, mesmo sendo mais velha, Filipa continua a acreditar que o teletrabalho é um caminho a seguir juntamente com o regime híbrido, tal como Mariana sugeriu.
As opiniões das duas mulheres ouvidas pela i não vão ao encontro dos pareceres adotados na reunião plenária de março em que o Comité Económico e Social Europeu (CESE) afirmou que “as mulheres são particularmente propensas a enfrentar os efeitos negativos de trabalharem mais a partir de casa, ao mesmo tempo que lidam com as tarefas domésticas”, desafiando os estereótipos que possam existir e agravar-se se o teletrabalho continuar a ser uma realidade na União Europeia e, mais especificamente, em Portugal.
“A minha chefe começou a insistir cada vez mais desde setembro. Eu iniciei o trabalho em abril e foi-me dito que passados dois meses podia fazer trabalho remoto, depois disseram que não, que afinal tínhamos de lá estar… O stress acumula-se e o desgaste é enorme. As meninas saem às 17h30 e os meus pais ou o pai dela vão buscá-la. Eu tento sair cedo para poder estar o máximo de tempo com elas”, declara a trabalhadora residente em Oeiras que não quer revelar a identidade verdadeira por temer represálias. “Tenho receio de que me aconteça alguma coisa. Estou em vias de comprar casa e não posso ficar sem emprego. Vou lutar pelo teletrabalho até mais não, mas não posso ficar sem uma fonte de rendimento nesta altura”.
“Não aguento mais, preciso de voltar ao escritório” Inês (nome fictício), de 38 anos, não assume a mesma postura que Mariana e Filipa. Aliás, as conclusões do CESE, órgão consultivo da União Europeia, não poderiam estar mais de acordo com o seu caso: mãe de três filhos pequenos, com pouco mais de um ano de diferença entre cada, acusa o cansaço físico e psicológico do teletrabalho.
“Posso dizer que, infelizmente, as minhas funções são compatíveis com o teletrabalho. Preferia que não fosse esta a realidade. É que, nos primeiros dias, tudo pareceu um mar de rosas, mas ter três crianças a correr, saltar, brincar, gritar e pedir atenção constantemente não permite que preste a devida atenção às minhas tarefas”, avança. Já cometeu “alguns erros” e teve “ainda mais distrações” por ter de sair do computador para, por exemplo, dar comida aos filhos ou interromper videochamadas para acalmá-los.
“O meu marido é enfermeiro e nunca deixou de trabalhar. Portanto, não posso acusá-lo de não me ter ajudado: estava na linha da frente no combate à covid-19, tinha de ajudar outras pessoas! Honestamente, até me sentia mal quando ele chegava a casa e me queixava dos miúdos porque, depois, quando nos deitávamos, arrependia-me porque sabia que o dia dele tinha sido muito mais difícil do que o meu. Mas não posso esconder que estou muito deprimida e, mesmo agora, que os miúdos estão na escola e no infantário, só penso :‘Não aguento mais, preciso de voltar ao escritório’”, diz a mulher que continua em teletrabalho porque a maior parte dos trabalhadores da empresa assim o tem feito e as chefias recomendam-no fortemente.
E, com a tendência crescente dos casos de covid-19, cada vez menos se sente preparada para regressar ao trabalho presencial, apesar de ser esta a chave, na sua perspetiva, para a melhoria da sua saúde mental que se tem vindo a deteriorar desde março de 2020 e que já a levou a ir a algumas consultas de psiquiatria e tomar ansiolíticos para conseguir gerir melhor a ansiedade que dela se apodera e tentar não deixar ninguém para trás. “Sempre fui muito perfeccionista e, quando comecei a perceber que não estava a ser boa mãe, esposa nem trabalhadora… Percebi que precisava de ajuda”.
O caso de Inês ilustra os resultados apurados por um inquérito da Nova Information Management School (Nova IMS), da Universidade Nova de Lisboa, comunicado em junho deste ano, sendo que se percecionou que aproximadamente 65% dos profissionais em regime de teletrabalho considera que o período laboral é o mais stressante do seu dia. Entre aqueles que vão ao local de trabalho diariamente, esta percentagem desce até aos 50%.
“Com o teletrabalho, as relações entre o trabalho, a família e os momentos de descanso deterioraram-se, com jornadas mais longas, o que aumenta os níveis de stress e ansiedade entre os profissionais. Por outro lado, este período de incerteza e de maior risco de desemprego parece afetar particularmente as mulheres e os jovens”, podia ler-se, à época, no comunicado em que Diego Costa Pinto, diretor do marketing analytics lab da NOVA IMS, era citado.
O estudo contou com um universo de 233 inquiridos e foi levado a cabo durante o mês de abril. Entendeu-se que 75% reportam um aumento nos níveis de stress, provocado pela pandemia, sentido com mais intensidade pelos jovens, entre os 18 e 24 anos, e pelas mulheres. E se os níveis de ansiedade dos homens subiram 61%, o das mulheres chegou a 78%. “Infelizmente, a pandemia acabou por acentuar diferenças entre as gerações e entre géneros”, realçou, à época, Diego Costa Pinto. O estudo conclui ainda que os níveis de stress da maioria das mulheres aumentam durante o trabalho (56%), enquanto os dos homens disparam nos momentos de descanso e com a família (53%).
Se estiver com pensamentos de cariz suicida, peça ajuda:
A DGS aconselha que contacte o Serviço de Saúde Mental do Hospital da sua região – Adultos, Infância e Adolescência; a linha SNS24 (808 242424 e www.sns24.gov.pt) e o 112 também estão disponíveis; pode optar pelas Linhas de Crise e Linha de Aconselhamento Psicológico e se necessitar de mais informações, consulte o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio.