Assim como de Borges se incita a lenda falando de um “bibliotecário cego que se converteu quase num género literário”, é possível imaginar que também Irene Vallejo acabe por transcender as circunstâncias mais limitadas da sua biografia e venha a tornar-se uma dessas figuras que se movem num à vontade extasiante entre as antigas histórias, lendas, contos e poemas que não deixam que se desenhe a linha onde o imaginário e o real se excluem, fazendo antes deles medidas arbitrárias, tratando por tu esses mortais imortais, traficantes de mistérios, consumidores de épocas, a espécie que, por movimentos de balanço do espírito, se tornou capaz de desafiar a temporalidade mais mesquinha, vivendo a morte de outros e a vida de outros morrendo.
Doutorada em Filologia Clássica, desde muito cedo, Irene transformou a sua paixão pela literatura numa vertigem narrativa, e ousou erguer a sua linhagem de improvisados mestres de forma a possuir os segredos que a tão duradoura partitura da linguagem encerra. O seu ensaio “O Infinito num Junco” é uma oração labiríntica que sacode o pó de várias bibliotecas, articulando numa prosa desabrida e de leitura compulsiva uma série de aspetos em que a invenção da escrita significou a criação do nosso mundo, avançando a tese de que os livros são talvez “o maior triunfo na nossa tenaz luta contra a destruição”.
Nascida em Saragoça, em 1979, Vallejo criou um exuberante híbrido literário que se tornou uma inesperada sensação literária em Espanha, e depressa atravessou fronteiras – a edição portuguesa, com selo da Bertrand, vai já na sexta reimpressão –, o que não deixa de ser um sinal de esperança, reclamando-se esta obra do legado de infindáveis gerações de bardos itinerantes, os portadores da palavra alada, “que explicavam o mundo em canções, metade enciclopedistas e metade bobos da corte”.
A autora esteve entre nós a convite da Fundação José Saramago e da Fundação Calouste Gulbenkian, para uma série de iniciativas, incluindo a leitura integral do seu “Manifesto pela Leitura” (distribuído gratuitamente pela Bertrand) numa sessão no Teatro São Luiz no passado dia 16 de novembro de 2021, aniversário de 99 anos do Nobel português, que terminou com um concerto da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Este livro [Infinito num Junco] faz uma síntese de uma série de temas que o jornalismo cultural, particularmente o literário, tem tratado. Na verdade, o livro até nos derrota, pois as nossas tentativas parecem desbaratadas ao passo que aqui adquirem uma unidade que faz desta uma obra clamorosa.
Para mim o jornalismo foi uma escola. Passei por três etapas na afinação da minha escrita: uma etapa académica, em que aprendi a investigar a documentação, a aceder às fontes, ir à raiz dos idiomas, aperfeiçoar uma metodologia, mas às tantas a minha carreira académica ficou truncada, e a partir daí comecei a dedicar-me ao jornalismo. Foram os meus colegas que me ensinaram como dirigir-me a um público bem mais amplo. O desafio foi perceber como se faz para explicar questões muito complexas a todo o tipo de leitores. Aprendi muito com esse princípio da divulgação, e que hoje tanto valorizo, mesmo que seja algo que assume, por vezes, uma aceção pejorativa. O que foi muito importante para mim no jornalismo foi aprender a importância de saber extrair títulos, como atrair a atenção do leitor nas primeiras linhas, como ir sedimentando a explicação, levando-a para territórios que sejam compreensíveis para todos, aproximando-a da experiência quotidiana dos leitores. Também aprendi como os livros mais volumosos ganham em repartir-se em capítulos breves, para que os leitores os possam ler em pequenos sorvos ou cápsulas. A terceira etapa foi a leitura e escrita de ficção, de romances, a literatura infantil e juvenil. E O Infinito num Junco foi o meu esforço para que todas estas etapas confluíssem num livro. Ou seja, a investigação académica combinada com o efeito de divulgação, mas aprendendo a respirar com recurso às técnicas de gerar suspense, de saber gerar a arquitectura da narração, de fazer a reconstrução da época e dar fôlego aos personagens, mas também uma certa gravidade a toda a atmosfera. Foi uma forma também de tirar partido de uma trajectória bastante acidentada e que esteve longe de ser calculada, mas que me deu a oportunidade de ir aprendendo lições com diferentes pessoas em diferentes contextos profissionais. Foi assim um esforço de sintetizar tudo aquilo que tive a sorte de ter aprendido.
No seu encontro com os autores clássicos, com aquela prosa sumptuosa mas que se rege pelo vigor da clareza, pela concisão, quais foram os exemplos que tiveram mais influência sobre si?
Um autor muito importante para mim foi Marcial, porque o trabalhei nos meus estudos universitários, e impressionou-me como a sua obra oferece um testemunho muito fidedigno da sua época, por vezes com referências tão concretas e palpáveis sobre a forma como as pessoas viviam, inclusivamente falando da vida dos livros, do mercado livreiro naqueles tempos, indo ao ponto de mencionar os livreiros a quem recorria, dando até indicações de como chegar às livrarias que frequentava, como se fizesse publicidade encoberta nos seus poemas. Esse acumulado de informações que integrava na sua obra literária tornou-o, para mim, um objeto de pesquisa muito pregnante, levando-me ainda a uma reflexão sobre a sua maneira de escrever: a brevidade e concisão, o seu recurso ao paradoxo, que é uma ferramenta muito interessante para se traduzir a forma como um ponto de vista pode sacolejar ao encarar uma questão. E essa é, de resto, uma ferramenta muito útil no jornalismo, que ganha muito com produzir contrastes, bem como o sentido de humor dele… Até certo ponto tentei apropriar-me destes traços literários de Marcial, para que a minha escrita também os reflectisse.
Pode dar exemplos?
Ele tende a acabar a maioria dos seus poemas com algum paradoxo, uma torção inesperada do sentido, e também tentei fazer isto ao encerrar cada capítulo do livro, os quais foram muito trabalhados para conter algum golpe, seja de humor, seja algo inesperado ou uma espécie de máxima, algo mais elaborado como aprendi com as finalizações de Marcial. Mas em relação aos clássicos, interessava-me sobretudo mostrar como, na época em que surgiram, muitos deles foram autores rebeldes e inovadores, muitas vezes incompreendidos… Porque hoje tendemos a encará-los como figuras inquestionáveis, mas o facto é que quando estavam vivos tomaram parte nas tensões do seu tempo, e muitas vezes foram rechaçados, exilados, perseguidos, criticados. E a mim interessou-me dar a conhecê-los nesse momento vital em que as suas obras foram motivo de contenda, em que eles tiveram de fazer frente às limitações do presente, e como o fizeram com valentia, impondo um olhar fresco sobre as coisas. Assim, foi importante para mim insistir que os clássicos não são esses livros que lemos por obrigação na escola, como parte de um regime institucional, mas são os livros mais amados nesse movimento que se cumpre ao longo de séculos, com as pessoas a implicarem-se diretamente de modo a que estes fossem legados às gerações vindouras. A tendência das coisas é para que desapareçam, e o destino mais lógico de todos os livros até à invenção da imprensa era a desaparição. Se estas obras sobreviveram é porque houve tantas pessoas que as amaram de forma tão profunda que as copiaram, resguardaram-nas, muitas vezes escondendo-as quando eram obras malvistas e até perseguidas, esforçando-se para que esses autores e a sua palavra chegassem ao futuro. Não são, por isso, livros que nos foram impostos, mas livros extraordinariamente amados. E eu gostaria de os devolver a essa dimensão.
Considera que um dos fatores da imensa difusão que este seu livro tem tido, se liga à perceção de que estamos hoje perante uma guerra dentro do tempo, já não geográfica mas pela própria organização do tempo, com as tecnologias a imporem uma torrente de informações que aceleram o tempo, criando uma malha de um presente constante, isto contra aquela dimensão que os livros salvaguardam, em que o tempo se enrola e sentimos o passado e o futuro envolvidos como um papiro?
Que bonita imagem essa do tempo como um papiro enrolado. Mas para responder à pergunta, creio que o mais desejável seria a convivência desses dois mundos. Não pensar que estes se excluem, e que formas diversas de ler se eliminam entre si. Os ecrãs e as redes de informação e sociais estão aqui para ficar. E também nos têm favorecido no que toca a essa aprendizagem que se dá por meio das conexões que estabelecemos, pela capacidade de relacionar coisas muito diversas. Por isso, não creio que tenhamos de optar por uma ou por outra. Creio que se está a abrir caminho a uma nova forma de aprendizagem, e de conceber as relações entre diversos campos do saber. Além do mais, há hoje um acesso à informação como nunca antes foi possível. Valorizo estas coisas, ainda que reconheça que há riscos que corremos, sobretudo se esta se converte na única forma que temos para aceder à palavra, ao saber, à reflexão… Os ecrãs tendem a ser demasiado velozes, favorecendo as reações precipitadas. E há, além disso, esta economia da atenção em que o tempo que passamos em frente aos ecrãs é tempo que é rentabilizado através da recolha de dados, de uma série de circuitos económicos obscuros.
E como se contraria isso?
Parece-me que é preciso equilibrar isso e complementá-lo com a leitura de livros, criar espaços em que nos extraímos a essa zona de integração. De resto, creio que os livros são essenciais para o fortalecimento das democracias, porque a capacidade de ler segundo esse outro ritmo, que te dá tempo para deter o curso da informação, parar, ponderar, refletir sobre o que nos está a ser dito, tudo isso é decisivo. Os livros são tão importantes porque diante deles és tu quem decide a velocidade a que as coisas se processam. O tempo abre-se, a leitura pode ser mais lenta, pode-se ficar um bom bocado diante de uma frase que nos causou impressão, e não estamos sujeitos a um fluxo de imagens, anúncios ou notificações que tentam captar a nossa atenção e digiri-la noutro sentido. Não há nenhuma rentabilidade oculta na leitura. Assim, é um ato desinteressado, reflexivo, e que nos ensina a paciência, nos adestra para a solidão. E essa aprendizagem da solidão é muito importante para dar confiança aos indivíduos. Além disso, a leitura permite-nos seguir esse entramado de noções que vão num sentido que escapa ao horizonte forçoso perante o qual a atualidade muitas vezes nos coloca, empurrando-nos numa direção com uma perspetiva limitada. Nesse sentido, a leitura funciona como um contraponto e como um bálsamo que nos resgata desse excesso dos ciclos de informação induzida.
Mas a leitura tem poder como antídoto?
É muito importante que a leitura seja um hábito cultivado, a leitura lenta, paciente, essa que não resulta de obrigações, mas que corresponde aos nossos interesses, porque pode dar-nos uma perspetiva mais ampla das coisas, do passado, e fazer-nos entender como a nossa situação está definida por um lugar e um tempo específicos. E a leitura também sonda o futuro, e infunde em nós um sentimento de responsabilidade por nos colocar como sujeitos numa longa cadeia. Assim, é importante que os livros enriqueçam a nossa experiência, para que não nos deixemos levar por essa idolatria da novidade, que é tão perigosa e paralisante como o culto ao tradicional, por vir do passado. Temos de ter em conta estas duas orientações, e perceber que é bom entrelaçar as duas. Os livros continuam a dar-nos a sensação de que pertencemos a uma história mais vasta, a um projecto mais amplo. Os livros muitas vezes dão sentido às nossas experiências, condensam, filtram, selecionam, racionalizam, permitem que nos reencontremos com esse tempo lento de que necessitamos para desfrutar de um certo sossego.
As tecnologias estarão a vampirizar a nossa solidão?
Os ecrãs cedem muitas vezes à avalanche das informações. Nesse sentido os livros promovem uma certa higiene da mente. Mas também me parece que já passámos aquele momento de ingenuidade em que tudo o que vinha da tecnologia nos parecia benéfico, e estamos agora a dar-nos conta de que há nela aspetos negativos ou duvidosos, as suas zonas de sombra. E esta capacidade de fazer uma crítica desse progresso tecnológico também nos leva de volta aos livros, onde as ideias são apresentadas de forma mais contrastada, e que dá condições ao pensamento de amadurecer. Depois, há uma série de livros que, tendo já passado por muitas mãos, tendo sido lidos por diferentes gerações, se mostram mais fiáveis, pois sustiveram já alguns embates, tendo podido repousar também.
De uma forma discreta, como se dentro do próprio fio com que vai tecendo a sua escrita, está o resgate das mulheres que ao longo da história foram sendo apagadas ou subalternizadas. Normalmente, estes acertos têm sido reivindicados de uma forma polémica, mas no seu trabalho dá a sensação de que a Irene ultrapassou essa urgência sempre aguerrida de, no fundo, se colocar no centro de uma qualquer revisão, conseguindo fazê-lo de uma forma mais serena e que se torna irrecusável, difícil de disputar.
Sempre fui mais crente na reconciliação, e para mim é mais importante esse momento em que já escrevemos a História incorporando as mulheres ou quem quer que seja que tenha sido apagado indevidamente. Trata-se de dar o passo em frente sem se deixar enredar nas velhas armadilhas, e impor com naturalidade aquilo que até ali estava em falta. Não quis escrever uma monografia sobre o papel das mulheres na história do livro, preferi incorporá-las na história comum. Quis que comparecessem na medida em que realmente tomaram parte deste processo e se revelaram uma peça imprescindível deste relato. É necessário sermos sensíveis a todos esses contributos, e incluindo a todas essas que se ligam ainda ao período da transmissão oral, que é muito mais difícil para nós de investigar. Mas naquilo que faço é sempre muito importante essa doçura que, ao invés de deixar o leitor já abespinhado, o atrai. Em vez de estar a levantar obstáculos e conflitos desnecessários, parece-me mais avisado e até estratégico divisar essa paisagem mais profunda, pintando os diferentes personagens que tomaram parte na ação. E o que fiz, assim, foi reivindicar o papel dos anónimos, de muitos desses cujos nomes não figuram na História, mas que foram também muito importantes na transmissão da palavra. Mas não basta fazer justiça num sentido e não no outro, e, por isso, era muito importante que também o leitor se sentisse acolhido por este relato, que os leitores e as leitoras pudessem sentir que a história que lhes estou a contar através de todas estas aventuras é a sua própria história, e que estes são os seus antepassados.
E como é que isso se faz?
É preciso fazê-los sentir que esta é uma aventura que vai ainda a meio, porque também nós, hoje, continuamos empenhados nesse esforço para salvar os livros de que gostamos, e a lutar pela diferença que as palavras fazem. O perigo a que estão submetidos os livros e a palavra livre está longe de se ter dissipado. Continuamos a confrontar-nos com novos meios de censura e novos constrangimentos à liberdade de formarmos as nossas próprias convicções. E, por isso, quis traçar esta história para, no final, me virar para o leitor e dizer-lhe: és tu, no mundo contemporâneo, o último elo desta cadeia, e cumpre-te a ti prosseguir esta aventura, e tens para te encorajar o exemplo de todos estes antepassados: escravos, copistas, escritores, inventores, artesãs, bibliotecárias, livreiros… Todas estas pessoas formam parte do teu percurso enquanto leitor e cabe-te tentar fazer alguma coisa disso que com tanto custo te legaram. Parece-me que deste modo o leitor se sente chamado a participar na história e a continuá-la. E, por esta razão, não quis escrever o livro abrindo feridas, partindo do conflito, mas antes da homenagem, num gesto de gratidão a todas estas pessoas que fizeram de tudo para salvar as palavras e salvar os relatos que mais as incitaram. Assim, este foi o agradecimento de uma pessoa que sente que os livros lhe mudaram a vida, e uma tentativa de recuperar uma história que estava dispersa, e que não me parece que tivesse já sido contada a partir desta perspetiva. Havia assim uma série de dados e histórias, mas faltava o fio e a trama que lhes desse continuidade.
Nos momentos em que nos remete para os períodos mais complicados da sua vida, e particularmente para a sua infância, os livros serviram como proteção face a um acosso.
Em O Infinito num Junco esse relato do bullying de que fui vítima está no centro do livro porque essa é a experiência central da minha vida. Isto porque, no momento em que fui alvo da rejeição unânime por parte dos meus colegas no colégio, ainda que alguns tenham participado de forma mais ativa e outros se tenham limitado a manter uma postura de cumplicidade, isso levou a que me sentisse profundamente estranha, deslocada, incapaz de me adaptar ao ambiente que conhecia, e isto numa altura em que não tinha experiência suficiente para relativizar e contrastar aquilo que estava a viver com outras situações. E isto levou-me a sentir que devia calar o que estava a viver, a sentir que não devia ser a delatora, nem pedir ajuda, pois devia respeitar a lei do recreio. Essa que diz que o que se passa entre os miúdos não deve ser transmitido aos adultos. Assim, dei por mim realmente isolada, numa solidão que, para uma criança, é pior que uma prisão, porque é asfixiante e gera um sentimento de pavor constante. Porque a criança não tem em si as ferramentas para perceber que está a ser alvo de uma perseguição. E foi aí que os livros vieram em minha defesa, não como um refúgio, nesse sentido de me terem servido como uma forma de escapar àquilo que estava a viver, porque desse modo seria como se estes erguessem uma muralha frente ao mundo e à vida, mas foram mensageiros que vieram dar-me esperança, que me disseram que havia outras pessoas, essas sobre as quais me falavam os livros, as personagens que pareciam capazes de me entender. Desse modo, intuí que teria de passar por esses anos mais difíceis porque, mais à frente, haveria de encontrar as pessoas com quem estabeleceria laços de afeição e com quem poderia partilhar essas inquietações que me dominavam.
Essas pessoas quem eram?
Pessoas que sentissem como eu esse desejo de saber mais, de aprender e de viver por meio da criação, e que não vissem no desejo de efabular um problema mas algo que merece ser valorizado. Estas pessoas que descobri ensinaram-me a contar a minha própria história, e deram-me todos esses paralelos e ecos das histórias da literatura infantil e juvenil, em que vemos os protagonistas passar por provas e obstáculos antes de se sentirem capazes de fazer frente ao ambiente que os cerca e cumprir os seus desígnios. Todas essas vozes e esses relatos participaram nessa forma de entender a minha própria experiência, de encará-la não como uma humilhação, mas como algo que me faria mais forte. Tudo isso me deu a capacidade de seguir adiante, e é por isso que sinto que os livros a certa altura me salvaram. Até porque este tipo de experiências pode deixar sequelas graves na nossa personalidade. Assim, tenho muito claro o quanto estas vozes que estão nos livros, mesmo muitos anos depois de terem sido escritas, às vezes até muitos séculos mais tarde, continuam a ser capazes de salvar outras pessoas.
De que modo é que os livros se distinguem das nossas outras ferramentas de transmissão de ideias?
Aquilo que contamos nos livros são aquelas coisas que muitas vezes não nos atrevemos a contar nas relações sociais. Falamos de fracasso, de medo, da dor, da solidão, quando na vida quotidiana tentamos apresentar a melhor imagem possível, e tentamos mostrar que somos populares e felizes, que está tudo bem connosco. Se não fosse pelos livros seríamos levados a pensar que somos os únicos que estão a sentir essas fraturas, essa inadaptação, que somos os únicos que não conseguimos dar com o nosso lugar. Os livros dizem-nos que não, que ser estranho é que é normal. De algum modo, todos somos estranhos, e a normalidade é que é uma ficção, com a qual todos compactuamos, mas em relação à qual ninguém se sente verdadeiramente cómodo. E esta mensagem é tão importante em alguns momentos da nossa vida, e, por isso, me sinto tão agradecida aos livros por me terem feito essa promessa de que se conseguisse superar esses momentos, mais à frente, iria dar com o meu mundo. Depois chega uma altura em que reconheço no livro que foi um erro ter ficado calada, ter protegido aqueles que me agrediam, isso também me foi ensinado pelos livros.
De que modo?
Depois de muito ler, passados alguns anos, acabei por entender que o mais importante é contar aquilo que nos dizem que não devemos contar. É esse o ofício do escritor, contar aquilo que tantas vezes a vida nos pressiona para que não contemos, para que passe oculto, em silêncio. Para que os aspetos mais conflituosos não venham à superfície. Foi por essa razão que me convenci que ser escritor é o melhor ofício do mundo: contar histórias, e assim libertar o que está encerrado, retido no silêncio.
Fala-se num certo pragmatismo que defende que a sociedade depende de uma boa dose de hipocrisia para estar oleada, e assim poder funcionar regularmente. Acredita que essa linha que a literatura estabelece passa por fazer cair esse véu de hipocrisia?
Creio que os livros oferecem um regime de intimidade e de confissão que é difícil encontrar na vida. Permitem que te afastes das tuas circunstâncias, que fiques a sós com o livro, medindo-te com ele, com o seu autor. E na medida em que te vês reflectido nele ou não, este dá-te as palavras para construíres a tua própria experiência, não te obrigando a esse lado brusco que pode existir numa convivência com as pessoas que te rodeiam. De resto, não podemos estar sempre em rutura com essas ilusões de harmonia que servem para estruturar a nossa vida quotidiana. Mas os livros são importantes para que não nos sintamos os únicos habitantes desse regime de desassossego. Parece-me que o título do livro de Fernando Pessoa (Bernardo Soares), “O Livro do Desassossego”, de algum modo é um título geral para toda a literatura, uma descrição daquilo que nos trazem os livros. Os livros exploram esse desassossego nas nossas vidas, e graças a essa consciência do desassossego aprendemos a viver de forma mais profunda as situações com as quais somos confrontados. E, curiosamente, ao contrário do que habitualmente se diz, estes não nos elevam a uma torre de marfim, mas dão-nos uma série de ferramentas e alguns até nos confrontam com os aspetos mais dolorosos da existência. Julgo, além do mais, que o livro é a experiência mais próxima que nos pode ser dada de pensar através da inteligência e do espírito de outra pessoa.
É uma educação feita por dentro do outro?
Através da leitura, somos levados a entender outros pontos de vista, outras experiências, e isso resulta como uma experiência acumulada que também nos ajuda a movermo-nos melhor no mundo social. E é por isso que a investigadora e filósofa Martha Nussbaum diz que a leitura (e a arte no geral) é essencial para a democracia, porque nos coloca na pele de outras pessoas, sendo um transporte de consciência decisivo para consolidar uma sociedade baseada no consenso. Porque a democracia baseia-se no consenso, e temos de ser capazes de nos colocarmos no lugar dos outros para chegarmos a acordo. Se ficarmos por trás da muralha da nossa posição nunca conseguiremos chegar a esse regime de compromisso. E se estamos a viver num mundo cada vez mais polarizado e onde nos damos conta de que os embates de ideias são cada vez mais duros, é porque se está a perder esta capacidade de deixar a sua própria pele, de dialogar, de entender o ponto de vista do outro.
Isso é um efeito da sociedade da informação?
Em certa medida, estas redes encerram-nos em bolhas onde apenas cultivamos a semelhança com os que já pensam como nós, e por frequentarmos espaços cada vez mais cómodos, os algoritmos servem-nos essa ração diária de reflexos que nos trancam em vez de nos abrirem a perspetiva, trazendo-nos os conteúdos que reforçam as noções que temos, incluindo os preconceitos, produzindo esses paraísos artificiais que correspondem a uma comodidade absoluta, e criando núcleos de semelhança que, depois, tornam a experiência do mundo fora das redes altamente frustrante. Daí esse desejo de apagar e remover do nosso quotidiano tudo aquilo que nos contrarie. Nisto, a literatura tenta compensar este enclausuramento na mesmidade, levando-nos a tomar contato com pessoas que não pensam como nós, outras sociedades e culturas, outras épocas, outras formas de vida. Outras especulações, outras motivações, outros resultados que renovam essa incomodidade que está a ser posta em causa pelas redes que hoje integramos. É importante que sejamos capazes de pensar em nome de outros. Não é uma mera casualidade que a democracia tenha nascido em Atenas, numa altura em que o teatro estava a assumir cada vez maior importância, em que se estava a assistir a um movimento de explosão artística. Esse vibrante momento cultural terá sido o que abriu margem para a compreensão do outro de tal modo a que se pudesse imaginar um sistema político baseado no consenso. Hoje, tendemos a encarar a cultura como algo supérfluo, uma forma de ocupar os tempos livres, mas o que é evidente é que a indigência cultural explica a falta de sustento para esse mundo mais justo em que gostaríamos de viver. Assim, a cultura transmite esse alento sem o qual as sociedades não conseguem vislumbrar um futuro, e entram em declínio.
Escritores como George Orwell ou Karl Kraus provaram que muitas vezes se vai mais fundo numa crítica da cultura e das sociedades se se atentar à linguagem que é usada, se o pensamento for exercido do lado mais da filologia do que da filosofia. Não sente que falar de livros, pensar a cultura nos obriga a devolver as pessoas à linguagem, e que se não formos capazes de a analisar criticamente nem sequer compreendemos este fator decisivo na forma como ordenamos as nossas percepções?
E os livros são desde logo uma forma de expansão desse vocabulário que nos permite ver o mundo. Com essas palavras, conceitos e construções semânticas ampliamos o nosso mundo interior. Há uma frase que cito no Manifesto pela Leitura e de que gosto muito, uma frase de Quintiliano: os livros fazem os lábios. Ler constrói os nossos discursos, porque aprofunda os matizes da linguagem que usamos. Criar enredos, personagens, essas aventuras que atraem o leitor, e, ao mesmo tempo, estar dentro dessas narrações faz com que se criem essas redes de linguagem que afinam a nossa experiência. E, depois, a riqueza do nosso discurso interior é decisiva para nos defender contra esse regime hoje omnipresente do slogan. Hoje, a política parece consistir cada vez mais na repetição de frases ou de ideias muito simplificadoras, e esta forma de martelar certas noções na consciência geral é o regime de persuasão que mais tem sido usado na esfera pública. Já a persuasão que é própria da literatura segue em sentido contrário.
Qual é a diferença?
Aquilo que produz é a expansão da linguagem, estende-nos esse mapa que permite ir desenvolvendo as verdades e intuições e localizá-las de forma mais íntima sem as impor de forma drástica, protegendo-nos neste descobrimento gradual em que é dada liberdade ao leitor para retirar as suas próprias conclusões. Portanto, o método é precisamente o contrário. Aqui usa-se a linguagem de uma forma que não é meramente instrumental, útil, manipuladora, mas que tenta mostrar-nos como a linguagem continua a ser a nossa melhor ferramenta no processo de emancipação. Se a linguagem pode ser utilizada para convencer e constranger o nosso comportamento, o grande golpe de rins que podemos executar passa por forçar as palavras a veicular certos matizes que permitam definir onde estão as diferenças. Orwell empenhou-se em mostrar como as formas de poder autoritário e a tirania, para aplicarem o seu programa, precisam primeiro de capturar a linguagem, levar as palavras a tornarem-se como becos sem saída, com estruturas aberrantes, simplificadoras, numa extensão desse imperativo de destruir obras consideradas perigosas e definir uma moral amesquinhante. É interessante que no mundo de 1984 todos os ministérios se chamem o contrário daquilo que são. O Ministério da Paz é, na verdade, o da Guerra, o Ministério da Verdade o que difunde é propaganda… Isto obriga-nos a reconhecer como a linguagem assume todo esse potencial de manipulação, e como isso só se pode desmontar se tivermos a capacidade de revolver a linguagem por meio de um processo crítico, ou seja, literário. O que a literatura nos devolve é a um uso mais íntegro da linguagem, mais consciente dos seus processos de formação e expressão. Desde Platão e os sofistas que temos andado à volta desta ambiguidade que existe nas palavras, que tanto podem aprisionar-nos como ser a chave que nos liberta.
Voltando atrás, disse que para si é importante mostrar que os clássicos não são meramente autores que persistem como algo estagnado, mas a verdade é que o discurso à volta dos livros tem redundado numa espécie de propaganda em que tudo é envolvido de uma benevolência mortificadora, o que chega a dar a sensação de que os livros são algo como uma matéria que não perturba nem questiona muito esses programas de cultura para as massas. Parece que tantas vezes se quer fazer dos livros algo inofensivo, promovendo-os sob essa condição dos bens de valor inquestionável.
Isso de fazer dos livros matéria que não causa perturbação, produzindo novas resistências, gerando atrito é uma argúcia para que não se veja os livros por aquilo que são, ou seja, testemunhos contra as formas de poder que procuram conduzir à nossa submissão. Essa é outra forma de censura, mais subtil, e que passa por fingir que já foram superadas as velhas tensões, de que ultrapassámos já os desafios que se colocaram aos homens noutros tempos. Assim, fazem-nos crer que de algum modo essa obras que se foram imortalizando se referem ao passado, e basta levarmos em conta tantos dos eventos que marcaram os últimos anos para nos darmos conta de que os paralelos são infindáveis. E os livros não se tornaram inofensivos, como é prova disso “Os Versículos Satânicos”, de Salman Rushdie, ou os livros de Roberto Saviano, que depois de denunciar os esquemas da máfia ficou com a cabeça a prémio. Se os livros não fossem importantes não havia uma série de autores que continuam a ser perseguidos de formas mais ou menos declaradas, mais ou menos insidiosas. O que se torna evidente é que, hoje, como em qualquer outra época, contar a verdade continua a ser motivo para se viver debaixo de ameaça. Mesmo nas democracias, essa tentativa de fingir que os livros circulam sem grandes dificuldades, quando são as ideias neles contidas que depois são contestadas, combatidas a todo o momento, isso mostra-nos como os livros mantêm a sua perigosidade, o que se passa é que as estratégias que se usam actualmente para os neutralizar são bem mais engenhosas. E essas campanhas muitas vezes participam nesse esforço de neutralização. Por outro lado, o sinal de que os livros continuam a ser inquietantes é esse desejo crescente de expurgar aqueles que contêm ideias ou noções consideradas ofensivas, mesmo para quem julga viver numa época mais avançada e esclarecida. Esse desejo que vai a par do de suprimir determinadas palavras do nosso discurso, substituí-las por outras consideradas menos ofensivas, como se isso pudesse resolver a realidade que lhes está subjacente e que elas nomeiam. Tudo isso não passa de maquilhagem. E depois há esse desejo de retirar certas obras dos programas universitários, de as retirar até das bibliotecas… Creio que tudo isso é um equívoco de todo o tamanho, e não nos compete andar a censurar, cortar, mutilar as obras para estarem de acordo com as nossas convicções ou susceptibilidades. Devíamos tentar perceber de onde vem este impulso de destruí-los, expulsá-los do nosso convívio. Parece que nos sentimos superiores a todas essas gerações que nos precederam, ao invés de nos mostrarmos dispostos a ler os livros hoje, o que não significa abdicar de um sentido crítico. Porque nós não estamos reféns daquilo que lemos, devemos ser capazes de o considerar, pesar e rejeitar se for caso disso. Agora, essa tentação de se furtar a um confronto com outras perspectivas, isso não faz o menor sentido. Até porque o que os livros nos ensinam vem de nos exporem àquilo a essas condutas terríveis que em tempos foram dadas como normais, espelhando outras condutas que persistem até hoje. Seja a escravidão, mostrando como esta funcionava, como foi justificada, isso abre paralelos para pensar de que modo essas e outras formas de exploração continuam a ocorrer nos nossos dias. Os livros ajudam-nos a compreender a forma como crimes horrendos como o Holocausto foram justificados, como certas ideias puderam infectar a consciência dos homens de forma tão profunda que os levaram a provocar um tipo de sofrimento que, hoje, nos dilacera. Mas isso serve, não para nos deixar meramente consternados, mas para que descortinemos certos paralelos, e para evitarmos que esses horrores se repitam. E se os livros estão cheios de informação, de relatos, também eles devem ser encarados com sentido crítico. Um autor como Aristóteles pode ser profundamente misógino, e pode ter argumentado a favor da escravidão, mas isso não impede que beneficiemos do seu juízo nos momentos em que este formulou ideias valiosíssimas e que continuam a ser instigantes para nós. Não temos de entrar nesse maniqueísmo de dividir a literatura entre os autores com bom e mau carácter, desde logo porque a realidade é muito mais complexa do que isso. Essas tentações não passam de uma prova da ingenuidade da nossa época.
Mas porque é que lhe parece que há, hoje, esta necessidade de sancionar os autores? Como é que caímos nesta busca de uma pureza que, no fim, faz de tudo um concurso de misses?
Acho que devemos reivindicar os autores na sua humanidade. Não temos de julgá-los nem de absolvê-los. Não temos de assumir a sua mensagem, mas também não devemos ter receio de nos deixarmos influenciar pelas suas noções mais lúcidas e extraordinárias. É como na vida. Não podemos relacionar-nos com as pessoas e entrar logo em conflito, ao primeiro sinal de discórdia começar logo a condená-las, expulsar quem quer que exprima uma ideia que tomemos como ofensiva. É perniciosa essa exigência de que todos se coloquem do lado que consideramos justo, não dando margem para a reflexão, a experimentação, a evolução, e mesmo para que sejamos nós a mudar de ideias. E quando reivindicamos os clássicos também estamos a reivindicar uma nova aproximação crítica. Porque muitas vezes esses são autores que às tantas idealizámos, convencendo-nos de que eram uma espécie de deuses, mas se tiveram falhas, não é também sensato querermos pôr de lado tudo o que nos legaram. Parece-me que devemos ter com eles uma atitude mais madura, como aquela que temos com os nossos pais, com quem muitas vezes discordamos, não podendo aceitar tudo o que fizeram, mas assumimos que a vida deles faz também parte da nossa história, queremos conhecê-la, e procuramos aprender com toda essa experiência acumulada. Mas se julgarmos com esse fervor e essa estreiteza o nosso passado, estamos a abrir caminho para que os nossos descendentes nos julguem da mesma maneira, e que, eventualmente, nos eliminem de uma só penada. Porque também nós cometemos erros, temos as nossas falhas no que toca à sensibilidade, e a posteridade acabará por dar com elas. Por tudo isto, não devemos simplesmente censurar, cancelar, apagar tudo o que nos produz incomodidade. Devemos aceitar o desassossego porque a vida nos coloca constantemente perante dilemas em que teremos de saber lidar com esses aspectos desafiadores. A História só nos pode ajudar se a enfrentarmos tentando construí-la da forma o mais aproximada possível ao que se passou. O confronto com a História passa também por desactivar essas memórias parciais ou maquilhadas com vista a despertar em nós um sentimento de nostalgia em relação ao passado e, assim, manipular-nos.
Como é que vai lidar e talvez até sobreviver a este fenómeno que, por estes dias, a cerca, estando “O Infinito num Junco” a ter um sucesso enorme, e perante todas estas solicitações que agora lhe chegam? Que conflito é que está a viver nesta transformação da sua vida, uma vez que este livro deve tanto à sua solidão e até à sua história pessoal?
Sim, é um risco. E estou consciente, assumo-o. Mas, por um lado, sinto gratidão pela oportunidade, pelo acolhimento que o meu trabalho está a ter, por tudo aquilo que os leitores estão a fazer com este livro e, por outro lado, há a responsabilidade, esta sorte de poder abrir um espaço em público para um conjunto de ideias que, até certo ponto, sentia que estavam órfãs. Mas entrar em todos estes debates tão candentes da nossa actualidade sobre a História, o feminismo, as minorias, tudo isso representa um perigo, o de nos deixarmos arrastar para esses circunlóquios sem fim. Tento estar consciente do risco, e, por isso, faço o que posso para falar e actuar com integridade, e procuro confiar que quem me escuta entende esse esforço. Também nas redes sociais tenho procurado promover uma comunidade insistindo no respeito, tentando que ninguém seja atacado, procurando também responder com a maior serenidade possível a quem me ataca, tentando apaziguar esta forma de violência que está constantemente a brotar nestes espaços. Tento assim que pessoas que têm uma sensibilidade próxima da minha se reconheçam no que faço e sintam que as suas emoções têm um porta-voz. Parece-me importante no momento que estamos a viver, e com o ataque constante à cultura e às humanidades, que haja quem possa valorizá-las. Mas não me sinto desacompanhada, pois há imensa gente, sejam jornalistas, sejam pensadores e escritores, que estão igualmente empenhados. Creio que se está a forjar um movimento que sente ser necessário responder a este estado de indigência no que toca às faculdades do espírito. Também aproveito para aprender com todas estas pessoas com quem me tenho cruzado, e sinto que é assim que consigo utilizar da melhor forma estas oportunidades. E, da mesma forma como no poder é bom que se encontrem pessoas que não desejam obter o poder para se beneficiarem, creio que no discurso público é importante que haja pessoas que não estão aí apenas pela necessidade de atrair a atenção para si mesmas. No fundo, sou tímida, e gosto mais de escrever e de me ocupar da minha solidão, mas creio também que é bom que haja pessoas que, ainda que se se sentissem mais à vontade na sua reclusão, falem para que outras ideias possam ser apresentadas.
Entre os ecos que lhe chegam, houve reparos ou críticas que considerou serem valiosas para o seu trabalho?
Presto muita atenção às críticas, desde logo porque me parece muito importante que exista esse confronto. Nada é inatacável ou inquestionável, e temos de partir desse princípio em relação a nós mesmos. De resto, quem crê no debate deve abrir margem para que as suas posições sejam contestadas. É importante também que haja controvérsia, e também me parece que quem nos critica está a fazer-nos um favor, pois se só ouvíssemos elogios isso acabaria por ser corrosivo. E quando entras num debate eventualmente acabarás por te deparar com objecções bem fundadas, e nalguns casos terás mesmo de reconhecer que cometeste alguns erros.
E houve algumas críticas ao seu livro que lhe pareceram acertadas?
Há quem considere que “O Infinito num Junco” falha por não corresponder ao modelo da investigação académica. Embora considere que é muito importante que a investigação académica exista, também me parece importante que estes livros de divulgação cheguem às pessoas. Este é um livro feito para ser lido como um romance, para produzir o mesmo entusiasmo, usando os mecanismos da ficção, da imaginação, mas tentei também que tudo estivesse bem fundamentado, e há uma parte bibliográfica bastante completa e rigorosa. Mas o livro é escrito de forma a que os leitores se emocionem, fiquem agarrados às histórias, aprendam certos detalhes sobre a origem deste mundo da escrita e dos livros. É um trabalho literário e é a essa lógica que obedece. Não pretendia fazer um trabalho académico, e, de resto, há muito que existem obras desse teor sobre estes temas. Não estou a competir nem a questionar esse tipo de trabalhos, que reúnem a informação e avançam o nosso conhecimento nesta área, mas aqueles que foram os meus mestres neste trabalho foram autores como Oliver Sacks, Carl Sagan, cujo objectivo era levar o conhecimento que tinham a um público mais amplo para que recuperemos a emoção que produz em nós a aprendizagem. É essa reivindicação do saber como algo prazeroso, até hedonista. É uma forma de se aprender um pouco sobre disciplinas que são muito especializadas, oferecendo uma visão de conjunto em vez de mergulhar em profundidade numa questão mais particular. Podemos ser especialistas nestas matérias, mas a partir de um certo ponto convém que façamos livros que possam explicar ao resto do mundo o que temos andado a investigar, de que forma se está a transformar a nossa disciplina e de que modo esta é importante para as vidas de todos nós. Assim, aceito essas críticas, mas vinco que não foi esse o meu objectivo, e sim contruir um grande relato que cosesse muitas linhas dispersas, várias digressões, muitas histórias, uma série de personagens, misturando uma visão muito pessoal dos clássicos, com uma interpretação própria, e inclusivamente com traduções que são minhas. E tudo isto foi importante para me ligar à miúda que fui e que se emocionou com os clássicos. Mas é claro que uma pessoa que esperasse um relato ordenado, cronológico, é possível que se depare com uma estrutura estranha, numa mistura das Mil e Uma Noites com a investigação e esse regime da experimentação literária. Essa experimentação pode ser criticada, e quem não gostar tem todo o direito a expressar as suas reservas.
O que é que gostava mais que a sua escrita viesse a representar quando der por terminado o seu trabalho?
Gostaria de me manter neste território fronteiriço, o ensaio, o campo da não-ficção. Quero continuar a escrever romances, como tinha já feito antes, mas quero explorar até que ponto é que o romance pode ser um veículo de ideias, e o ensaio pode ser narrativa e o mais ambiciosamente literário possível. O meu grande projecto é explorar estas conexões, estas raízes que se entrelaçam entre o romance de ideias e o ensaio literário. Gostaria de me mover entre os dois territórios para explorar os temas que me interessam a partir dos pontos de vista mais desafiadores, servindo-me de personagens, de enredo, de histórias reais ou ficcionadas, e isto através do ensaio, que me parece ser um género mais aberto e mais rico, com muitas mais possibilidades do que aquelas que temos explorado. Se o romance é esse género a que se permite tudo, e do qual se espera que use de todos os artifícios e estratégias para se renovar, quanto a mim é o ensaio que está, hoje, em condições de ir mais longe, porque pode libertar-se da estrutura romanesca e seguir pela teoria de uma forma muito mais desabusada.