Olhamos à volta e todos lemos nos jornais ou vemos pela televisão que nos entra em casa peças jornalísticas sobre a China, Rússia ou Bielorrússia. Há algo em comum em todo e qualquer tema, são vários e muito distintos entre eles, nestes países: É que a sociedade começou a normalizar o que outrora era inconcebível.
Vimos o aparato mediático sobre a reunião entre o Presidente norte-americano Joe Biden com o homólogo chinês Xi-Jinping. É mais uma demonstração da normalização da não-democracia chinesa, que é cada vez mais aceite pelo Mundo fora. Outrora contestado, este forte regime persecutório e sem críticos internos em torno do Partido Comunista Chinês, que se tem consolidado no poder por, em parte, vir eliminando os seus possíveis adversários, hoje vivemos num profundo silêncio global sobre o que acontece no país mais populoso do mundo.
É uma preocupante normalização de um regime que força a aprendizagem nas escolas das crianças com uma cadeira denominada por “Pensamento de Xi (Jinping)”. Aliás, o Comité Central do Partido Comunista Chinês abriu caminho para que o Presidente Xi Jinping possa perpetuar o seu poder, e foi equiparado pelo órgão máximo do seu Partido a Mao e a Deng, ao ter sido aprovado uma resolução histórica para assegurar que será líder vitalício. Pelo menos, de forma unanime (claro, evidente que sim… com muita ironia), foi assim que aceitaram (“votar” é uma palavra que no Partido Comunista Chinês não deve ser usada) todos os 370 membros do Comité Central.
Sobre a China (e há tanto), o Mundo poderia debater o óbvio: o caso de Hong Kong. Um caso de clara perda de autonomia, devido à vontade política do Partido Comunista Chinês, mas, em contravapor, em função do peso económico da poderosa economia chinesa o Mundo apenas vê que a China e os Estados Unidos concordaram esta semana em aliviar as restrições para trabalhadores de órgãos de comunicação social dos dois países.
Todas as agências noticiosas escreveram algo positivo sobre o encontro entre os dois Presidentes, mas o que fica comum é: “Ao abrigo deste acordo, ambos os Estados vão emitir vistos de entradas múltiplas de um ano para trabalhadores de órgãos de comunicação social.”
Pronto, é o caminho de uma China que hoje se diz moderna, aberta às capitais estrangeiras, aberta ao capital estrangeiro… Mas, e o resto? É normal o Mundo aceitar a falta de democracia chinesa? Não. Não é normal.
Apenas debatemos a espuma dos dias e são poucos os debates em torno de questões estruturantes e de defesa de simples direitos humanos.
Um Mundo que, aproveitando a chamada à peça do Presidente Joe Biden, que hipocritamente criticou abertamente o presidente americano por ter “passado pelas brasas” num sono momentâneo (parece) na Cimeira sobre o Clima em Glasgow é o mesmo que nem comenta o que a China pratica internamente? Será que não é muito mais normal, independentemente da idade, o estado de cansaço nos ter feito a nós mesmos com 20’s ou 30’s anos estar quase a adormecer numa sessão longa de uma conferência, numa aula da faculdade ou numa Assembleia Geral do nosso clube ou partido? Isso é que é relevante para esta sociedade? Já a democracia da China… normais. Tudo normal. Não merece nada os discursos de ódio que a soneca de Biden mereceu.
Como é tudo “normal”, o mundo pacifica e há o encontro mais mediático da semana entre Biden e Xi, como se nada fosse.
E a Rússia? Ainda esta semana o conceituado The Economist fez chamada de capa sobre a opressão política levada a cabo pelo eterno líder russo Vladimir Putin. Há inclusive um pequeno vídeo de 15 minutos que relata – muito melhor que eu – o estado de medo que, hoje, um russo tem ao tentar exercer os direitos. Um medo diário de apenas lutar pela democracia no seu país, poder falar e protestar ou apresentar alternativas ao eterno “vencedor” de eleições: Vladimir Putin.
Poderíamos relembrar as detenções arbitrárias de manifestantes na Rússia ou, claro, falar da detenção de Navalny que foi uma perversão da justiça. Vejamos que quando este político russo sofreu uma tentativa de assassinato através de químicos (proibidos), foi preso e, pelo contrário, o seu atacante continua em liberdade.
Só na Rússia de Putin.
Ficámos, nessa altura da detenção de Navalny, por pequenas notas da NATO e ainda pela exigência (será que Putin soube?) do respeito pelas obrigações internacionais para com os direitos humanos, liberdade de expressão e de protesto pacífico que a Rússia devia defender.
Mas não ficaríamos por aqui (e tanto fica por dizer). Há ainda a silenciosa tensão que há nesse leste europeu, com a Rússia a deslocar tropas e equipamentos militares para a fronteira com a Ucrânia (outra vez). Sabemos que Kiev e Moscovo estão em guerra há mais de sete anos (Crimeira, lembram-se?) mas, já o ano passado foi igual, estes posicionamentos de tanques russos na fronteira com a Ucrânia deveriam ser menos aceites pela comunidade internacional.
Isso, como a China, é pouco comentado. Fosse Putin adormecer em público talvez a comunidade internacional e as redes sociais se mexessem… Como é tudo “normal”, Putin foi convidado para falar na COP26 e lá gravou um vídeo sobre a importância das florestas. É curioso, mas os líderes ausentes desta Cimeira não são grandes exemplos: Putin, Xi Jinping e Bolsonaro. Fica o registo.
Ainda a leste, a sociedade não se revolta com a situação dos migrantes que a Bielorrússia “manipula” para cima da Polónia, Lituânia e Letónia?
Sobretudo na Polónia, são milhares de pessoas oriundas do médio-oriente e de África que tentam entrar ilegalmente no país. Claro que o bielorrusso Alexander Lukashenko rejeita as acusações sobre o seu país. O contestado líder bielorrusso, que obviamente tem o apoio do colega russo Putin, já ameaça cortar o abastecimento de gás à Europa.
Mas, sobre este líder (é líder mesmo? É ninguém acredita na eleição presidencial de 2020), que prendeu um jornalista dissidente a bordo do “famoso” voo que foi forçado a pousar em Minsk, porque aceita a comunidade internacional tal personagem política – também não democrática – como Xi Jinping ou Vladimir Putin?
Isto, como a China e a Rússia, é também pouco comentado por todos nós. Repito: Fosse Lukashenko passar pelas brasas perante uma máquina de filmar…
Haveria mais casos para falar. De Órban a Nicolás Maduro, haveria uma lista de governantes que são bons exemplos do que não devemos normalizar.
Porém, o que fica nestes dias é que continua a existir muita situação que não devia ser aceite. Pior, não devia haver uma força de comunicação que normalizasse quem não é normal. Que aceitasse democraticamente quem não é democrata. Que convidasse quem nunca convidou “os direitos Humanos” a viverem livremente nos seus países.
Estranho mundo este que normaliza o que não é normal e que hipocritamente critica e acusa – como o cansaço de Biden numa conferência – o que, seguramente, ao longo de uma qualquer vida pacata todos fizeram e, sobretudo, critica com facilidade o que não perturba em nada a liberdade individual de qualquer cidadão. Já o que limita liberdades… começa a ser normal.