Ana Jacinto. “A restauração precisa de 40 mil trabalhadores”

Ana Jacinto. “A restauração precisa de 40 mil trabalhadores”


De acordo com a secretária-geral da AHRESP, a solução para esta falta de mão-de-obra passa por  um programa de imigração organizado. 


Como está o setor? O verão representou um balão de oxigénio? 
A atividade foi recuperando nos últimos meses de verão, porque começou tarde. Os meses de agosto, setembro e até outubro foram interessantes, quer para a restauração, quer para o alojamento. É evidente que este comportamento não foi transversal em todo o território, mas para a maioria das empresas foi um balão de oxigénio. Mas é suficiente para continuarmos a sobreviver? Aí é que estão as nossas dúvidas, porque as empresas estiveram encerradas quase dois anos como foi o caso da animação noturna e não é por terem dois ou três meses interessantes que vão conseguir ganhar tesouraria suficiente para enfrentar os próximos tempos. Esquecemo-nos com facilidade e temos memória curta, mas a verdade é que estamos na época baixa e esta tradicionalmente é má. É verdade que estamos quase na altura do Natal e o subsídio também pode ajudar e aí teremos certamente a continuação do tal balão de oxigénio que nos foi fornecido através da procura interna, não foi através da procura internacional. Mas apesar desse balão de oxigénio tememos muito pelos meses seguintes até à Páscoa, que é a altura que normalmente reanimamos. Ainda temos de passar por janeiro, fevereiro, março que vão ser meses difíceis, até porque temos um cenário complicado: temos os combustíveis a aumentar, a energia a aumentar. Tudo isso impacta de forma dramática com os nossos setores porque impacta com as matérias-primas. Há matérias-primas a subir de forma galopante e já há escassez de algumas matérias-primas. Tudo isto não é um cenário favorável atendendo a que estivemos muitos meses encerrados, com faturação zero ou próxima do zero. Estes meses não vão permitir que as empresas, de um momento para o outro, passem a ter tesouraria ou rentabilidades positivas. O Banco de Portugal disse recentemente que temia que, até ao final do ano, um quarto das nossas empresas esteja descapitalizada. Também saíram dados recentes que nos dizem que em 2020 face a 2019 tivemos uma contração no volume de negócios de cerca de 9,7%. Isto impactou de forma muito negativa a rentabilidade dos capitais próprios, tornando-os em negativos em muitas empresas. É evidente que estes últimos meses deram-nos um balão de oxigénio, as medidas restritivas diminuíram, a procura interna aumentou, tivemos alguma circulação internacional – muito pouca porque ainda temos algumas restrições consoante os países de origem – mas não é suficiente face a um cenário que tememos que se agrave. E este setor perdeu todos os apoios que estavam a ser disponibilizados, a única coisa que tem agora é a retoma progressiva, mas fora isso não existe mais nenhum apoio. 

O Governo fechou os apoios porque a atividade abriu… 
Exatamente, com a agravante de que alguns dos apoios que estavam prometidos ainda não terem chegado. É o caso do Apoiar Rendas, recentemente o ministro da Economia disse que o problema ficaria resolvido até ao final do ano, mas estamos a falar de uma medida que foi comunicada a 10 de dezembro de 2020. Há medidas que foram aprovadas, como o Reativar Turismo, que ainda não foram disponibilizadas. É urgente que tudo isto possa estar disponível. Seria importante avaliar se há necessidade de continuarmos a ter medidas e do nosso ponto de vista há. A nossa preocupação é que o Governo que ainda está em gestão não se esqueça destes setores de atividades.

Principalmente quando há apoios que nunca chegaram… 
No caso do Apoiar Rendas foi paga uma primeira tranche, mas ficou por liquidar a segunda tranche para a grande parte das empresas. Esse apoio é vital porque a maior parte delas são arrendatárias. A AHRESP sinalizou essa necessidade e insistiu muito com o Governo para que houvesse esse apoio às rendas. O Governo e bem disponibilizou esse apoio, comunicou-o, mas foi um bocadinho o que aconteceu ao longo dos últimos dois anos: apoios comunicados que chegaram muito tarde às empresas e, por isso, muitas estão numa situação difícil. Falámos diversas vezes com o Governo à medida que ia lançando e ia comunicando os apoios, mas estes demoravam muito tempo a ser concretizados, regulamentados e disponibilizados e nem sempre consideram legíveis todos os empresários. Numa primeira fase deixaram de parte os empresários em nome individual – que é a fatia mais relevante do nosso tecido empresarial – só mais tarde é que vieram a ser apoiados. Depois foram apoiados só aqueles que tinham trabalhadores a cargo. Mais tarde é que alargaram para os empresários em nome individual sem trabalhadores a cargo. E como estes apoios não eram retroativos, as empresas foram apoiadas de forma tardia. Conclusão: foram consumindo tudo o que tinham e não tinham de poupanças e o que lhes restava era o endividamento, daí o setor estar muito endividado. Isto significa que as empresas estão muito débeis, muito frágeis.

E nem todos resistiram…
Muitos fecharam as portas e outros vão fechar agora. Temos alertado o Governo que ainda está em funções para esta situação e esperemos que o próximo esteja atento a esta problemática porque este setor foi aquele que foi mais impactado com a crise e não pode de um momento para o outro ter condições para sobreviver sozinho. Isto porque, a procura não vai ser suficiente. Para o ano esperemos que tudo esteja mais resolvido, vamos ver o que vai acontecer com o Natal, se vai haver novas restrições ou não, se vai haver uma nova vaga ou não ou se temos a pandemia controlada ou não.

Há países que estão novamente a confinar….
Corremos esse risco, porque ainda não sabemos muito bem o que vai acontecer. Mas a verdade é que, ultrapassado o mês de janeiro, fevereiro e o início de março, se tudo correr bem, se não houver vagas novas e se a pandemia estiver mais controlada acreditamos que vamos conseguir retomar a nossa atividade. No entanto, não vamos de um dia para o outro chegar aos índices que tínhamos em 2019. Até lá, precisamos de ter as empresas vivas e não podemos deitar tudo a perder nestes últimos meses. Houve um esforço – pouco do nosso ponto de vista – do Governo em tentar apoiar as empresas e os seus trabalhadores com medidas específicas para mantermos os postos de trabalho, não vamos deixar tudo a perder só porque nestes últimos meses não vamos aguentar sozinhos, apesar de assistirmos todos os dias a comunicações por parte dos membros do Governo a dizer que o setor está a crescer, apesar de não ser suficiente. Estamos a crescer, mas não é suficiente para tornarmos as nossas empresas capitalizadas se não houver medidas específicas para a sua capitalização.

Tem ideia de quantas empresas encerraram?
Nunca temos o número de encerramentos porque estes são sempre silenciosos. Os empresários fecham a porta e encerram a atividade porque há uma vergonha inerente no nosso país em relação ao encerramento de uma empresa, ao contrário de outros países, onde isso tudo é normal: fecha-se um negócio e abre-se outro. Cá, enquanto houver um carro que se possa vender para pôr o dinheiro na empresa, enquanto se conseguir recorrer a um empréstimo, os empresários fazem isso e, por isso, não temos dados certos sobre encerramentos. Mas temos tido sempre um número certo no que diz respeito às intenções de insolvência e este número andou muito regular ao longo dos dois anos de inquérito que fizemos e que anda à volta dos 36%. Agora corremos o risco de encerrarem as portas. 

O fim das moratórias foi outra dor de cabeça para os empresários?
As moratórias são outro exemplo infeliz. Alertámos com muita antecedência que íamos cair neste problema porque Portugal foi um dos países que mais criou medidas de endividamento, ao contrário de outros países em que, muitos dos apoios, começaram desde logo por ser a fundo perdido. Portugal começou com apoios a fundo perdido muito tarde, o que levou as empresas a endividarem-se e tínhamos muitas empresas em moratórias. O Governo criou um programa que foi comunicado praticamente na véspera – só uma semana antes das moratórias terminarem – a dizer o que era e como ia funcionar mas, nessa altura, muitos bancos já estavam a pressionar as empresas para fazerem reestruturações das suas dívidas, ainda antes da medida estar em funcionamento, o que levou a que muitos empresários com receio renegociassem as suas dívidas com encargos muito mais pesados. Muitos deles ficaram em piores condições do que aquelas que tinham e depois com a linha que o Governo veio criar para resolver o problema das moratórias – não somos nós que dizemos foi o próprio Paulo Macedo que já o referiu que a linha não tem grandes adesões porque não está estruturada para as nossas micro empresas. Temos um tecido empresarial com muitas dificuldades em termos de literacia financeira, obviamente que a comunicação com a banca fica logo num pé desigual. As nossas empresas e os nossos gestores não estão ao mesmo nível da necessidade que é preciso de dialogar com a banca. Logo aí estamos em desvantagem e depois a linha não é flexível. Tem um conjunto de constrangimentos que não são fáceis, desde logo, entra num mecanismo, em que é necessário reestruturar a dívida ao abrigo desta linha. Esta empresa fica como que em observação durante um determinado período de tempo e se precisar de um novo empréstimo provavelmente a banca não vai dar porque está numa espécie de lista negra, em que há maiores cautelas por parte da banca em poder financiar essa empresa. Obviamente que as empresas ficam com receio porque não sabem o dia de amanhã. E hoje em dia ainda é pior porque realmente não sabemos o dia de amanhã. Esta linha funciona para quem? Para as empresas mais musculadas, que têm mais capacidade de negociação, que são mais arrumadas. Claro que o tecido das micro empresas de restauração e do alojamento não querem recorrer e é por isso que temos índices de adesão a esta linha muito fracos. Mas depois isto levanta outro problema: como vão pagar estes encargos? As empresas precisam de faturar para fazer face a esses custos e é por isso que dizemos que precisamos de continuar a ter alguns apoios. Precisamos que continuem a olhar para estas empresas porque a economia não é toda igual. Não há tantas fragilidades em outros setores, até há uns que cresceram durante a pandemia. 

E foi um setor obrigado a fechar…
Exatamente, como é que se espera que empresas como os bares e as discotecas de um dia para o outro abram e estejam a faturar o suficiente para pagar os encargos todos que entretanto deixaram de pagar? O facto de uma empresa estar fechada não significa que não tenha custos, alguns ficaram congelados, mas continuaram a ter de pagar seguros, as medicinas de trabalho porque os trabalhadores não foram despedidos, estavam ao abrigo de medidas como o layoff, mas em que uma parte do vencimento era paga pela empresa. Mais os custos de energia para manter os equipamentos, etc. Não é por uma empresa estar fechada que deixa de ter custos e foram muitos meses nesta situação com as empresas a faturarem zero. As empresas agora podem funcionar, mas não é de um momento para o outro que as tesourarias destas empresas vão ficar positivas e com capacidade para se aguentarem. 

E agora enfrentam também o problema das matérias-primas estarem com preços mais altos e até há produtos que esgotaram…
É o problema da inflação, é o problema da escassez das matérias-primas, é o problema do custo das matérias-primas porque está tudo relacionado com o facto de termos aumentos muito consideráveis ao nível da energia e dos combustíveis. Tudo impacta nestes setores e há muitas empresas que nos relatam que está a ser difícil.

No caso da restauração vai ter de refletir esses aumentos no preço final?
Essa é que é a grande questão, o que estamos a ver é que provavelmente não haverá outra solução porque assim as empresas não são viáveis. Se calhar vão ter que aumentar o preço final ao consumidor. Oiço muitas vezes dizer que Portugal tem as refeições mais baratas de toda a Europa, é verdade, mas não nos podemos esquecer que o nosso consumidor usa os nossos estabelecimentos de forma diferente e é também por isso que temos um número diferente de estabelecimentos per capita. Nada pode ser comparado de forma simples. Por exemplo, se for à Dinamarca, Noruega, etc. eles vão almoçar e jantar fora em dias especiais, não vão todos os dias e por isso têm menos restauração per capita. Nós temos um hábito de consumo diferente e a nossa oferta está dimensionada não só para o turismo internacional como também para o consumo interno. É evidente que se aumentarmos o preço para o consumidor final vamos afetar a nossa procura interna porque o poder de compra também não é igual a outros países europeus. E isto significa que vamos ter menos pessoas a consumir no estabelecimento, mas provavelmente não haverá outra forma porque estamos a ser muito pressionados com todos estes custos. Temos todos os dias custos imputados a estas empresas: ou é por via do ambiente – em que andamos a pedir algumas prorrogações para não impactar diretamente, como foi o caso do plástico – ou é a lei do tabaco, que ainda estamos à espera da portaria. Os estabelecimentos para terem espaços para fumadores precisam de fazer um investimento e a maior parte das empresas não tem essa possibilidade, mais os custos de energia, mais as taxas e taxinhas. Ainda assim, algumas das taxas foram de alguma forma diminuídas ou porque os estabelecimentos ficaram isentos até porque as autarquias tiveram um papel relevante durante este período, mas provavelmente não vão continuar a fazê-lo. O setor é muito estrangulado por todos estes custos e encargos e provavelmente não haverá outra forma a não ser que ter de subir o preço ao consumidor, caso contrário a empresa não será viável. 

E em relação à lei do tabaco?
Ainda não temos alteração nenhuma à lei do tabaco. Existe uma portaria que esteve em discussão que já devia ter saído há muito tempo porque a lei do tabaco previa a publicação dessa portaria que acabou por não surgir também por culpa da pandemia. Deve estar prestes a ser publicada mas o que prevê são as condições específicas em que um estabelecimento pode manter espaços para fumadores porque, a partir de dezembro do ano passado, foram proibidos os espaços para fumadores dentro dos estabelecimentos da restauração porque não havia a tal portaria que definia quais eram as condições em que podiam manter. Com esta portaria, o Governo define quais são as condições em que podem ter um espaço, uma sala, uma secção para fumadores, mas têm que cumprir todos aqueles requisitos técnicos que estão previstos. E que na prática são tão difíceis de cumprir, pelo menos tendo em conta a última versão da portaria que vimos, que mais vale dizer que não é possível fumar. 

Só sobram as esplanadas….
Sim, o que cruza com a questão das beatas. Não pode haver beatas no chão e os estabelecimentos têm que assegurar que os seus consumidores colocam as beatas nos sítios certos. E isso também dá azo a contraordenações por parte da ASAE e por outras forças policiais. Na semana passada havia um ruído a dizer que também não se podia fumar na esplanada, o que não é verdade. O que sabemos é que essa portaria vai exigir vários requisitos técnicos nos espaços interiores e que mais vale dizer que não é possível fumar. Isto também tem impacto no setor porque há clientes que gostam de estar em espaços para fumadores. E no caso dos espaços de animação noturna havia muitos que tinham zonas para fumadores, agora vai ser mais difícil e vai exigir mais investimento para manterem essa possibilidade.
Outro problema do setor é a falta de mão-de-obra. Antes da pandemia já se falava nesse problema….
Antes da pandemia fizemos um debate de um dia inteiro sobre o mercado de trabalho, sobre as dificuldades que estávamos a sentir e, na altura, chegámos à conclusão que se tivéssemos 40 mil pessoas teríamos dado emprego a essas 40 mil. Já estávamos a falar, nessa altura, de uma grande carência de mão-de-obra no setor, até porque estava a crescer. Houve uma medida que tentámos colocar no Orçamento do Estado, mas acabou por ser chumbado que era a redução do IVA que vinha dar um alento enorme. Na altura, com a reposição da taxa intermédia criámos 30 mil postos de trabalho. Com a pandemia, o setor perdeu muita mão-de-obra, porque muitos dos seus trabalhadores saíram para outras áreas de atividade porque como estávamos encerrados procuraram outras atividades, onde podiam trabalhar. E por isso não só a situação não se resolveu como também se agravou. A partir do momento em que as atividades começaram a abrir e isso notou-se muito nos meses de verão – principalmente no final de julho e agosto – muitas não conseguiram abrir porque não tinham trabalhadores. Isto acontece porque já tínhamos uma carência que foi agravada por aqueles que não queriam ficar inativos e o facto de terem ido trabalhar para outras atividades não conseguem de um momento para o outro regressar às nossas empresas e podem nem sequer estar interessados em voltar. Outros saíram do país, outros estão a receber subsídios de desemprego e apoios sociais que não querem dispensar. Temos uma dificuldade enorme em encontrar pessoas para trabalhar.

Essa necessidade mantém-se nos 40 mil ou já é superior?
Ainda não fizemos essa avaliação. Mas andará muito à volta disso, porque não resolvemos o problema da carência de trabalhadores antes da pandemia e agora à medida que as atividades vão abrindo vão percebendo essa dificuldade. É evidente que a procura não é a mesma de 2019, nem pouco mais ou menos, e as empresas também aprenderam a trabalhar um bocadinho mais comprimidas pela falta de mão-de-obra que temos, mas há muitas empresas a quererem abrir e estão encerradas por não terem trabalhadores. Vamos continuar a sentir essa dificuldade à medida que formos retomando o nosso volume de negócios, a nossa faturação e se nada for feito vai ser dramático. 

No caso da hotelaria fala-se em ir buscar trabalhadores a outros países…
A AHRESP tem feito várias propostas ao Governo sobre esse tema porque percebemos muito cedo que iríamos ter essa problemática a saltar-nos para cima da mesa. Nas reuniões que tivemos por causa do Orçamento do Estado com os diversos partidos políticos na Assembleia da República também falámos muito sobre esse problema e o que nos parece é que vamos ter de atuar em várias vertentes, não é só numa. A questão do IVA era importante para mantermos postos de trabalho, porque a redução do imposto, ao contrário que do ouço em vários debates, em que aqueles que estão contra dizem que não baixamos o preço ao consumidor e é uma medida segmentada porque não é para todos os setores de atividade, esses argumentos do nosso ponto de vista não fazem sentido porque o objetivo não é baixar o preço ao consumidor. O objetivo é que a empresa fique com tesouraria direta que pode ser canalizada para o investimento que é bem preciso. Este setor não pode ficar parado e ficou quase dois anos e precisa de manter os seus postos de trabalho. A outra medida que temos vindo a falar é que não temos pessoas para trabalhar, sabemos os problemas demográficos que temos, não é um problema só deste setor nem é só em Portugal. É importante que o Governo possa criar condições para termos imigração organizada, ou seja, que seja mais fácil obterem vistos de entrada para poderem trabalhar e também compete ao Estado e às empresas criarem condições para que estes imigrantes possam trabalhar em condições dignas. Isto significa que tem de ser tratada a questão da habitação, da inclusão e das famílias destes imigrantes. Isso é possível fazer-se. Tem é de haver um esforço de todos – não é só do Estado, não é só das empresas – mas já há empresas que por auto recriação vão ao mercado de outros países buscar trabalhadores e tratam da sua habitação, mas para as micro empresas isso é extremamente oneroso. Mas temos de trazer pessoas para trabalhar para Portugal porque não temos as suficientes.

Além do problema da demografia é também porque os portugueses não estão interessados em trabalhar nestas atividades?
Temos um problema demográfico e também temos um problema dos desencorajados. Os últimos dados do Banco de Portugal dizem que, desde a pandemia, crescemos em mais de 150 mil desencorajados. E os desencorajados, de acordo com o Banco de Portugal, são aquelas pessoas que não têm trabalho mas também não estão à procura. E não constam das taxas de desemprego. Porque é que isto acontece? Por variadíssimas razões e isto obviamente afeta as nossas necessidades. 

E qual é a solução?
É preciso trabalharmos muito em programas de formação de curta duração. Não podemos de um momento para o outro termos pessoas qualificadas nos nossos setores que veem de outras atividades e não sabem trabalhar. Mas também não temos tempo para dar formação de dois, três anos em escolas. Precisamos de conteúdos de muita curta duração para lhes explicarmos o básico para poderem começar a trabalhar e depois ao longo da vida continuarem a ter formação contínua. Mas é preciso permitir que haja esta transição em setores, onde não há tanta procura, para que esses trabalhadores possam ser transferidos para a restauração, onde temos muita procura e lhes podemos dar uma formação rápida para poderem começar a trabalhar. Depois também temos outras propostas que temos vindo a fazer, como é o caso da necessidade de criarmos plataformas mais ágeis que cruzem a oferta com a procura porque o recurso aos centros de emprego por parte dos nossos empresários é sempre muito difícil. Os candidatos que veem nunca estão aptos para trabalhar, nunca há correspondência entre a oferta e a procura. Tudo isto precisa de ser agilizado, mas diria que agora para resolver o problema de uma forma mais rápida não temos outra alternativa se não pensarmos na imigração organizada. Também perdemos pessoas que saíram daqui durante este período, estavam cá sem emprego e voltaram para o país de origem e nós precisamos de encontrar soluções para isso. E todos sabemos muitos bem quais as dificuldades que existem para trazer um imigrante para trabalhar em Portugal: é um processo demorado e complexo, sem falar na burocracia. 

Mas com um Governo em gestão deverá ser mais difícil implementar um programa desses…
Sim, mas esta história de o Governo estar em gestão não pode ser desculpa para não se fazer nada, porque há muita coisa que pode ser feita. Pode estar em gestão, mas não podemos parar até que haja um Governo formado que ainda vai demorar algum tempo e nós não temos esse tempo. 

No caso da imigração depois haverá o problema da língua…
Por isso é que nestas propostas que a AHRESP tem vindo a fazer privilegiamos sempre os PALOP porque é mais fácil. Se estivermos a falar de outros países temos sempre que contar que tem de ser primeiro fornecida a formação na língua. Temos esta vantagem de termos um conjunto de países, onde se fala a língua portuguesa e é aí que devíamos fazer primeiro o nosso foco, numa primeira fase.

A retoma pode ficar comprometida com a falta de mão-de-obra?
Exatamente e depois há ainda uma outra vertente que já propusemos ao Governo e rapidamente temos que pensar em fazer alguma coisa que está relacionada com a valorização das profissões do setor. Enquanto as profissões não forem valorizadas não é possível atrair pessoas para as nossas empresas. Precisamos de encontrar fórmulas que nos permitam valorizar estas profissões e que começa desde logo pela denominação das nossas categorias que está errada e precisa de ser refletida. Isto é um trabalho onde os sindicatos não podem deixar de fazer parte. Já existem muitas empresas que têm perspetivas de carreira dos trabalhadores interessantes e que lhes permite subir gradualmente na empresa, fazendo outras coisas porque o setor tem essa capacidade. Só precisamos de encontrar fórmulas mais ágeis para disseminar estas boas práticas que existem em algumas empresas por todo o tecido empresarial, claro que o tecido empresarial não é igual. Temos micro empresas que têm muito mais dificuldades, mas precisamos de encontrar mecanismos que valorizem estas profissões, que as tornem mais atrativas, que façam com que os jovens também queiram trabalhar neste setor, porque sabemos que é um setor que não é fácil porque trabalha sábados, domingos e feriados, à noite, mas também há outros setores em que isso acontece. 

É o caso da aviação. Mas ser hospedeira é mais sexy?
O que faz uma hospedeira? Não serve cafés, laranjadas e chás? Ainda é muito menos do que deve ser um empregado de mesa num restaurante. Um empregado de mesa num restaurante é um vendedor, até pode ser um relações públicas, até pode ser a peça mais determinante no espaço. Quando vamos a um restaurante e se a comida não é espetacular mas o serviço é estrondoso voltamos ao espaço. Mas se for ao contrário, isso não acontece. Se o serviço for péssimo, mas a cozinha for boa não volta lá porque foi mal atendida. E quem diz o empregado de mesa diz muitas outras: empregada de andares que tem de ser muito valorizada. Temos que ter as nossas famílias a dizer: “Eu quero que o meu filho seja empregado de mesa”. Hoje em dia há alguém que pense assim? Ninguém. 
E com o aproximar dos jantares de Natal e da Passagem de Ano este problema ganha ainda maiores dimensões?
Estamos já a sentir alguma procura em relação ao fim de ano e aos jantares de Natal que ficaram adiados do ano passado. Há uma vontade das pessoas em se voltarem a juntar se tudo continuar a correr razoavelmente como até agora, mas a falta de mão-de-obra é mais uma dificuldade. Como já disse, continuamos a ter empresas que não abriram porque não têm pessoas. E não é um problema dos centros urbanos, temos empresas em territórios de baixa densidade que estão com muita dificuldade em abrir espaços porque não tem pessoas.

O problema é do salário que é pago?
Hoje em dia já ninguém paga os salários que são tabelados como mínimos nas convenções coletivas. Ninguém consegue encontrar trabalhadores por esses valores. O problema não é o salário. É verdade que, no ano passado, não fizemos atualização salarial porque as empresas estavam fechadas. Vamos agora começar as nossas negociações com os sindicatos, temos sempre uma tabela de mínimos, mas ninguém está a contratar pelos valores que estão outorgados entre empresas e sindicatos.

Qual é o valor mínimo?
As empresas têm que pagar o salário mínimo ou acima, mas no salário mínimo temos muito poucos trabalhadores porque o mercado está a funcionar e se não há pessoas para trabalhar não é pagando os valores mínimos que as empresas conseguem arranjar trabalhadores. 

A partir de janeiro irá aumentar para os 705 euros… 
Isso tem sempre um peso considerável no setor porque tem um efeito que é preciso termos cuidado. Os empresários desejariam pagar muito mais, isso está fora de questão, até porque o turismo são pessoas, enquanto há outros setores que estão confrontados com temas como a robotização, a questão de perdermos pessoas para dar lugar à tecnologia é um tema que não se coloca no nosso setor. Já há hotéis com robots, mas isso são nichos. São situações e experiências que não vão ser massificadas porque o turista o que quer é ter experiências, é ter contactos com as pessoas. Temos que incorporar a digitalização, as ferramentas digitais mas com elas criarmos propostas de valor para os nossos clientes. E, como tal, não acredito que os nossos empresários não queiram pagar muito bem aos seus colaboradores. É evidente que querem. Agora em relação ao salário mínimo é preciso ter atenção que este tem uma correlação com fatores mensuráveis: nível de crescimento da economia, inflação e ganhos de produtividade. E são fatores mensuráveis que devem ser vistos para que se proceda a este aumento. Face a estes fatores e aos seus resultados é que se deve levar ou não a este tipo de aumento. Isto deve ser analisado, coisa que não tem sido feita e, pelos vistos, não vai ser feita outra vez.

Acaba por ser uma medida política?
Exatamente e isto obviamente tem um efeito significativo nos nossos setores porque temos uma tabela de vencimentos em função dos níveis a que as categorias se encontram. Não é possível ter toda a gente no nível 1. Estão aqui as categorias menos qualificadas e depois vai subindo. Quando se mexe no salário mínimo isso impacta com todas as categorias para cima. Não se pode pôr toda a gente a receber o mesmo, o aumento que for decidido para o salário mínimo vai ter que ser repercutido nos outros níveis. É evidente que isso tem um grande impacto nas nossas atividades e como dizia recentemente António Saraiva da CIP há setores e setores. Há setores que facilmente acomodam esses aumentos. Há outros, como é o caso da restauração e do alojamento que foram impactados de forma muito negativa com a pandemia, que torna difícil acomodar e fazer aumentos salariais. Se tivermos equilíbrios é mais fácil.

Que tipo de equilíbrios?
Se não tivéssemos os aumentos das matérias-primas, os aumentos da energia, os aumentos dos combustíveis, um IVA que continua na taxa máxima para as bebidas e intermédia para a alimentação, se houver aqui uma compensação torna-se mais fácil. Nunca ninguém nos ouvirá dizer que estamos contra a subida do salário mínimo, agora é preciso perceber se as nossas empresas têm capacidade de acomodar esses efeitos do salário mínimo. Isto não estica e a estrutura de custos das nossas empresas cerca de 60% são custos laborais. Porque em cima do salário ainda temos os custos laborais, os impostos que recaem sobre esse valor e isto é que encarece tudo. Não acredito que as confederações não tenham o desejo de pagar cada vez melhor aos nossos colaboradores. Se calhar, como disse António Saraiva, tem de haver fatores de diferenciação: há setores de economia em que este aumento não significa nada e é perfeitamente acomodado, mas há outros que vão ter muita dificuldade.

E como vê a implementação de medida como o IVAucher?
A AHRESP também fez várias propostas ao Governo sobre a necessidade de dinamizar o consumo, fomos olhar para aquilo que se fazia na Europa e sugerimos alguns exemplos. O caso, por exemplo, do incentivo ao consumo do Reino Unido foi um dos casos que correu melhor, mas o Governo não acompanhou estas propostas e criou uma outra medida de dinamização ao consumo que foi o IVAucher. Dissemos desde o início que entre ter o IVAucher ou não ter nada que venha o IVAucher. Agora o efeito e que alertamos desde o início é que não seria aquele que iríamos pretender. E, mesmo assim, tivemos várias conversas com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ele corrigiu a medida variadíssimas vezes – porque a medida inicialmente tinha encargos para as empresas e era mais complexa para o consumidor porque tinha que associar um cartão – a medida ficou muito mais simples só que foi tudo muito devagarinho e a comunicação não passou bem porque na fase em que o consumidor devia estar a arrecadar IVA para depois gastar nos nossos estabelecimentos, ainda não tinha bem qual era a perceção de como é que a coisa funcionava. Por isso é que pedimos para prolongar a medida da arrecadação da receita. O Governo entendeu, na altura, que não e, como tal, não houve grande adesão. As pessoas agora já sabem como é que funcionam, mas o valor acumulado foi inferior.

O ideal seria continuar a medida?
Fazia sentido porque a medida já está mais reconhecida pelos consumidores, os empresários que entretanto também quiseram puderam aderir. Mas de qualquer das formas não é a campanha de dinamização do consumo que a AHRESP desejaria que acontecesse e não vai salvar nada. 

Há quem tenha dito que era uma medida para ricos…
É evidente, mas por isso é que dissemos que a medida não ia cumprir os objetivos que todos desejaríamos. Era mais fácil imputar o dinheiro que colocaram como dotação no IVAucher na descida do IVA porque era menor. Outro dos argumentos daqueles que estão contra a descida do IVA é que era uma medida que teria custos porque o Estado não arrecadava o mesmo nível de receitas e portanto alguém tinha que pagar tudo isto. É um facto, mas se olharmos para o nível de receita do IVA e se baixarmos de 13% para 6% ou de 23% para 13% iríamos ter uma menor receita fiscal, mas não podemos olhar só para o IVA. Porque depois há outros impostos que sobem, como a TSU porque mantemos postos de trabalho, é a questão do subsídio de desemprego que cai, etc., há aqui uma compensação. E para não nos acusarem de não termos dados concretos voltamos a pedir à PwC para nos fazer uma avaliação e para dizer que custos é que esta medida teria. E o custo que esta medida teria era inferior à dotação que colocaram no IVAucher. Foram opções que foram tomadas. 

E em relação ao próximo Orçamento do Estado vão apresentar as mesmas sugestões?
Se há característica que este setor tem é a nossa capacidade de resiliência. Vamos resistindo, vamos insistindo e a AHRESP não pode ser diferente, representa estas vozes dos empresários e das empresas e temos de voltar a fazer aquilo que nos compete: voltar a insistir com estas medidas que acreditamos que são positivas para o setor, para a economia e para os seus trabalhadores. Vamos ver o que vai acontecer. Mas já estamos a preparar um conjunto de propostas que devem ser tidas em conta pelo próximo Governo. Vamos ajustar face aquilo que estamos a viver agora, mas muitas delas, estão relacionadas com medidas que foram apresentadas, como é o caso do IVA. Curiosamente fizemos uma ronda pelos principais partidos na Assembleia da República na sequência do envio das nossas propostas e nenhum dos partidos com quem nos reunimos disse que estava contra a medida. O único grupo parlamentar que não se manifestou relativamente a esta proposta foi o PS. Não chegámos a perceber qual o partido que iria apresentar em sede da especialidade. 

Por fim, com a abertura das discotecas assistimos ao fim das festas ilegais?
O facto do setor da animação noturna ter aberto mesmo com algumas restrições – nas discotecas continua a ser pedido o certificado digital – é evidente que permitiu que a camada mais jovem tivesse locais adequados e devidamente controlados para poderem ter períodos de lazer. Tudo serenou, tal como dissemos que isso iria acontecer.