Bolseiros da FCT. “Penso que nem existimos para o Governo. Somos invisíveis”

Bolseiros da FCT. “Penso que nem existimos para o Governo. Somos invisíveis”


Ana, Afonso, Rui, Laura e Ana Isabel são bolseiros da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Apesar de estarem gratos por terem a oportunidade de prosseguir para o terceiro ciclo de estudos com o apoio da agência que controla o financiamento da Ciência, apontam o dedo ao Estado e sugerem mudanças na carreira científica.


“O que me levou a desistir foram várias circunstâncias, muitas delas agravadas pela covid-19 e pela precariedade do mundo científico. Fui para o INL em fevereiro de 2020, comecei a ter induções para laboratórios. Chegou marco de 2020, fiquei parada até junho-julho. Induções a 100% voltaram em novembro. Entretanto, acabou o contrato da minha orientadora e acabei o ano letivo com 8 meses de atraso”, começa por explicar Ana Martins, mestre em Ciências Farmacêuticas pela Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e doutoranda em Engenharia Biomédica no Instituto Superior Técnico.

A jovem de 28 anos realizou um estágio no INESC-MN entre março de 2016 e janeiro de 2017, tendo este consistido na microfabricação de microagulhas para administração de fármacos. “Adorei os processos, as máquinas, a fabricação e a ponte entre a minha área da saúde e a da engenharia que pode ser feita através da engenharia biomédica”, adianta, declarando que “queria o melhor dos dois mundos” por sentir-se fascinada pelos processos industriais, laboratório, controlo de qualidade, eficiência, área de ensaios clínicos, adaptação e otimização de processos e formulações farmacêuticas.

“Trabalhar como farmacêutica era o meu sonho. No entanto, descobri uma paixão pela área da microfabricação, integração de sistemas e engenharias. Gosto de ambas. Infelizmente, a realidade do Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia (INL) baseia-se um pouco na precariedade dos pós-doutorados mais novos e o contacto com a mesma fez-me ver que o preço que estava a pagar pelo doutoramento – emocional, tempo, recursos – era muito alto para viver de contratos precários ou para voltar a exercer como farmacêutica. Para isso basta apenas o meu mestrado”, diz a rapariga que, reconhecendo que os bolseiros têm de cumprir as atividades do plano, podendo este sofrer alterações, ficou desmotivada por alguns motivos para além do surgimento do novo coronavírus.

“A minha orientadora não foi substituída, apesar de necessitarmos da sua presença – prática comum em muitos centros de investigação para as pessoas não passarem para o quadro. Concorri a bolsas excecionais, mas a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) realizou um concurso onde podíamos pedir extensão até 12 meses”. E Ana pediu oito, o prazo que lhe pareceu “mais justo”. “Em vez de dar a extensão a toda a gente, começou a dar aos poucos, o que compreendo, por ordem e data de finalização do doutoramento”.

Como receou não conseguir ter tempo para cumprir com o contrato sem penalização, “vendo colegas com doutoramento sempre à procura de contratos, muitos só com bolsas de pós-doutoramento, estando numa situação instável”, optou por sair e enveredar pela área à qual se dedicou no primeiro e segundo ciclo de estudos. “Na vertente farmacêutica, tenho muitas oportunidades, bons vencimentos e, como há falta de farmacêuticos na área urbana de Lisboa, oferecem-nos contrato sem termo. Não pensei duas vezes, ainda por cima gostando de farmácia”, revela, admitindo, porém, que sofreu psicologicamente “por desistir de um sonho”.

“Não tinha noção da tamanha precariedade até ir para este Instituto. Sem publicações científicas, dificilmente passamos em concursos, é o ‘publish or perish’”, numa tradução literal para português, “publicar ou perecer”. “A covid-19 e a ameaça de outro confinamento comprometia as minhas atividades. E estava dependente da boa vontade do júri da FCT para saber se tinha mais um ano ou não, sendo que no final da luta poderia estar no desemprego à espera ou andar de bolsa em bolsa”, sublinha, confessando que demorou aproximadamente seis meses a tomar a decisão final. “Saí antes de passar os dois anos, pois, a partir desse prazo, temos de devolver o montante da bolsa caso não cumpramos o plano de trabalho”, esclarece a antiga investigadora associada do INL.

“O dinheiro é mais do que suficiente para fazer uma vida e estudar, principalmente, em Braga. Em Lisboa, é mais ‘apertadinho’, mas vive-se sem grandes estrangulamentos. Não dá para fazer grandes planos, empréstimos, mas é uma bolsa de estudo”, clarifica, referindo-se ao valor do chamado subsídio de manutenção mensal que corresponde a 1104,64 euros. Agora, Ana pode seguir um de dois caminhos: pagar o doutoramento do próprio bolso ou ser financiada por outra entidade que não a FCT.

“O meu principal sonho será um dia concluir o meu doutoramento, talvez após a pandemia. Adorava trabalhar em investigação, mas não tenho perfil para viver sem estabilidade. A curto e médio prazo tenciono continuar na farmácia onde estou, que me dá estabilidade e qualidade de vida. A longo prazo logo se vê”, conclui a antiga bolseira que esteve integrada no projeto “Ferramentas nano para gigantes raros: rastreio inovador do cancro da próstata em sangue periférico”. O mesmo foi financiado pelo programa “Sistema de Apoio à Investigação Científica e Tecnológica (SAICT) – Projetos de Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico (IC&DT)”. Tendo despesas elegíveis de 239, 956.93 euros, de acordo com informação disponíve no site oficial do INL, 187, 088.39 euros recebidos do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional e 52, 868.54 de financiamento nacional.

“Não vamos ser cínicos e dizer que o dinheiro não importa” Aos 24 anos, Afonso Marques é bolseiro de doutoramento no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP) da Universidade de Coimbra. Apesar de sempre ter apreciado as disciplinas de Física e Matemática, no Ensino Secundário ponderou candidatar-se a Medicina. “Porque o meu irmão mais velho é médico e também um bocadinho pela pressão dos pais. Mas escolhi Física e Química como opcionais no 12.º ano”, esclarece o rapaz que já no 9.º ano havia sido o vencedor das Olímpiadas de Física, realizadas a nível regional e, neste caso, em Coimbra. Por isso, em 2015, ingressou em Engenharia Física.

“No primeiro ano, e acho que é comum, vim um bocadinho sem saber aquilo que queria: se seria mais a investigação, uma empresa… No 2.º ano, fiz um estágio de verão e tive o incentivo de um colega que estava a fazer a tese de doutoramento. E aí pensei ‘A investigação é interessante’. A minha é mais académica até: não se conclui num produto, mas sim em conhecimento. No quarto ano, candidatei-me a um estágio para entrar no Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN). Para minha surpresa, fui aceite. Gostei mesmo daquele ambiente de confraternização e troca de ideias”, lembra, adicionando que é a terceira vez que se candidata a uma bolsa de doutoramento lá e também a junior fellowships. No entanto, está ciente da existência de “uma vertente de seleção aleatória”.

Deste modo, inscreveu-se no doutoramento em agosto e iniciou-o durante o mês corrente. “O curso é muito polivalente: aprendemos Informática, Física, Engenharia e Gestão. Acabamos por não sair especializados em nada, mas com conhecimentos suficientes para trabalhar em qualquer área”, aponta, indicando que tem colegas a desempenhar funções em hospitais, empresas e até a fazer trabalho de eletrónica.

“Estou associado a detetores gasosos que podem ser utilizados para procura de matéria escura ou para a procura do hipotético decaimento beta duplo sem emissão de neutrinos, que foi o tema da minha tese de mestrado, mas também tem aplicações no dia-a-dia: por exemplo, nos aeroportos para detetar explosivos, em algumas aplicações de Medicina, por isso, queria enveredar por esse caminho”, elucida, acrescentando que a tese de doutoramento que está a elaborar “será mais dedicada a conhecimento aplicado a eventos raros”. Por enquanto, a par da atividade desenvolvida no LIP, o jovem dá apoio às aulas laboratoriais, na medida em que, no âmbito da pandemia, foi necessário desdobrar as turmas em vários turnos e, assim, seria necessário o dobro dos professores para assegurar o funcionamento das aulas. Lecionou entre o final de abril e junho deste ano e, neste primeiro semestre do ano letivo 2021-22, lecionará por cerca de dez semanas. “Quis dar uns passos para me adaptar àquilo que serão os próximos anos. A maior parte dos laboratórios de investigação não tem muito financiamento além dos concursos e projetos nacionais da FCT. Ou seja, não pode abrir uma bolsa de doutoramento muito facilmente”.

“O valor atribuído à investigação é insuficiente: por muito boa vontade que haja, o dinheiro é gasto e não estica. Portugal e a União Europeia têm uma série de objetivos para investir em Ciência: falamos em ciência do espaço, alterações climáticas, etc., e se calhar não se investe muito em ciência ‘académica’. Queremos investir para criar determinado produto e criar tecnologia que pode ajudar a desenvolver o mesmo, mas não se investe de forma suficiente no conhecimento que permite atingir este desenvolvimento”, garante o rapaz cujos objetivos primordiais, para o futuro, passam por desejos como ser professor e investigador, mas também ter uma família grande.

“E há os assuntos da moda que recebem mais atenção. Por exemplo, agora, e bem, houve muito investimento na bioquímica, na área do desenvolvimento de terapêuticas relativas à covid-19. Se temos o mesmo bolo, havendo mais financiamento em determinadas vertentes, há áreas que não recebem financiamento para fazer o seu trabalho. Os assuntos da moda vão mudando, mas parece-me que têm uma bonificação na avaliação do mérito do trabalho em avaliações para financiamento”, transmite o estudante que, em 2015, esteve no top dos melhores alunos da instituição de Ensino Superior que frequenta.

“Isto não é objetivo. Parece que é um bocadinho uma lotaria. A partir do momento em que gastamos milhões na TAP e outras coisas, entendemos que se dobrássemos a dotação orçamental para a investigação científica, isso faria a diferença na vida de muitas pessoas. No CERN, costuma dizer-se que aquilo que investimos, recebemos de volta a dobrar. Aqui não há essa cultura de investimento na ciência. Aqueles que a têm são, habitualmente, os países mais desenvolvidos”, salienta, deixando claro que o investimento não pode ser feito somente a curto prazo. “Devia ser completamente apolítico e a longo prazo. Não há a cultura da meritocracia. Já tive colegas a dizerem-me ‘Gostava de fazer investigação’ e eu respondo ‘Não venhas para cá’. Uma colega minha acabou o curso e está a ganhar mais do que eu numa empresa. Nós, os bolseiros de investigação, descontamos voluntariamente cerca de 80 e tal euros por mês para a Segurança Social. Fico a pensar assim ‘Se calhar devia tomar outra decisão’”, afirma aquele que já foi tutor voluntário de Análise Matemática, esforçando-se por ajudar os alunos financeiramente carenciados, e que desempenhou outras funções extra-curriculares, como ser presidente da Associação Portuguesa de Estudantes de Física, cujo impacto na sua formação valoriza.

“Quando acabar o doutoramento, gostaria de ser contratado como investigador ou professor. A Ciência é interessante, claro, mas o interesse não paga as contas. Não vamos ser cínicos e dizer que o dinheiro não importa. Se recuasse no tempo, voltaria a escolher Engenharia Física. Orgulho-me do meu percurso académico e também do não-académico, pois deu-me valências que acabam por ser um bom complemento. Se não tivesse escolhido este curso, teria enveredado por Medicina: podia estar melhor ao nível financeiro, mas não sei se seria tão realizado aos níveis intelectual e psicológico”.

Se consultarmos o documento relativo ao Financiamento Plurianual de Unidades de I&D 2020-2023, da FCT, podemos concluir que, atualmente, o LIP tem 85 investigadores doutorados integrados, uma classificação final excelente, um financiamento base de 1.547,000 euros e apoio programático que assenta em oito bolsas e dois contratos. Deste modo, o financiamento total final corresponde a 2.269,000 euros.

"A precariedade assusta-me" Mas o financiamento parco para as necessidades parece ser um problema geral. Rui Rodrigues tem 29 anos e, depois de ter tirado a licenciatura em Biologia e o mestrado em Biologia Celular e Molecular na Universidade de Coimbra, rumou à capital para tirar o doutoramento, que terminará em dezembro, em Ciências Biomédicas, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, especializando-se em neurociência. “A paixão pelo estudo do cérebro surgiu no ‘salto’ entre a licenciatura e o mestrado”, começa por narrar o rapaz que, neste momento, estuda o papel da neurogénese – processo de formação de novos neurónios – adulta dos canabinoides e do exercício físico na depressão. 

“É uma história um bocado complicada porque existem vários módulos de financiamento. Há para institutos, projetos, recursos humanos, etc. No caso dos bolseiros, é muito limitado. O grande problema é que não há dinheiro para pagar a pessoas doutoradas. Acabamos o doutoramento e, à partida, as unidades de investigação onde estamos inseridos não têm maneira de nos assegurar. E, de certa forma, tem a ver com a instabilidade da área científica. E, depois, não nos podemos esquecer de que há pessoas doutoradas, com enormes capacidades, que não podem exercer as suas funções cá e mudam de país”, declara, falando do fenómeno que tem vindo a ser apelidado como ‘fuga de cérebros’. 

Rui tem um vasto currículo, lecionando no mestrado e no doutoramento em Neurociência e tendo já sido co-tutor de um estudante de Medicina, no ano letivo de 2019-20. Porém, tem receio do futuro que o aguarda e, ainda que deseje que o panorama português se modifique, concorda com Ana e Afonso naquilo que diz respeito ao choque que os jovens têm quando trilham o início do percurso na investigação. “Por um lado, somos reconhecidos como estudantes e, por outro, somos trabalhadores e não somos reconhecidos como tal”. 

"Ainda há muito trabalho pela frente. Acho realmente que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior – mas também o Governo e o país como um todo – devia apostar na mudança deste panorama", recomenda o estudante que já participou em 24 conferências e 19 cursos/workshops. "Tenho quase 30 anos e partilho casa porque é impossível pagar uma renda sozinho. Tenho discutido muito esta questão com colegas que estão noutros pontos do país e, em Lisboa, é especialmente difícil viver com um subsídio deste género. Não estou aqui a penar, não é por aí, mas a verdade é que temos de saber bem gerir aquilo que recebemos. Por um lado, tenho esperança de que isto mude: penso que mudará porque a investigação em Portugal tem muito valor e é inevitável que nos ajustemos para conseguir competir com o resto da Europa e do mundo", constata, realçando que "a maior parte dos países da União Europeia está mais avançado no reconhecimento do valor dos cientistas". "Por outro lado, a precariedade assusta-me porque as posições, a longo prazo, são muito limitadas e há pessoas de 40, 50 anos que estão nesta vida e não têm um trabalho estável. Mas costumo dizer que nada é fácil hoje em dia, por isso é continuar a lutar por condições mais dignas".

Em relação aos dados financeiros do Instituto de Medicina Molecular, a FCT divulgou que o mesmo tem 193 investigadores doutorados integrados, uma classificação excelente, um financiamento base de 3.166.800 euros e apoio programático que se desdobra em 21 bolsas e seis contratos, sendo o financiamento total final de 4.476.800 milhões de euros.

"O principal problema é que vão mudando as regras do jogo" Além de Ana e Afonso, também Ana Isabel Silva se encontra alinhada com Rui. Depois de ter tirado a licenciatura em Bioquímica e o mestrado em Neurobiologia na Universidade do Porto, tornou-se investigadora no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da mesma instituição. “Neste momento, estudamos psicoestimulantes – no meu caso, metanfetaminas – e tentamos perceber como estas drogas afetam as células imunes do nosso cérebro. E isto contribui para que as pessoas fiquem mais dependentes e tenham mais recaídas. O meu projeto em específico é perceber uma citocina anti-inflamatória e, se aumentando o estado anti-inflamatório, conseguimos reverter os efeitos da metanfetamina. E se conseguimos aumentar o tempo de abstinência”, revela, considerando que “o principal problema é que vão mudando as regras do jogo”.

Na ótica da jovem de 26 anos, que chegou a ponderar seguir Direito, “não há carreiras nem concursos bem definidos”, sendo que “precisávamos de um calendário mais estável, mas ninguém sabe quando os concursos abrem ou quando saem os resultados. As pessoas ficam um bocadinho à deriva e, como estão à espera, ficam alguns meses sem trabalho. E trabalham sem receber para continuarem a enriquecer o CV, e ficam com buracos nas contribuições para a SS. Quem tem capacidade para continuar nessas condições, pode continuar, mas quem não tem não se pode dar a esse luxo. Discriminamos não com base no mérito, mas pela parte financeira. Deviam ser abertos concursos para a carreira científica: as pessoas têm de ser integradas”.

"Antigamente, quase toda a gente pensava na carreira da academia ou em alternativas. Hoje, sabem que é muito difícil continuar ou terão de emigrar. A outra alternativa, ser professor do Ensino Superior… Bom, praticamente não se abre concursos. A malta da minha geração nem pensa que isso alguma vez será possível! Temos professores mais velhos a reformarem-se e, em vez de haver um concurso para garantir um novo professor, a estratégia é terem professores convidados", denota aquela que se autodescreve como ativista pelo fim da precariedade na Ciência e já escreveu crónicas como "O Estudante como Utilizador-Pagador" no esquerda.net. "Por exemplo, um investigador que é convidado. Então, temos 3 ou 4 convidados com contratos muito precários e a ganhar muito pouco. Mas, na verdade, não têm todos os direitos de um professor de carreira como o salário ou o horário. Acho que faz sentido que haja pessoas com outras carreiras e que deem aulas, mas estamos a usá-los como a 'norma' de lecionar nas faculdades".

"Precisávamos de um calendário mais estável, mas ninguém sabe quando os concursos abrem ou quando saem os resultados. As pessoas ficam um bocadinho à deriva e, como estão à espera, ficam alguns meses sem trabalho. E trabalham sem receber para continuarem a enriquecer o currículo, ficando com buracos nas contribuições para a Segurança Social. Quem tem capacidade para continuar nessas condições, pode continuar, mas quem não tem não se pode dar a esse luxo. Discriminamos não com base no mérito, mas pela parte financeira", lamenta a rapariga que faz parte do grupo de investigadores de uma das 312 Unidades de I&D com financiamento aprovado para o período 2020-2023. "Deviam ser abertos concursos para a carreira científica: as pessoas têm de ser integradas. E os institutos não podem ter o regime que têm neste momento, pois têm de pertencer às universidades".

"Portugal está sempre a começar do zero: quando podia chegar ao final – pessoas com muita experiência e grandes contributos para dar -, o país diz que não tem espaço para elas. As oportunidades vão estreitando. Acho que todos, na minha equipa, sabemos que não há grandes perspetivas e ficamos até ver onde isto dá, mas sabemos que, a qualquer momento, vamos ter de saltar fora. E isto faz com que os melhores estudantes nem queiram ficar na faculdade e na investigação", expõe, alegando que se trata de "uma renovação de gerações de investigadores e professores um bocado perversa. E se queremos que os investigadores contribuam para a sociedade civil e garantam soluções para o país em diversas áreas, temos de garantir que têm estabilidade para terem uma voz e pensarem em projetos mais a longo prazo porque é tudo muito imediatista".

Para Ana Isabel, "há muita coisa para melhorar na Ciência, mas, enquanto não tivermos os cérebros da mesma e os seus agentes resolvidos – as pessoas entrarem nas carreiras com base no mérito -, não podemos pegar nessa massa crítica toda e pensar como melhorar o sistema científico em Portugal. Acho que nunca nenhum Governo quis resolver nada de raiz", acusa, manifestando o seu desagrado perante a existência de "mão de obra barata, bolseiros e investigadores que não têm todos os direitos na faculdade – como serem candidatos ao Conselho Geral – e tem havido este complô entre governos e reitores. Sem investigação, as universidades não eram universidades: eram escolas. Se têm avaliações tão boas, devem-na aos institutos e investigadores".

"Somos uma minoria" Laura Neiva, da mesma idade que Ana Isabel, está totalmente de acordo com esta linha de pensamento. Licenciada em Criminologia, pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto e mestre em Crime, Diferença e Desigualdade pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, não tem dúvidas: “Todas as lacunas estão relacionadas com uma geral: que é a própria definição de carreira científica. O que é uma carreira científica? E balizar isso, que tem consequências nos modos como as políticas governamentais depois são implementadas, também depende de nós bolseiros… O assumirmos quem somos, como construímos um currículo, o que é a nossa carreira e o que é sermos cientistas”, recomenda a doutoranda que desenvolve a sua investigação de Doutoramento em Sociologia, intitulada de “Expectativas de agentes policiais sobre Big Data no sistema de policiamento e investigação criminal em Portugal” no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 

“E acho que a credibilidade da ciência, da carreira científica, do cientista tem vindo a desmoronar-se também pela imagem social popularizada que se cria em torno disso. Quem pensa na importância de um cientista social, por exemplo, hoje em dia?”, questiona. “A pandemia veio reforçar a crucial posição e importância dos investigadores na sociedade, em todas as áreas, embora com mais foco na área da saúde, mas senão, alguém pára para refletir sobre isso? Eu própria quando me apresento como investigadora júnior ou bolseira de investigação, a maior parte das pessoas não sabe o que é isso. Se a sociedade não está interessada, porque haveria de estar na agenda política do Governo como foco prioritário, se isso não vai ao encontro das necessidades e interesses públicos? Portanto acho que estas lacunas são parte de um problema maior que lhe está subjacente, que reside também, mas não só, na sociedade”, finaliza a jovem cujos principais temas de interesse são os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, as novas tecnologias de investigação criminal, Big Data, estudos da vigilância, policiamento e expectativas. 

“Evidentemente, ainda assim, o Governo também é responsável pela criação e disseminação desta imagem social. Se não está nas prioridades governamentais porque deve a sociedade ter conhecimento disso? É um círculo viciado que devemos quebrar! Mas a um nível prático, as lacunas que vejo são o não reconhecimento das carreiras, a estagnação científica, a não valorização académica, o não acesso a direitos básicos como de um contrato de trabalho”, remata a investigadora do Centro que tem 68 investigadores doutorados integrados, uma classificação final excelente, um financiamento base de 1.201.200 euros e um apoio programático com 12 bolsas e três contratos. O financiamento total final é de 2.095.200 euros. “Eu penso que nem existimos para o Governo. Somos invisíveis. Na verdade porque os discursos governamentais sobre nós não vendem nem angariam votos, porque somos uma minoria”.

"Com o descongelamento de carreiras e a reestruturação do sistema científico português, os jovens teriam mais oportunidades para efetivamente integrar o mundo da Ciência e da investigação em Portugal sem terem que viver sempre à margem da realidade onde ambicionam mergulhar. É sempre: um dia de cada vez, um contrato de bolsa de cada vez… E os anos passam e a maior parte de nós desiste porque nunca consegue um contrato de investigador contratado, por exemplo", explicita a rapariga que já publicou quatro artigos em publicações como a Revista Tecnologia e Sociedade, tendo publicado a tese de mestrado "Big Data na investigação criminal: previsão do risco, vigilância e expectativas sociais na União Europeia" há dois anos.

"Gostava de continuar a construir uma carreira científica, ter um dia um contrato que me orgulhasse e que me fizesse poder dizer 'Sou investigadora, mas contratada' ao invés de, entredentes, quase sussurrar 'Sou bolseira de investigação'. Até porque deveria ser motivo de orgulho ter conseguido um financiamento!", acredita, entendendo que tal acontece devido à "precariedade atual".  "A curto e médio prazo, um jovem bolseiro de investigação não pode definir nada dada a incerteza da situação em que se encontra".