Anne Boleyn. Uma ativista negra veste a pele de rainha de Inglaterra

Anne Boleyn. Uma ativista negra veste a pele de rainha de Inglaterra


A atriz Jodie Turner-Smith protagoniza a nova ficção que segue os últimos meses da vida da consorte de Henrique VIII da Inglaterra, Ana Bolena. Contudo, a escolha de casting está a gerar controvérsia: a rainha britânica não era negra.


A minissérie britânica Anne Boleyn (Ana Bolena) – nova aposta da HBO Portugal, que estreou na passada terça-feira – já está a suscitar polémica tanto entre os críticos cinematográficos como entre os internautas. Motivo: a escolha da protagonista, a atriz britânica Jodie Turner-Smith, negra e ativista.

A história transporta os espectadores até à corte do sanguinário Rei Henrique VIII, fundador da Igreja Anglicana, retratando os últimos meses da rainha consorte, decapitada por ordem do próprio marido. 485 anos depois, e em apenas três episódios, a série vai trazer de volta a década de 1530 e fazer-nos mergulhar no quotidiano e nas intrigas da corte inglesa de 1533 a 1536.

Bolena é referida muitas vezes como “uma das figuras mais pitorescas da história Britânica”, devido ao casamento turbulento com Henrique VIII, a alegada traição e pela sua singular decapitação. Além disso, a malograda rainha é vista como “uma mulher que foi contra a sociedade patriarcal com o desejo de garantir um futuro para a filha, Elizabeth”, e que teve de lidar com as consequências de não conseguir dar ao Rei um herdeiro homem. Com um elenco diversificado, a minissérie promete “trazer uma visão feminista da história ao contar os factos da perspetiva de Ana”.

Além disso, a produção pretende re-imaginar a história de vida de uma mulher “que muitos odeiam, mas pouco conhecem”. Mas os “problemas” começaram cedo: logo após o anúncio do lançamento da série, em abril, onde foi partilhada a imagem que representa a protagonista (com Turner Smith ao centro), começaram as interrogações sobre a escolha de uma mulher negra para um papel histórico da família real inglesa.

A polémica em torno da escolha de Tuner-Smith A produção conta com Jodie Turner-Smith no papel de Ana Bolena, Mark Stanley na pele de Henrique VIII, Paapa Essiedu, Barry Ward, Amanda Burton, Thalissa Teixeira e Lola Petticrew. Ou seja, a série do Channel 5 conta com três atores negros a interpretar personagens históricas brancas: Jodie Turner-Smith, Paapa Essiedu e Thalissa Teixeira – situação que tem causado um aceso debate público sobre aquela que foi uma das séries mais antecipadas do ano no Reino Unido.

E, apesar da escolha do elenco diversificado poder ser vista como uma “vitória”, foram poucos os que a celebraram, dizendo não entender “como é que uma monarca que era branca pode ser representada por uma atriz diferente dos retratos históricos”.

Laurence Fox, ator e ativista político, conhecido no Reino Unido pelas suas opiniões controversas, utilizou o seu Twitter para criticar a escolha do elenco. “Ana Bolena foi uma mulher branca heterossexual. Coloquem isso no vosso tubo da diversidade. A agenda da diversidade é o racismo. Pura e simplesmente”, escreveu Fox, sublinhando que, na sua opinião, “qualquer ator de qualquer orientação sexual, cor de pele ou tipo de corpo pode interpretar qualquer personagem. Daí dizer-se ‘representar’. Mas tem que ser algo consistente, porque de outra forma é só discriminação”.

Outro utilizador comentou na mesma rede social: “Diversidade não é falsificar a história e colocar uma atriz negra no papel de uma mulher muito branca da realeza medieval. Diversidade é fazer séries sobre mulheres negras que fizeram história para destacar as suas vidas e tirá-las do esquecimento”. Enquanto outros chegaram a chamar “tolice” à escolha dos produtores, afirmando que estes “querem mudar intencionalmente as raças de figuras históricas’’; enquanto outros defenderam que esta não é uma “boa forma de se resolver o racismo”. 

As razões dos produtores Ana Bolena já foi representada pelo menos seis vezes pela indústria audiovisual ao longo de quase 90 anos. A primeira foi no filme A Vida Secreta de Henrique VIII. Outros trabalhos incluem os papéis de Natalie Dormer na série The Tudors, Natalie Portman em The Other Boleyn Girl e Claire Foy na minissérie Wolf Hall, inspirada no livro homónimo de Hilary Mantel.

Em entrevista ao jornal americano The New York Times, Faye Ward, um dos produtores executivos da série, referiu que a intenção era “encontrar alguém que pudesse realmente representar e viver Ana Bolena, mas também ser uma surpresa para os espectadores”.

Tendo em conta que a história da Boleyn já foi representada várias vezes, quase sempre da mesma forma, os criadores da série propuseram-se a “redefinir as expectativas das pessoas em relação a ela”, conta Ward. Segundo o produtor, “a escolha das personagens para a série foi realizada através da técnica ‘consciente da identidade’ permitindo interligar as experiências de um ator às da personagem”.

Por sua vez, o ator Mark Stanley, em conversa com a RadioTimes.com, acredita que “é tudo sobre encontrar a pessoa perfeita para o papel, ao invés escolher aquilo que nós achamos melhor enquanto sociedade”. “Ana Bolena era bonita, vibrante, inteligente e a Jodie é todas essas coisas”, frisou.

Em comunicado, o Channel 5 afirma que escolher o elenco dessa forma “abre espaço para atores e artistas terem a oportunidade de trazer as suas identidades ou parte delas para uma personagem. Atores de origens minoritárias que raramente são representados no ecrã podem assim reivindicar partes das suas identidades pessoais, sem serem limitados por elas”.

Em conversa com o The New York Times, o alvo das críticas, Jodie Turner-Smith, refere que “enquanto mulher negra, eu consigo entender o que é ser marginalizada. Eu tenho experiência de vida do que é ser marginalizada e sentir-me limitada”. “Pensei que seria interessante trazer a frescura de uma pessoa negra para contar esta história”, referiu a atriz de 34 anos.

Porém, apesar de se mostrar contente com o trabalho que fez, Jodie reconhece que não é fácil para toda a gente lidar com a situação. Interrogada sobre as críticas que têm chovido sobre a escolha, a artista afirma que sabia que “as pessoas teriam opiniões e sentimentos muito fortes sobre a escolha, seja de uma maneira positiva ou negativa”. “Porque Anne é uma humana sobre a qual as pessoas sempre tiveram opiniões muito fortes”, acrescentou.

A verdadeira aparência de Ana Bolena Mas como era na realidade a rainha que acabou no cadafalso, condenada por adultério? A resposta mais honesta é que não se sabe ao certo, em grande parte porque depois da sua execução, a maioria dos documentos em que o seu nome aparecia foram destruídos.

Segundo os registos históricos, era uma mulher nascida no seio de uma respeitável família aristocrática da época – Tudor – e que ascendeu na hierarquia social graças à sua permanência na corte francesa e inglesa. Foi a “dama de companhia” de Catarina de Aragão, primeira esposa de Henrique VIII, tendo depois chamada a atenção do governador com quem se casou e teve uma filha, que mais tarde se tornaria Isabel I, a última monarca da dinastia Tudor, governando até à sua morte durante 44 anos.

Ao não dar filhos do sexo masculino ao Rei, Henrique procurou todos os meios possíveis ver-se livre da rainha, invocando adultério e incesto. Com o passar do tempo, a figura de Ana Bolena tornou-se sinónimo de uma mártir inglesa, entrou para o imaginário popular e suscitou inúmeras obras literárias e cinematográficas que cativaram o público.

Contudo, os poucos textos que sobreviveram da época descrevem-na como uma mulher de médio porte, de pele e cabelos escuros, que “cativou a corte com seu carisma”. Uma das suas poucas descrições preservadas é a obra do embaixador veneziano na corte de Henrique VIII que, depois de conhecê-la em 1532, escreveu: “Ana não era uma das mulheres mais bonitas do mundo”.

E, à época, esta não seria uma afirmação descabida, já que os seus traços “não eram convencionais para o cânone de beleza da altura”. “A sua cor escura e o cabelo preto deram-lhe uma uma aura exótica numa cultura que via a palidez branca como o leite como uma parte essencial da beleza”, escreveu a investigadora e historiadora Karen Lindsey no seu livro Divorced Beheaded Survived: A Feminist Reinterpretation of the Wives of Henry VIII, onde recolheu os testemunhos de pessoas que a conheceram em vida.

E a historiadora Alison Weir, concorda: no seu livro Henry VIII, King and Court, escreve que Ana era aparentemente de estatura média, tinha uns “hipnotizantes olhos negros” e um longo cabelos escuro, que optava sempre por usar solto. Apesar da beleza singular descrita, segundo a investigadora, a rainha conquistava sobretudo pelo carisma: “O seu encanto não estava tanto na sua aparência física, mas sim na sua personalidade alegre, elegância, humor afiado e outras habilidades. Destacou-se por saber cantar, compor música, dançar e falar”, elucida Weir na sua obra.

Dos retratos da rainha sobreviveram ao damnatio memoriae ou “condenação da memória” que se seguiu à sua execução, o único considerado fiável está exposto no Museu Britânico, em Londres. Acredita-se que se trata realmente de Ana pela medalha de chumbo que leva ao pescoço. Realizada em 1534, a joia foi oferecida à rainha com o objetivo de “celebrar a fertilidade da mulher chamada a dar ao rei inglês o filho que tanto desejava”. Quadros deste tipo tinham de ser sempre aprovados pelo monarca. 

Noutras obras, Ana Bolena é representada como uma jovem de pele branca, rosto alongado e cabelos castanhos, mas em nenhum deles a fidelidade é garantida. Até tempos recentes, aquele que está exposto na National Portrait Gallery, de autor anónimo, era considerado o mais realista.

No entanto, em 2015, um estudo descartou a possibilidade: “O sistema comparou a imagem da medalha com quatro pinturas do período Tudor e não conseguiu encontrar uma correspondência com alguns retratos”, explicou Amit Roy Chowdhury, da Universidade da Califórnia ao The Guardian. Alguns especialistas chegaram até a afirmar que a mulher representada na pintura não seria Bolena, mas Jane Seymour, a terceira das seis mulheres de Henrique VIII.