O Centro Cultural da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, foi, ontem, o palco de estreia da peça de teatro Chovem Amores na Rua do Matador. Trata-se de uma adaptação da escrita a quatro mãos do moçambicano Mia Couto, e do angolano José Eduardo Agualusa, que juntos publicaram o livro O Terrorista Elegante e Outras Histórias, de onde foi retirado o conto original agora adaptado ao palco.
Numa peça encenada por Clotilde Guirrugo e pelo português Vítor Gonçalves, juntando cinco atores moçambicanos em palco, a lusofonia vibra e expressa-se através do teatro, contando a história de Baltazar Fortuna. Um homem que “está zangado”, e que volta a uma pequena vila no Sul de Moçambique, chamada Xigovia, onde vivem as três mulheres da sua vida. O seu objetivo? Matá-las, e assim limpar da sua existência o mal-estar, o azar e as maldições que vêm delas, cada uma delas associada a um determinado episódio da sua vida. Há, no entanto (e como sempre) um problema. As mulheres em questão “não querem colaborar, não lhes apetece morrer”, e, dentro das suas próprias cabeças, já mataram Fortuna – apelido irónico, quando se tem em conta a amargura da sua vida – há muito tempo.
A história é original de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, incluída inicialmente no livro O Terrorista Elegante e Outras Obras, de 2019, que marca a primeira colaboração oficial entre estes dois importantíssimos autores da lusofonia, amigos de longa data. Em análise está, sobre o palco, uma certa ‘dicotomia’ entre o urbano e o rural, entre o moderno e o tradicional. Um choque entre “um lastro de tradições e práticas ancestrais cristalizadas nas mentalidades masculinas dominantes; e um novo país, de demografia galopante, prenhe de jovens que, a cada dia, se revêm menos nas estruturas culturais herdadas e nas práticas sociais que elas impõem”, como a própria sinopse define tão bem.
Uma “tragicomédia”, como a caracteriza, por sua vez, o encenador Vítor Gonçalves, em declarações ao i, apenas horas antes da estreia oficial desta peça.
Azáfama pré-estreia No momento em que o encenador falava com i, faltavam apenas três horas para a estreia da obra de teatro, e, numa ligação entre Portugal e Moçambique, o nervosismo e a excitação de dar vida ao texto sentiam-se na voz de Vítor Gonçalves, que alternava entre responder às perguntas do jornal e dar ordens à equipa técnica que, em Maputo, se preparava para iniciar o espetáculo.
Por entre a azáfama, no entanto, o encenador revela que Chovem Amores na Rua do Matador é uma obra à procura de “conseguir corresponder na linguagem cénica ao que é a linguagem poética e altamente metafórica de Mia Couto”. Os desafios, revela Gonçalves, passaram principalmente pela “transcrição para os movimentos dos atores” de uma escrita “extraordinariamente poética e plástica na construção formal”. Esta é a primeira vez, note-se, que o encenador trabalha com José Eduardo Agualusa, mas a ligação com Mia Couto é já duradoura, conectada por Moçambique e pela vida comum no país.
Os atores da companhia que interpretou, ontem, esta peça, são todos moçambicanos, e Vítor Gonçalves, de origem portuguesa, vive no país há já largos anos. Gonçalves é um homem do mundo, tendo sido professor de história, e, durante 25 anos, vice-diretor do Teatro de Almada, entre outras profissões. “O Agualusa colaborou com o Mia e juntamos assim as três nacionalidades numa peça”, resume, deixando algo claro: o ponto de equilíbrio em Chovem Amores na Rua do Matador entre Portugal, Moçambique e Angola, é mesmo a língua portuguesa. “Mistura-se aqui a sonoridade moçambicana, e a minha própria visão, que, apesar de viver cá há muito tempo, é sempre diferente”.
A transcrição de textos para o teatro é sempre um desafio, e a peça adaptada por Mia Couto não foi exceção à regra. A sua “linguagem poética e altamente metafórica”, como o próprio Vítor Gonçalves a define, não poderia perder qualquer dos elementos que a torna tão especial, e a presença em palco deveria conseguir exponenciar essas mesmas metáforas, através da atuação. O encenador, por sua vez, não tem dúvidas que a transcrição entre estes ‘modos’ de expressão foi, efetivamente, bem-sucedida.
“Acho que tivemos uma grande sorte, especialmente porque temos atores com muita qualidade. Fizeram um processo de entrega muito forte ao texto, e transformaram a interpretação numa que transpira e transmite muito bem estas imagens poéticas de Mia Couto”, explica, antes de dar também conta de um ‘ingrediente ‘especial’. “O Mia é um grande inventor de palavras, e muitas vezes parte da construção formal para lhe dar uma nova forma. É algo muito comum em Moçambique, as pessoas tendem a tornar em verbos coisas que em Portugal são substantivos. Isso acaba por passar muito bem para o palco”, conclui Vítor Gonçalves.
Próximas datas A obra Chovem Amores na Rua do Matador estará em cena até meados de dezembro em Maputo, seguindo depois para Portugal, onde, em julho de 2022, estará presente no Algarve, Almada, Aveiro, Caldas da Rainha e Figueira da Foz. Está igualmente prevista uma digressão em Angola, ainda sem datas confirmadas.