Aquilo a que temos estado a assistir em relação à grave situação, mais do que embaraçosa, verdadeiramente imprópria de um qualquer ramo das forças armadas e de uma exigente tropa de elite como são os Comandos, à qual não pode aceder qualquer pessoa e, muito menos ainda, ser admitida sem que sobre ela recaia uma escrupulosa garantia dada por uma bateria de testes e de rigorosa formação física, psicológica e deontológica onde não caibam deslizes de nenhuma espécie, é algo que trespassa tudo o que se poderia imaginar como possível num Estado de Direito democrático, membro de pleno direito da ONU, da NATO e da União Europeia.
Mais, o que alegadamente se passou com estes militares portugueses – suspeitos da prática de crimes de tráfico de diamantes, de ouro e de droga, cuja actividade terá ocorrido no próprio palco e cenário em que desempenhavam funções, em nome da República Portuguesa, ao serviço das Nações Unidas – constitui matéria vexatória mais do que suficiente, mesmo considerando a presunção de inocência que a todos os cidadãos é devida, não apenas dos próprios militares individualmente envolvidos nesta rede de crime organizado, como também das Forças Armadas, do Governo, da Presidência da República, do Estado Português e da própria ONU que, pela primeira vez, é liderada por um português. Ou seja, ao contrário do que dizem os responsáveis políticos, um escândalo internacional inaudito e um vexame insuportável de todo o país e de todo o povo português!
O Ministro João Gomes Cravinho teve conhecimento desta situação em Dezembro de 2019, i.e., há dois anos, tendo o respectivo inquérito sido aberto no início de 2020. Não obstante, tal informação enviada ao Governo está omissa no comunicado desta semana feito pelas Forças Armadas. Pelo que, a decisão do Ministro da Defesa Nacional em não informar o Senhor Presidente da República – Comandante Supremo das Forças Armadas – logo após ter tido conhecimento das suspeitas de tráfico de diamantes envolvendo militares portugueses, mais quando o inquérito aberto pela Polícia Judiciária Militar data de momento posterior, o que significa que só a partir desse momento é que poderia, eventualmente, passar a existir segredo de justiça, é algo de muito estranho, confrangedor e inaceitável, no quadro das competências de um membro do Governo que deve prestar todas as informações relevantes ao seu superior hierárquico que é o Senhor Primeiro-Ministro e este, por sua vez, ao Senhor Presidente da República, a quem deve prestar informação e lealdade institucional na relação entre órgãos de soberania, nos termos da Constituição da República Portuguesa.
Ora como, impavidamente, ficámos a saber nada disto ocorreu.
Enquanto cidadão que pensa pela sua própria cabeça, não tenho dúvidas quanto às arrepiantes parecenças deste caso com o ainda muito fresco processo de Tancos em que o furto das armas foi divulgado pelo Exército em 29 de Junho de 2017 com a indicação de que tinha ocorrido no dia anterior, tendo depois a recuperação de algum daquele equipamento sido feita na região da Chamusca, em Santarém, já em Outubro de 2017, numa operação que envolveu a PJM em colaboração com a GNR de Loulé e que, posteriormente, levou à acusação de vinte e três pessoas pela prática dos mais variados crimes, como terrorismo, associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, abuso de poder, recetação e detenção de arma proibida, entre as quais o ex-Ministro do primeiro Governo da “geringonça” de António Costa, Azeredo Lopes, que, de resto, se demitiu do cargo um ano depois, em Outubro de 2018, na sequência das revelações tornadas públicas em torno do caso.
Desses vinte e três arguidos no caso de Tancos, nove foram acusados de planear e executar o furto do material militar dos paióis nacionais e os restantes catorze, entre os quais Azeredo Lopes, da encenação que esteve na base da recuperação do equipamento, tendo o, à época, Ministro da Defesa e antecessor do actual titular do cargo sido acusado de prevaricação e denegação de justiça, abuso de poder e favorecimento pessoal, embora nas alegações finais, o Ministério Público tenha acabado por pedir a absolvição de onze dos referidos vinte e três arguidos, incluindo o próprio Azeredo Lopes, considerando que a conduta do ex-governante se tinha pautado apenas por uma "omissão do ponto de vista ético", ao não diligenciar no sentido de ser levantado um processo disciplinar aos elementos da PJM.
Sendo certo que o julgamento do processo do furto e recuperação das armas do paiol de Tancos ainda não terminou, a verdade é que a sua mera existência, por força da indiscutível prática daqueles factos, enxovalhou a credibilidade interna do Exército e do Ministério da Defesa Nacional, o que, por maioria de razão, no que concerne ao caso actual do tráfico de droga, ouro e diamantes e à inqualificável decisão do actual Ministro João Gomes Cravinho em sonegar informação ao Primeiro-Ministro e ao Presidente da República é motivo mais do que bastante para a sua óbvia e imediata demissão.
Mas, como sempre, o Senhor Presidente da República veio logo, apressadamente, tecer considerações desculpantes da actuação do Governo e do Ministro da Defesa, em particular, ao considerar que ter permanecido na ignorância deste caso ter-se-á baseado “em pareceres jurídicos que tiveram em conta a suposta existência de segredo de justiça”, isto segundo o que, aparentemente, lhe terá sido transmitido por telefone pelo próprio Ministro João Gomes Cravinho.
Porém, segundo o que se lê nos vários órgãos de comunicação social que estão, e muito bem, a fazer as suas próprias investigações jornalísticas que o superior interesse público assim exige, no sentido de se poder informar, detalhadamente, os cidadãos sobre o que efectivamente se passa em torno deste caso lamentável, não há confirmação de que tais pareceres jurídicos sequer existam. Nem tão pouco, caso existam, sobre quem os possa ter elaborado e emitido, ficando cada vez mais evidente que não se trata de uma falha de comunicação com a Presidência da República, mas antes uma decisão consciente e deliberada, pelo menos, do próprio Ministro responsável pela pasta da Defesa.
Independentemente dos detalhes de todo este caso que remeto para a leitura da abundante informação em permanente actualização nos diversos jornais e outros órgãos de comunicação social, as perguntas que se impõem são as seguintes:
1 – Como é que é possível que o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas possa ser, como foi, apanhado de surpresa “com as calças na mão” sobre uma situação destas?
2 – Quem julga ser o Ministro da Defesa Nacional João Gomes Cravinho para decidir não informar o Senhor Presidente da República sobre um caso desta gravidade e importância?
3 – Por que decidiu então comunicar às Nações Unidas o que havia de suspeitas relativamente a um caso em investigação judicial e que, na base de “pareceres jurídicos” que se desconhecem e de cuja existência legitimamente se desconfia, tinha sido entendido que não devia haver comunicação a outros órgãos de soberania, nomeadamente ao Presidente da República e à Assembleia da República?
Curioso é também verificarmos como parece estar montada uma “narrativa” de suporte para uma “realidade alternativa” no seio do Governo para dar força à tese do “segredo de justiça” como justificação para que o Senhor Presidente da República não tivesse tido, atempadamente, conhecimento desta situação, por isso veio logo a terreiro o Ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva dizer “desconhecer este caso desde o início”, tal como o próprio Primeiro-Ministro António Costa ao garantir publicamente que “a única coisa que posso confirmar é que efectivamente também não informei o Senhor Presidente da República pelo simples facto de que eu também não estava informado dessas ocorrências”.
A sério que ninguém, para além do Ministro da Defesa, sabia de nada?
Bem, a ser verdade, é absolutamente inqualificável, embora não seja verosímil que tal possa ser realmente verdade. Mas alguém acredita mesmo nisso? Alguém acredita que durante dois anos o Ministro da Defesa omitiu deliberada e conscientemente esta informação ao Primeiro-Ministro do Governo de que faz parte?
Independentemente do processo que agora prosseguirá os seus ulteriores termos rumo à fase de julgamento, se assim é, nada mais resta ao Ministro João Gomes Cravinho do que a sua imediata e irreversível demissão que, em bom rigor, ninguém já consegue compreender por que razão ainda não ocorreu. Temo, no entanto, que assim não seja…
Lamento muito mas este é um caso sem defesa possível!
Jurista.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.