Morreu ontem, aos 85 anos, Frederik Willem de Klerk, o último Presidente da África do Sul sob o regime do apartheid. Muitas vezes comparado a Mikhail Gorbachov, o último líder da União Soviética, por entregar as chaves de um regime falido e odiado, coube-lhe dirigir a ordeira transferência de poder. “Não há muitos exemplos na história de líderes que tenham negociado o fim do seu próprio regime”, disse um das pessoas que deram o seu testemunho para o documentário The Other Man: F. W. de Klerk and the End of Apartheid. E o certo é que pouco resta do legado deste homem que tenha conseguido escapar à sombra de Nelson Mandela – mesmo entre os seus compatriotas, poucos são capazes de se lembrar de quem presidiu à histórica transição do governo de minoria branca para a democracia totalmente participativa, com isso encerrando a sua própria presidência. Mas a História consegue ser bastante parcial e até emotiva na forma como escolhe lembrar e sobretudo esquecer certos eventos e figuras. Afinal, quando De Klerk sucedeu a Pik Botha, em 1989, cumpria-lhe dirigir uma transição não menos inesperada do que o colapso do comunismo soviético quando Gorbachov assumiu o poder em 1985. Soube acatar as instruções que o futuro lhe dava, e teve a argúcia de o fazer como se se tratasse de uma reforma política abrangente, que passava pela libertação do seu eventual sucessor, e este foi um gesto que, em parte, ajudou a sanar as tensões que mergulharam o país num período conturbado e de desfecho imprevisível, evitando novos conflitos e perda de vidas, e o facto é que, em 1993, De Klerk dividiu com Mandela o prémio Nobel da paz. No ano seguinte, Mandela tornava-se o primeiro líder democraticamente eleito do país. Mas se, hoje, nos parece que não restava grande escolha a De Klerk, é preciso lembrar que em tempos ele foi um destacado elemento dos Africânderes – os descendentes dos colonos calvinistas que se radicaram no país nos séculos XVII e XVIII -, tendo defendido de forma veemente a separação das raças, isto antes de um súbito rebate de consciência que o fez ver que o sistema que ele e os seus ancestrais haviam criado era profundamente racista e que só lhe restava evitar uma transição violenta.
Membro de uma importante família Africânder, durante a sua longa ascensão na hierarquia política, De Klerk manteve-se fiel à sua linhagem, mas assim que assumiu a presidência surpreendeu todos, tornando-se um aliado da comunidade internacional que então denunciava a África do Sul pela flagrante discriminação racial e desigualdade em que o seu regime assentava.
Como o descreveu o próprio Mandela na sua autobiografia, quando chegou à liderança, De Klerk parecia o “exemplo máximo do homem do partido, nada mais, nada menos”, sem ter “nada no seu passado que fizesse imaginar um espírito reformista”, mas foi sua decisão de, sem avisar quase ninguém no seu próprio partido, reconhecer que só um novo rumo poderia salvar o país, e fê-lo num discurso bombástico ao Parlamento a 2 de Fevereiro de 1990, anunciando que o Congresso Nacional Africano (ANC) deixava de ser banido e que o seu líder, Nelson Mandela, ia ser libertado após 27 anos de prisão. Para justificar a inesperada postura conciliadora, De Klerk fez ver à sua própria comunidade que a violência se iria perpetuar quando, aos olhos do mundo, no final da década de 1980, a sua hierarquia social se tornara uma inaceitável aberração, e que as tensões internas determinariam a asfixia da nação, quando a economia se encontrava de rastos.
“O que eu fiz evitou uma catástrofe na África do Sul”, insistia De Klerk no documentário acima mencionado, e ainda que muitos tendam a concordar, nunca faltou também quem contestasse os verdadeiros motivos desta súbita mudança. “Ele não disse que o apartheid era mau ou imoral, simplesmente reconheceu que não ia funcionar”, lembrou, em declarações ao The New York Times, Herman J. Cohen, que nesse período foi um dos interlocutores privilegiados de De Klerk, uma vez que era o principal conselheiro do Departamento de Estado norte-americano para os assuntos africanos na administração de George H.W. Bush. As vítimas da violência das forças de segurança do governo ainda no decurso do seu mandato não esquecem a convicção com que defendia o apartheid e mantiveram as suas suspeitas de que a sua aparente reviravolta moral não passou de uma estratégia para salvar a sua própria imagem. De resto, o documentário referido retrata De Klerk como um homem astuto e complexo, mas, acima de tudo, alguém que se guiava mais pelo pragmatismo do que por algum sentido de decência. E, ao expor a relação espinhosa que manteve com Nelson Mandela, a “parceria desconfortável” que lhes permitiu promover a abolição de quase meio século de opressão oficial, este faz-nos ver que, diante de um país à beira da guerra civil, é difícil distinguir se De Klerk agiu por princípio ou por conveniência, ficando antes claro que há margem para coser um percurso entre os dois.
Quatro anos depois de ser libertado, Mandela esmagou De Klerk nas urnas, e ainda que lhe tenha estendido um convite para que integrasse o seu governo de transição como segundo vice-presidente, apesar de inicialmente ter aceite, De Klerk teve dificuldade em ver-se na posição de subalterno e acabou por renunciar. Tentou, então, reformar o Partido Nacional, que o seu avô ajudara a criar, e esperava que, de uma organização dominada pelos brancos pudesse originar agora uma organização multirracial que pudesse fazer frente ao ANC, mas essa foi já uma tentativa desesperada de segurar alguma influência. Em 1997, cada vez mais desgastado com as lutas internas e as críticas da Comissão de Verdade e Reconciliação do país, que investigou muitas das violações cometidas durante o apartheid, De Klerk anunciou o seu afastamento da política. Um ano antes, perante aquela comissão, liderada por Desmond Tutu, acabou por admitir que tinha causado “dor e sofrimento” e pediu enfim desculpas, isto depois de ter insistido ao longo de tantos anos, De Klerk que o apartheid tinha, na origem, uma “ideia honrada de justiça”, a qual acabou por ser mostrar impraticável e injusta, mas recusou até ao fim que o regime fosse uma máquina de repressão que negara à grande maioria dos sul-africanos os seus mais básicos direitos humanos, lembra o Washington Post.
Fumador inveterado durante décadas, De Klerk tinha sido diagnosticado em junho deste ano com um cancro do pulmão. “O antigo Presidente morreu no início da manhã na sua casa em Fresnaye depois de uma luta contra o cancro”, anunciou ontem a fundação FW de Klerk. “Tinha 85 anos. Deixa a sua mulher Elita, as duas filhas Susan e Jan e os seus netos.”