A Leste nada de novo?


A impotência da União Europeia está a ser exposta por via de uma indecente guerra híbrida na fronteira externa a Leste. Sem declaração de guerra mas já com baixas.


Um dos mandamentos do catecismo burocrático, ad inertiam, lembra que certos problemas só o tempo os resolve, acrescentando que para alguns outros nem sequer a passagem do tempo permite encontrar uma solução. O “aprofundamento” da União Europeia é, cada vez mais, um problema que integra a segunda categoria referida. A burocratização do processo de decisão política é excelente para regulamentar miudamente o raio de curvatura das bananas colocadas à disposição dos consumidores europeus. Mas não serve para dotar a UE de uma política externa. Tal implicaria a existência de forças armadas e da vontade política para as utilizar. Na ausência de política externa e de política de defesa sobra “soft power”, assente num volumoso livro de cheques que permitiria comprar boas vontades e prevenir problemas. Há no entanto limites à dimensão das boas vontades e dos problemas que podem ser geridos por via das transacções financeiras e comerciais.

As diminutas sanções decididas pela UE contra as ditadura de Lukashenko deram origem a uma operação de importação, por via aérea, de dezenas de milhar de migrantes provenientes do Iraque, Síria e Afeganistão, com uma nutrida componente de curdos. Depois de aterrarem em Minsk são encaminhados pelas autoridades bielorussas para a fronteira com a Polónia que procuram atravessar rumo à Alemanha. Esta “invasão” pacífica, inspirada pelas práticas de Erdogan durante a crise migratória de 2015, concita os piores receios dos polacos: uma invasão (mais uma numa longa história), vinda do Leste, por via de um Estado cliente de Moscovo e protagonizada por imigrantes de uma etnia e cultura inexistentes na Polónia, um Estado convencido de que não tem de acolher refugiados ou migrantes.

Do ponto de vista político a invasão é acolhida com um suspiro de alívio pelo Governo polaco. Permite-lhe retomar a iniciativa, contra um novo inimigo externo e desviar as atenções das críticas da Comissão Europeia à poda excessiva do Estado de Direito na Polónia.

A UE reagiu, como sempre, tarde e mal. Conseguiu, por via do livro de cheques, evitar que o Iraque autorizasse mais voos de migrantes para Minsk. Mas não conseguiu sequer limitar as restantes rotas que alimentam o exército civil que Lukashenko empurra contra a fronteira polaca. O Presidente do Conselho Europeu rumou a Varsóvia e multiplicou-se em discursos, apelando (sem se rir) à Comissão Europeia para “estudar formas adequadas de reacção”. Varsóvia tratou de brifar os Estados-membros da NATO na esperança de que os EUA se voltem a interessar pelo teatro europeu. Putin despachou dois bombardeiros estratégicos para os céus da Bielorússia. Merkel, de partida da chancelaria, telefonou a Putin. Lavrov, sempre selectivo nos exercícios de memória, considerou que a UE está a colher o resultado dos conflitos que “semeou” no Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia. Magnânimo, recomendou a Bruxelas agir de acordo com o seu tradicional discurso de protecção dos mais frágeis, acolhendo os migrantes que se encontram na fronteira entre a Polónia e a Bielorússia.

Putin tornou evidente a permeabilidade da fronteira externa da UE à migração económica. Espera ter igualmente provado a permeabilidade a uma eventual acção armada. Por Washington a vontade de arrumar a casa europeia não aumentou com a chegada de Biden à Casa Branca mesmo que tenha cessado o discurso motivador à la Trump.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990