Picasso. Vigiado, ostracizado, génio

Picasso. Vigiado, ostracizado, génio


Quando pensamos em Pablo Picasso, um dos maiores pintores da história da humanidade e um dos fundadores do movimento cubista, mais depressa associamos o seu nome ao grandioso legado que deixou como artista do que a um imigrante vigiado. 


Quando o pintor espanhol, em 1900, abandonou Barcelona e se mudou para Paris, outrora, a capital artística da Europa, apesar de se ter tornado um dos mais reconhecidos residentes desta cidade, também foi identificado como um dos seus inimigos públicos. 

Desde alegações anarquistas, as ligações catalãs ou a recusa da nacionalidade francesa, estes comportamentos valeram a Picasso a classificação de “anarquista vigiado”, algo que se manteve durante quatro décadas.

Esta fase da vida do pintor na cidade, que o inspirou durante a sua fase azul, rosa, é agora alvo de uma exposição, com o título “Picasso, o Estrangeiro”, que explora a obra artística do pintor e mostra ainda documentos de arquivo no Museu da Imigração em Paris.

“O Picasso veio para Paris para fazer parte de uma cena de arte onde os Pós-Impressionistas, o Fauvismo, e outros movimentos modernos lutavam contra os rigores restritos da Academia das Belas Artes”, disse em entrevista, citada pelo New York Times, a historiadora cultural, Annie Cogen-Solal, responsável pela curadoria desta exposição, que estreou no dia 4 de novembro, no Museu Nacional da História da Imigração, em Paris.

“Ele foi colocado sob vigilância através dos mexericos dos bairros, cujas informações eram recolhidas pelos informadores da polícia, que o associaram a anarquistas e o classificaram como um pintor ‘moderno’ de mérito dúbio”, disse Cohen-Solal.
O fascínio por esta fase do pintor conduziu a historiadora, em 2015, a um projeto de investigação que a levou a remexer quarenta anos de relatórios policiais, que foram cruzados com os registos pessoais de Picasso, os quais se encontravam no arquivo do Museu Picasso, em Paris, de forma a criar uma linha temporal e um olhar profundo sobre a vida do pintor como “um expatriado em França, até à sua morte, em 1973”, escreve o jornal americano. 

Pobre, talentoso e arrogante Foi com estes adjetivos que o New York Times descreveu o perfil do pintor espanhol quando este se mudou para Paris, quando tinha apenas 19 anos. 

Sem sequer saber falar francês, Picasso foi acolhido, em condições precárias, por diversos amigos catalães. Um dos primeiros a “esticar” a mão ao pintor foi o poeta e jornalista francês, Max Jacob, com quem o espanhol acabou por dividir casa, num período de extrema pobreza, frio e desespero. 

Eventualmente, o espanhol acabaria por se instalar em Montmartre, um bairro boémio em Paris, no entanto, por ainda manter ligação com colegas catalães, isto levou a polícia a monitorizar Picasso e, ao longo dos anos, a qualificá-lo como anarquista, republicano e comunista, algo que “atormentava e humilhava” o pintor, “cujo único crime era ser um estrangeiro”, disse Annie Cohen-Sola, à France Presse.

“Ele era tratado como um Fiché S [um indicador usado pela polícia francesa para sinalizar um indivíduo considerado uma séria ameaça à segurança nacional] moderno”, pode ler-se no catálogo da exposição, citado pelo site Global Happenings.

Não era fácil ser um estrangeiro neste local, não só em Montmartre, onde viviam inúmeros expatriados catalães, mas o sentimento de xenofobia e intolerância era algo que ecoava em toda a França, que vivia uma instabilidade política motivada pelo caso Dreyfus e o assassinato do Presidente Sadi Carnot por um anarquista italiano.

Apesar do tratamento a que era sujeito, o talento de Picasso acabou por falar mais alto e, rapidamente, tornou-se uma “celebridade”. “Em 1901, a primeira exposição de Picasso concedeu-lhe o estatuto de celebridade entre os intelectuais e artistas da cidade”, explicou Cohen-Solal, mas, acrescenta, esta fama também acarretou uma atenção indesejada.

“A atenção que ele atraia tornou-o suspeito aos olhos da polícia”, acrescentou. “Eles notaram as associações com os catalães, mas também o facto de ele não falar francês, chegar tarde a casa, ler jornais estrangeiros e pintar mulheres pobres na rua”. 

Cidadania negada A mais famosa obra de arte de Picasso, Guernica, criada em 1937, uma denúncia de todos os crimes de fascismo praticados em Espanha, apesar de ser celebrada como um símbolo antiguerra e um dos quadros mais poderosos da história, gerou grandes preocupações ao pintor.

Semanas antes de França se render à Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, o pintor temia ser expulso do país, o que significaria ter de regressar a Espanha e enfrentar as consequências da sua mensagem antiguerra.

“O Picasso viveu uma situação bastante precária durante a guerra”, afirmou a curadora do Museu Picasso, em Paris, entre os anos 1980 e 1992, Marie-Laure Bernadac, ao Times. “Ele temia ser deportado. Como um antifascista, não podia regressar a Espanha e a vida como um estrangeiro sob o regime nacionalista de Vichy [denominação oficiosa do governo francês durante a Segunda Guerra Mundial que procurava responder às vontades de Adolf Hitler]”, explicou a curadora.

No dia 3 de abril de 1940, o pintor pediu às autoridades francesas a nacionalidade francesa para poder manter-se no país, no entanto esta foi recusada. Picasso conseguiu permanecer neste país, mas os oficiais nazis impediram-no de mostrar os seus trabalhos. 

Reza a lenda que um oficial da Gestapo, depois de olhar para uma fotografia de Guernica, perguntou ao espanhol se tinha sido ele a fazer o quadro, ao que ele respondeu: “não, foram vocês”.

Foi apenas em 1947, dois anos depois do final da Segunda Guerra Mundial, que as obras de arte de Picasso entraram na coleção pública francesa e que o pintor foi alvo de uma maré de homenagens, como a Legião de Honra, em 1966 ou, em 1958, com a cidadania francesa, no entanto, o espanhol recusou todas estas distinções.

Na exposição, “Picasso, o Estrangeiro”, Bernadec afirma que não existe nenhuma resposta direta sobre se a experiência de Picasso como exilado influenciou a sua arte, apesar de ser claro que a cidade de Paris influenciou o seu trabalho, mas a curadora afirma que Picasso deve tanto a França, como França lhe deve a ele.

“Ele adorava França e escolheu viver aqui. O Picasso transformou este país profundamente e toda a França tem para com ele uma grande divida de gratidão”, remata.