COP26. Cimeira do Clima ou “ponto  de encontro” das indústrias  de combustíveis fósseis?

COP26. Cimeira do Clima ou “ponto de encontro” das indústrias de combustíveis fósseis?


Se há organizações não-governamentais que se têm queixado de falta de acesso à cimeira do clima de 2021, esse não é o caso de associações e empresas ligadas à industria de combustíveis fósseis. Segundo uma avaliação da Global Witness, existem mais delegados ligados a estas, do que os próprios membros de cada nação.


A vigésima sexta cimeira da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP) que tem vindo a decorrer há já uma semana — e com duração até 12 de novembro — em Glasgow, na Escócia, foi projetada com expectativa, já que foi também entendida como “a última solução para evitar danos catastróficos para o planeta”.

Contudo, ao que parece, já estão a acontecer algumas coisas “dissonantes” daquilo que se poderia esperar de uma cimeira do clima. Numa semana que foi marcada pela presença dos líderes mundiais e, ao mesmo tempo, pelas queixas das organizações não-governamentais de falta de acesso à cimeira, muitos manifestantes exigiram o fim dos combustíveis fósseis, com o intuito de chegar à diminuição das emissões de gases com efeito de estufa. Além disso, o encontro começou de forma “atribulada”, por não contar com o Presidente chinês, Xi Jinping (a China é o maior poluidor mundial, responsável por quase um terço das emissões de dióxido de carbono), ou o russo, Vladimir Putin. Mas o facto mais surpreendente, faz-nos quase esquecer essas ausências, já que, ao que parece, foram “substituídas” por outras um pouco “deslocadas” do próprio objetivo do encontro.

A “liderança” da indústria dos combustíveis fósseis Segundo uma avaliação realizada pelos ativistas da Global Witness, a indústria dos combustíveis fósseis está em peso na 26.ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (COP26).

Em tom de alerta, os ativistas revelaram que há 503 pessoas com ligações à indústria dos combustíveis fósseis, um número superior ao total de delegados brasileiros, que são 479 (o Brasil é o país com o número mais elevado de participantes).

Segundo a avaliação realizada, na cimeira encontram-se mais de 100 empresas ligadas aos combustíveis fósseis e ainda 30 associações comerciais e organizações associativas. O número de delegados associados a este setor é, por isso, maior do que o total combinado das oito delegações dos países considerados por algumas análises os mais afetados pelas mudanças climáticas nos últimos 20 anos, como é o caso de Porto Rico, Mianmar, Haiti, Filipinas, Moçambique, Bahamas, Bangladesh, Paquistão. 

UM LOBBY? “A indústria de combustíveis fósseis passou décadas a negar e atrasar uma ação real sobre a crise climática, e é por isso que este é um problema tão grande”, disse Murray Worthy da Global Witness à BBC, acrescentando que “a influência destes delegados é uma das maiores razões pelas quais 25 anos de negociações climáticas da ONU não levaram a cortes reais nas emissões globais”. 

Após analisarem a lista provisória das cerca de 40 mil acreditações das Nações Unidas para esta cimeira, os investigadores, que trabalharam em conjunto com Corporate Accountability e a Corporate Europe Observatory (CEO), detetaram que as pessoas ligadas a esta indústria são membros das delegações do Brasil, do Canadá e da Rússia. Os membros da Global Witness, acreditam ainda que “esses delegados fazem lobby pelas indústrias de petróleo e gás, devendo ser proibidos de comparecer”. 

Tanto a Global Witness, como a Corporate Accountability e outros que realizaram a avaliação, definem um “lobista de combustíveis fósseis” como alguém que faz parte de uma delegação de uma associação comercial ou que é membro de um grupo que representa os interesses de empresas de petróleo e gás. Por essa razão, no seu entender, ao todo identificaram, na cimeira, “503 pessoas empregadas ou associadas a esses interesses”.

Um dos maiores grupos identificados foi a International Emissions Trading Association (IETA), com 103 delegados presentes, incluindo três pessoas da empresa de petróleo e gás BP. 

De acordo com a Global Witness, a IETA é apoiada por muitas grandes empresas de petróleo que “promovem a compensação e o comércio de carbono como uma forma de permitir que continuem a extrair petróleo e gás”. “Esta é uma associação que tem um número enorme de empresas de combustíveis fósseis como membros. A sua agenda é impulsionada por essas empresas e atende aos interesses das mesmas”, contou Worthy. “Estamos diante de uma apresentação de falsas soluções que parecem ser uma ação climática, mas na verdade preservam o status quo e nos impedem de tomar ações claras e simples para manter os combustíveis fósseis no solo que sabemos serem as verdadeiras soluções para o clima crise”, defendeu. 

Interrogada pelo i se estes números a surpreenderam, Inês Sousa Real, atual líder do PAN, admite que não: “Basta pensarmos que esta é a vigésima sexta cimeira do clima, ou seja, há 25 anos que andamos a debater a necessidade de proceder à descarbonização e à redução da utilização da energia movida a combustível fóssil, sem que o mesmo aconteça”, afirmou a deputada, acrescentando que “isso demonstra que não tem existido um efetivo compromisso que resulte deste tipo de cimeiras”. 

Para Inês Sousa Real “os atores que possam, de alguma forma, representar os setores da produção energética também deviam ser chamados a este debate, porque também eles vão conseguir promover a transição dos modos de produção de energia assim como a reconversão das várias atividades (aqui não falo apenas dos combustíveis fósseis, mas também das centrais de energia produzidas a carvão)”. “É fundamental nós transformarmos esta cimeira numa forma de greenwashing e de alguma forma, branquear aquilo que são as políticas internacionais, em torno da necessidade de combater as alterações climáticas”, frisou a líder do PAN. 

À BBC, a IETA afirmou que existe para “encontrar os meios mais eficientes com base no mercado para reduzir as emissões”, tendo como membros, não só “empresas de combustíveis fósseis, mas também uma série de outros negócios”. “Temos escritórios de advocacia, desenvolvedores de projetos, incluindo pessoas que estão a trabalhar sobre e com tecnologia limpa no mundo todo, eles também são membros da nossa associação”, elucidou Alessandro Vitelli, porta-voz da IETA. “Há um processo de transição em andamento e os mercados de carbono são a melhor maneira de garantir que essa transição aconteça”, defendeu. 
 
A solução para o “fim” dos lobbys Os ativistas argumentam ainda que a Organização Mundial da Saúde não levou a sério a proibição do tabaco “até ao momento em que todos os lobistas da indústria tivessem sido banidos das reuniões da OMS”. E por isso, defendem que devia acontecer o mesmo às empresas de petróleo e gás da COP.

“Apesar de admitirem abertamente que aumentaram a sua produção de gás fóssil, empresas como a Shell e BP estão dentro destas negociações”, alertou Pascoe Sabido, do Corporate Europe Observatory. “Se queremos realmente aumentar a ambição, então os lobistas dos combustíveis fósseis têm que ser excluídos das negociações”. 

Tal como os ativistas da Global Witness, Inês Sousa Real, fala de lobby: “O lobby está muito presente quer na COP, querna Assembleia da República através daquilo que nos chega quotidianamente aos gabinetes. Há de facto um lobby por parte das indústrias energéticas, uma presença muito significativa destes atores naquilo que é a tentativa de proximidade com o poder político e o poder decisório”, revelou a líder do PAN, que acredita que “aquilo que temos de fazer é preocuparmo-nos com o bem comum e com a saúde do planeta”. “Isso é que tem de estar à frente dos interesses económicos destas grandes multinacionais”. Apesar disso, a também jurista acredita que, por um lado, “é necessário que se dê aqui um envolvimento dos vários atores, inclusive dos privados, no sentido de incentivar a transição sobre os modos de produção’’.“Aquilo que era importante que resultasse desta cimeira era uma presença assídua dos vários líderes mundiais e o compromisso dos mesmos…”, explica, apontando a ausência do primeiro-ministro António Costa. 

“De facto, parece-nos que a COP não está a corresponder àquilo que era a expectativa através da qual foi criada. Basta ver os movimentos dos cidadãos que já têm saído à rua para se manifestarem para perceber que há aqui uma necessidade de surgirem outro tipo de eventos, ou outro tipo de compromisso, porque os que estão agora a ser assumidos não servem a necessidade de um maior compromisso dos diferentes estados das nações no sentido de promover a transição energética que não deve ser até protelada no tempo”, elucidou a deputada. “É urgente que se ponha já fim ao uso dos combustíveis fósseis. Hoje é mais barato produzir, por exemplo, energia solar do que combustível fóssil. A transição energética pode ser benéfica e pode existir para os países criarem postos de trabalho. E é um passo que todos devemos dar se queremos, de facto, garantir um planeta para as presentes e futuras gerações”, rematou. 

Os combustíveis fósseis e a urgência de encontrar alternativas têm sido temas recorrentes na COP26 e, na primeira semana da cimeira, mais de vinte países e instituições, incluindo Portugal, já se comprometeram a “deixar de financiar projetos de combustíveis fósseis no estrangeiro até ao fim do ano de 2022”. De fora desta resolução ficaram países como a China ou a Rússia.