Velocidade. A pressa dos ministros aos olhos dos atentos

Velocidade. A pressa dos ministros aos olhos dos atentos


A SIC seguiu alguns ministros do país, e registou os excessos de velocidade dos automóveis onde viajavam. Ao i, José Miguel Trigoso lamentou a falta de “exemplo”.


Na noite de segunda-feira (1 de novembro), o segmento Essencial, da SIC, revelou um extenso registo audiovisual de Pedro Nuno Santos, João Pedro Matos Fernandes e Eduardo Cabrita, entre outras figuras governamentais, como o secretário de Estado João Galamba. Em diferentes estradas do país, excediam os limites de velocidade impostos por lei, chegando mesmo a ultrapassar da barreira dos 200 km/h.

A investigação foi para o ar mais de quatro meses depois de, na A6, o veículo onde seguia o ministro da Administração Interna ter atropelado mortalmente um trabalhador, desconhecendo-se, ainda hoje, a velocidade a que seguia.

O mesmo Eduardo Cabrita que, segundo registaram as câmaras da SIC, no início de outubro viajava a mais de 150 km/h na A1, numa deslocação entre Torres Novas e Lisboa.

Pedro Nuno Santos foi o principal protagonista do programa, que seguiu o Ministro das Infraestruturas e da Habitação numa viagem entre Oliveira do Hospital e o Porto de Leixões, em Matosinhos. 188 quilómetros que o ministro conseguiu percorrer em cerca de hora e meia, registando a estação televisiva velocidades superiores aos 190 km/h.

Também João Galamba, secretário de Estado Adjunto e da Energia, e o próprio António Costa, primeiro-ministro, que terá chegado de Lisboa a Faro em cerca de 2 horas, fizeram parte do segmento televisivo, que pôs em evidência uma prática aparentemente “comum” entre os titulares de cargos políticos do país, para os quais, segundo dados da Associação Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), foram já emitidos 38 autos por contraordenações rodoviárias, só em 2021.

O i pediu dados relativos aos anos anteriores à ANSR, mas foi impossível obter resposta até à hora de fecho desta edição. 

Já a Procuradoria Geral da República explicou ao i que não está aberto nenhum inquérito aos casos em questão, até porque “as infrações às disposições do Código da Estrada e legislação complementar têm a natureza de contraordenações e a instauração de processos por contraordenação não é da competência do Ministério Público”.

Declarações Ao i, José Miguel Trigoso, presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP), que participou também neste episódio do Essencial, comentou o assunto. “A maioria dos portugueses acha que os limites nas autoestradas deviam ser maiores, e a maioria afirma que normalmente os excede. Enquanto, por exemplo, existe alguma repressão social sobre conduzir com álcool no sangue, ou de ir a falar distraído ao telemóvel, ou levar uma criança solta aos pulos dentro do carro, ainda não existe nenhuma repressão social face à prática de velocidades muito elevadas”, comenta.

O comentário surgiu associado às velocidades excessivas praticadas pelos políticos, que justificaram essas mesmas violações com o facto de circularem em “marcha de urgência de interesse público”. Mas o presidente da PRP tem as suas dúvidas.

“Quando vão em carros em serviço do Estado, criou-se uma ideia de que podem, por sistema, infringir as normas. Na realidade, não só não podem, como não devem, por uma questão de exemplo”, explica Trigoso, antes de continuar a sua crítica.

“As pessoas não têm ideia que Portugal é um dos países da UE com menor taxa de autos levantados e penas aplicadas aos seus condutores por excesso de velocidade. E não necessariamente por andarmos mais devagar. É porque há uma certa complacência que é levada a cabo e assumida por quase toda a gente, inclusivamente os detentores de cargos públicos”. Acusa estes de “não darem o exemplo”, e de “aproveitar-se da existência de um parágrafo na legislação que permite que, em casos de urgência de interesse público, deixem de cumprir determinadas normas do código da estrada”. Trigoso realça no entanto que essa mesma norma “tem limites”. 

“Têm de parar à mesma nos semáforos vermelhos. Podem passar depois, mas primeiro têm de parar, bem como nos STOPs, e em todas as circunstâncias que podem pôr em risco os demais utentes da via pública. Se alguém vai a 100 e tal numa estrada e ultrapassa dois traços contínuos [em referência ao momento em que o automóvel onde seguia Pedro Nuno Santos, captado pela SIC, comete a referida infração], isso põe, e muito, em risco os demais utentes”, conclui o presidente da PRP.

José Miguel Trigoso não poupa nas críticas à “permissividade” relativa aos excessos de velocidade nas estradas portuguesas, acusando estes “abusos”. “É evidente que uma autoridade, por maioria de razão, pode fazer isso [circular em marcha de urgência e, consequentemente, em excesso de velocidade], mas não de forma sistemática. Só em casos específicos e esporádicos, que, aliás, têm de ser justificados posteriormente com documentos e dados”, remata.

Autoridade permissiva? José Miguel Trigoso evita afirmar que as autoridades são permissivas relativamente aos veículos do Estado que excedem os limites de velocidade, argumentando falta de dados.

Mas deixa um curioso detalhe: “Tenho dados que me permitem dizer que houve muitas pessoas ligadas ao poder em algumas ações de tentativa de alteração de comportamentos em casos de infrações, na sequência de decisões de tribunais ou da ANSR. Entre as pessoas que estiveram connosco a frequentar essas ações têm estado muitas autoridades. Ministros, secretários de Estado, deputados, juízes, juntamente com outras figuras”, esclarece.

Um detalhe que, no seu entender, é sinal de que “as entidades têm tratado essas pessoas de uma forma equitativa”.

'Ó Sr. Guarda, desapareça' O tema dos políticos e das viagens nas estradas portuguesas não é de agora. Em 1993, Mário Soares, na altura Presidente da República, disse a um guarda da GNR para “desaparecer” depois de o autocarro onde seguia ser abordado pela autoridade, quando seguia numa das suas conhecidas campanhas de Presidência Aberta. “Ó Sr. Guarda, desapareça", exigiu. 

O mesmo Mário Soares foi também protagonista de um outro momento polémico com as autoridades quando, em 2012, numa altura em que seguia num carro registado em nome da Direção-Geral do Tesouro e das Finanças, terá sido apanhado a uma velocidade de 199 km/h. Na altura, fonte da GNR, citada pelo Correio da Manhã, afirmou que o ex-Presidente da República respondeu que seria o Estado a pagar a multa que estava prestes a ser aplicada.

 

Artigo atualizado às 13h09 de 3/11 – No penúltimo parágrafo, corrige-se a informação sobre o referido excesso de velocidade do autocarro em que circulava Mário Soares.