Em seis anos, nunca alimentei a promoção propagandística da solução governativa de António Costa da geringonça, da mesma forma que as expressões lusitanas do desenrasca não tem nomes específicos em função do exercício. A geringonça nasceu de uma expectativa gorada. António Costa desalojou um líder legítimo do PS, fora do tempo normal, ao invés do que acontece no PSD, para conquistar uma maioria reforçada face ao Governo da direita de Passos e Portas, que vinha de uma gestão além da Troika. Não ganhou, mas governou com o apoio previamente apalavrado de PCP e Bloco de Esquerda. Missão primeira, correr com a direita, seguindo-se as reposições possíveis de direitos, rendimentos e afins. O primeiro beijo foi pela negativa, “correr com eles”, a juras de amor foram eternas e partilhadas por fervorosos adeptos reais e digitais comprometidos com o arraso de quem pensava diferente. Foi um amor de sobrevivência política esvaído quando estavam respondidos os interesses essenciais e a comunhão de adquiridos apresentava distorções evidentes.
Em 2015, só o chegar ao poder interessava. Os fins justificavam todos os meios.
Não importava não se ter ganho, doutrinou-se para a Região Autónoma dos Açores, onde o PS ganhou eleições, mas não governa, por via dos arranjos parlamentares.
Não importavam as divergências estruturais, na Europa e na Defesa, o que contava era mesmo a oportunidade de “correr com eles”. Depois, logo se via.
E viu-se. Discursos e atitudes de compromisso em Lisboa, divergências um pouco por todo o país, onde PCP e BE, sobretudo o primeiro, invetivava o Governo PS e as suas opções políticas suportadas por si, no soviético esforço de manter acesa a chama da contestação e embevecer as populações com a defesa dos seus interesses contra os desvios capitalistas da governação. Julgado improcedente o exercício nas eleições, acresciam sinais de divergência e de materialização de coligações negativas, perante uma narrativa governativa desfasada da ausência de apoio parlamentar, como se estivesse a pedi-las. Desvalorizaram-se os sinais, alguns da ciência política, e o expectável aconteceu. Esquerda e Direita unidos contra o PS.
Os incrédulos desiludidos, por mais um desalojamento político do PS pela esquerda à sua esquerda, dirão que foi tão bom que não importa falar do passado. Meio atordoados, mas energéticos na fustigação da restante esquerda pelo que se perdeu com o chumbo orçamental, nem se dão conta de que o exercício de promoção da ambição da maioria reforçada, leia-se absoluta ou o suficiente para anestesiar por mais uns tempos os parceiros de outrora, é contraditória com a defesa do legado e a aspiração de novas parcerias. A mesma tribalização acéfala de ataque a quem pensa diferente é agora usada contra PCP e BE, em especial contra este último, porque a esperança de reatamento com os comunistas perdura sempre naqueles espíritos, enquanto endeusam os intolerantes do PAN como os novos Best Friends. Sabemos onde estiveram nos verões passados e onde estarão depois da verve responsável do debate orçamental. Para lá de linhas vermelhas da matriz de valores e princípios de sempre do PS.
Os maquiavélicos dirão que a circunstância do chumbo orçamental, da crise política e das eleições favorecem exclusivamente o PS, apesar das dinâmicas internas orientadas para a sucessão. São a oportunidade certa, no tempo certo, para uma segunda oportunidade de António Costa para a primeira maioria absoluta, com a direita em estado de agitação/implosão e a esquerda fragilizada pelo apoio ao exercício governativo de seis anos. E tudo concertado com Belém, ensarilhado entre dar o jeito aos companheiros do PSD e corresponder à estabilidade necessária à concretização da bazuca e afins, num frenesim visível e invisível que faz lembrar os tempos do presidencial PRD. Marcelo é um homem de tentações, logo.
Os visionários descortinam um quadro político polarizado à esquerda e à direita, com lideranças inequívocas de PS e PSD, com geometrias variáveis em função das eleições que estão em causa, sem margem para que os pequenos maculem as intenções dos dois grandes. Haveria espaço para a política a sério e um território de recreio para as crianças partidárias. O problema é que as visões não são compagináveis com a complexidade das sociedades modernas, nem com a velocidade do tempo moderno, sujeito a interações e interesses muito elaborados e pouco lineares, acossadas pelas redes sociais e pelo mediatismo do imediato. As ambições políticas dos protagonistas, tal como a sua ação política ou governativa, podem ser simplistas, mas a realidade é complexa. Não é sustentável que a habilidade substitua o conhecimento, a previsibilidade possível e a visão integrada da sociedade, do que é estrutural e do que é conjuntural.
Os desenrascados estão como sempre estiveram, com vários cenários, subterfúgios e escapatórias de sobrevivência, ilibados de um quadro político em que se deixaram aprisionar ao afirmarem, em 28 de agosto de 2020, que “no dia em que a sua subsistência depender do PSD, este Governo acabou”. A proclamação libertadora da ação irresponsável da esquerda à esquerda, por deixar de ter o PSD no quadro de viabilização das opções políticas do Governo PS e tudo passar a depender da sua vontade de geometria variável.
O presidencial lançou-se numa deriva entre o poeta e o louco, amiúde à margem das obrigações constitucionais, quase sempre com um excesso de conversa e com recaídas de insanidade institucional, combalido que está com a iminente quebra do consenso da sua popularidade, entre as necessidades do país e a tentação de acorrer aos correligionários em dificuldades de liderança, entre a queima de passos processuais na resolução do chumbo do orçamento e a possibilidade de emergir das eleições um quadro político difuso, inconsistente e com desvios perigosos.
O regime não se dá ao respeito, desconsidera a inteligência e a sabedoria que ainda sobrevive nos indivíduos e nas comunidades.
Os instalados debitam arrogâncias intolerantes, na promoção das suas ideias e no ataque às dos outros, sobretudo, quando diferentes. A realidade teima em contrariá-los, remetendo-os para a tolerância e para as aprendizagens com a história e os erros do passado recente, em vez do embarque em novas narrativas reajustadas.
Estive em 2015, quase só nos órgãos internos do PS, contra a quebra do princípio de que quem ganha deve formar governo e contra uma solução governativa com parceiros sem compromisso de sustentabilidade, equilíbrio e sentido de futuro, em Portugal, na Europa e no Mundo. O tempo deu-nos razão quanto ao compromisso de sobrevivência política de António Costa. Falhou em 2015 ao não ganhar, falhou de novo ao não ter o apoio de quem escolheu para o caminho para o OE de 2022, resta saber se vai voltar a não ganhar com maioria absoluta em 2022. O PS não se esgota na sua liderança ou nas suas narrativas. Há um antes e haverá sempre um depois. Chama-se democracia, pressupõe tolerância e liberdade de expressão.
Escreve à segunda-feira