Ao contrário do que se tenderá a pensar, a literatura vive mais do esquecimento do que da lembrança, pois, como foi já notado por tantos, é a perda constante de certos factos e detalhes contra outros que persistem, mesmo contra a nossa vontade, que nos dá essa distinção das coisas que mantêm um significado para lá do efeito de amnésia a que estamos sempre sujeitos. Hoje é isto mais claro do que nunca. E como refere a escritora alemã Judith Schalansky em “Inventário de Algumas Perdas” (livro recentemente editado entre nós, com selo da Elsinore), é fácil perceber pela memória aberrante que a internet tornou possível que “tudo o que é gravado indistintamente perde o seu significado, como acontece nas memórias alimentadas pela energia eléctrica, tornando-se uma amálgama de informações inúteis”. Já alguém celebrou a literatura por ser exactamente essa arte tão propensa à amnésia, a livrar-se das informações inúteis e a reter apenas o essencial. A activar precisamente essa função do significado que, seja através da ficção ou de um qualquer argumento fulgurante, consegue actuar como uma memória quase emocional no modo de um leitor organizar o seu mundo.
Pode dizer-se com alguma propriedade que a atribuição do Prémio Camões a Paulina Chiziane foi uma dessas instâncias em que um galardão literário se deixou seduzir muito menos pelas palavras, pelas suas estruturas, pela forma, pelo ritmo ou até pelo enredo, do que pelas suas implicações políticas, num gesto de reconhecimento por uma obra que busca afirmar valores tantas vezes enjeitados ou secundarizados.
Roberto Bolaño notou certa vez que a literatura não é feita apenas de palavras, e diz-nos que se há autores intraduzíveis, nomeando alguns grandes artífices da língua espanhola, como Francisco de Quevedo ou García Lorca, ressalva, contudo, que uma obra como Dom Quixote consegue resistir até ao pior tradutor. “Na verdade, esta consegue até resistir à mutilação, à perda de numerosas páginas e até a uma tempestade de estupidez que se erga à sua volta. Assim, mesmo com tudo contra ela – uma má tradução, sobrevivendo apenas parcialmente e num ambiente que arruíne o esforço de leitura e compreensão – qualquer versão do Quixote não deixaria de ter muito a dizer a um leitor chinês ou africano. E é isso a literatura”, diz-nos Bolaño. “Podemos perder imensa coisa ao longo do tempo. Mas talvez seja esse o seu destino. Passe o que se passar, algo de essencial sobreviverá.”
É mais neste sentido que a obra de Paulina Chiziane merece ser reconhecida. Se falarmos sobre os livros que escreveu, muitos vezes com grande custo, em edições de autor, ou criando selos ad-hoc para que os livros pudessem chegar às mãos de leitores ávidos de os ler, temos de reconhecer que a sua obra persistiu contra condições verdadeiramente desfavoráveis, num ambiente em que até a pretensão de uma mulher a ser levada a sério enquanto escritora está ainda longe de ser respeitada. “Quando eu comecei a escrever, ninguém acreditava naquilo que eu fazia. Porque eram escritos de mulher e, em muitas ocasiões, do quotidiano, e tudo não passa de uma questão de género”, lamentou certa vez a autora. E se agora lhe foi atribuído o Prémio Camões, e haverá tantos escritores daquela ou desta parte do mundo que não hesitarão em reconhecer que se está a premiar uma obra que não tem todos aqueles bons modos, aquele aprumo ou a formosura de um estilo repenicado, e poderão notar que Chiziane não passa de uma escritora apenas “mediana” no uso que faz da língua, esquecerão como há outros usos que podem contar mais do que os desígnios caprichosos das palavras, como a tradição, esses modos de uma sabedoria discreta que nutre o quotidiano de tantos, uma urdidura que traz continuamente o ouvido desperto, nos lança mais longe aquele olhar que vive no escuro, e se serve da luz da imaginação, puxando para si as coisas como uma rede bem larga, antes de compor com elas um fio, tantas vezes a partir de pensamentos inconstantes e nunca imaginados por outrem.
Contadora de estórias e não romancista, assim foi como Paulina Chiziane sempre preferiu que a reconhecessem. Como notou Miguel de Cervantes, “o sossego, o lugar aprazível, a amenidade dos campos, a serenidade dos céus, o murmurar das fontes, a quietude do espírito oferecem ocasião para que as musas mais estéreis se mostrem fecundas e ofereçam ao mundo partos que o cumulem de assombro e de contentamento”. Assim, ninguém negará que entre esses escritores que, como ardilosas aranhas, tecem as suas obras em condições bem mais favoráveis, revelando-se primorosos na gestão dos artifícios mais propriamente literários, o que não deixa de faltar a muitos é mundo. A Chiziane ninguém deixará de reconhecer que a pregnância da sua obra se deve grandemente a um conhecimento íntimo desses rios de fundo da sociedade moçambicana, e também desses tormentos que são vividos de forma tão apagada, tão secreta para o resto do mundo. Afinal, em certos territórios, “quando vemos como é que as pessoas vivem, e mais ainda com que facilidade morrem, é sempre difícil acreditar que caminhamos entre seres humanos”. Quem escreveu isto foi George Orwell, a propósito da sua passagem por Marraquexe. E prosseguiu: “Na realidade, todos os impérios coloniais assentam sobre este facto. As pessoas têm pele morena – além disso são em tão grande quantidade! Serão realmente de carne e osso como nós? Terão sequer nomes? Ou serão apenas uma espécie de matéria indiferenciada, de tom acastanhado, tão individualizados como as abelhas ou os corais? Erguem-se da terra, transpiram e passam fome durante alguns, depois afundam-se de novo nos montículos sem nome dos cemitérios e ninguém repara que já cá não estão. E até as campas rapidamente se desvanecem, dissolvidas na terra. Às vezes, em passeio, abrindo caminho por entre figos-do-inferno, reparámos que o solo está cheio de bossas, e só uma certa regularidade nessas bossas nos diz que estamos a caminhar sobre esqueletos.”
Esta passagem pode tornar-se incómoda hoje, tanto para quem arruma as suas sensibilidades para um lado como para o outro desta questão que tem suscitado debates tantas vezes tão frívolos por a maioria estar ansiosa por expor em concerto a grandiosidade do seu espírito, havendo tão poucos que reconhecem isto que nos diz Orwell: “onde os seres humanos têm pele escura, a sua pobreza é simplesmente invisível”. Sobre esses lugares que permanecem até aos nossos dias como parcelas mais ou menos desconexas dos antigos impérios coloniais, diz o escritor britânico que é provável que neles pudéssemos viver “durante anos sem repararmos que para nove décimos da população a vida é uma luta extenuante, interminável, para arrancar do solo erodido um pouco de alimento”. Ora, Paulina Chiziane admite que nunca enfrentou o nível de dificuldades por que passam tantos que vivem escravizados pela necessidade de encontrar um mínimo sustento. Assim, rejeitou, por exemplo, quaisquer comparações entre a sua obra e a da brasileira Carolina Maria de Jesus. Lembra-se de ter lido “Quarto de Despejo” com uma dor muito forte… “e tenho um grande respeito por essa mulher, pelas suas origens e pela luta que travou para sobreviver”. E a partir do reconhecimento da bravura com que esta autora registou as suas memórias, Chiziane questiona: “O que é literatura? Quem a criou? Para que serve?" E procura dar uma resposta a partir desse exemplo: “Então, a Carolina Maria de Jesus inventou um espaço e produziu um movimento que vinha da sua própria alma, um movimento de muito valor. E agora, quem são os outros para o questionar? Colocar etiquetas sobre o sentimento humano?” E conclui, afirmando que “é por isso que de vez em quando me zango com as academias, porque, preocupadas em colocar etiquetas e nomes, arrumar em gavetas, às vezes perde-se o melhor que a vida tem”. Ainda questiona se “aqueles que sabem o que é a literatura e que escrevem com recurso a todos os meios, se teriam capacidade de interpretar a vida com a real dimensão com que o fez Carolina Maria de Jesus”. Ora, o melhor que a vida tem é aquilo que dela sobrevive em nós, e que nos lembra que o mais difícil não é só colher e cardar as palavras que possam pôr em ordem a experiência, essa real dimensão das coisas em nós, pois não basta esse impulso de se querer assentar os factos, ainda é precisa a coragem, o balanço que vai fiando, e, mais do que o real, nos dá esses nexos que o tornam íntimo. É uma questão de usos, de um certo entusiasmo ao nível da consciência, essa gravidade que nos organiza interiormente. E para se treinar nesta arte, Chiziane começou e ir à caça dos seus próprios sonhos logo a seguir a despertar, naquele momento em que estes recolhem as suas fulgurantes impressões e se esquivam à realidade.
Numa entrevista que deu há uns anos, contava que foi a primeira coisa que escreveu: “o diário dos sonhos, que me custou muita sova em casa, porque eu sempre atrasava a escola. Acordava de manhã e a primeira coisa que fazia era sentar para registrar o sonho, em um diário, e quando chegava a hora de ir para escola não tinha ainda tomado banho. Enfurecia meu pai, que teve que ter uma mão dura para controlar, então, perdi esse diário, porque o meu pai queimou-o. Mas hoje dou-lhe razão (risos). Então essa foi uma das minhas primeiras manifestações da vontade de escrever. Mas eu pintava, gostava de pintar, assim à beira dos doze anos; gastava tudo o que era papel pintando. E o meu pai deu-me também muita sova porque estava a gastar o papel, que devia ser para estudar. Éramos oito filhos com um pai que era alfaiate de rua, por isso não havia muitos recursos. Fui experimentando várias maneiras de estar, e acabou vingando a escrita. Ficava a escrever e o meu pai julgava que eu estava a estudar (risos). A escrita era mais barato, e foi o que ficou. Deixei de fazer o diário dos sonhos, que fazia de manhã, mas comecei a rabiscar durante a noite, e acordava tarde na mesma. Essa foi uma guerra que meu pai nunca venceu, nunca consegui acordar cedo.”
Nascida a 4 de Junho de 1955 em Manjacaze, província de Gaza, no sul de Moçambique, no seio de uma família protestante, onde se falava chope e ronga, Chiziane aprendeu a falar e escrever português na escola de uma missão católica, pouco antes de se mudar para Maputo. Iniciou os estudos superiores na Universidade Eduardo Mondlane, nunca tendo concluído a licenciatura de Linguística. Tendo crescido nos subúrbios de Maputo, durante a juventude fez parte da Frente de Libertação Nacional (Frelimo), mas viria a ficar decepcionada com o ambiente político, sentindo em particular que ainda faltava muito para que o movimento de libertação e independência reconhecesse a necessidade de emancipação da mulher. Assim, em 1984, virou-se para a escrita como modo de ir ao encontro dessa razão que falta, desse sentido que nos vai escapando no confronto com a realidade. Começou por escrever narrativas de breve fôlego, contos. A sua principal influência foi o avô, um contador de histórias que a fez sentir como a palavra é antes de tudo um salvo-conduto, um modo de se furtar às circunstâncias que apoucam os homens, que lhes restringem os movimentos, e até a inteligência ou a imaginação. Chiziane começou por publicar alguns contos na imprensa moçambicana, no jornal Domingo, na Página Literária ou na revista Tempo. Eram histórias que, como reconheceu o presidente do júri do Prémio Camões, Carlos Mendes de Sousa, não apenas deram voz à mulher, mas que a colocaram no centro, dando expressão a tantas dessas vivências e dificuldades que estão cobertas por aquele manto de invisibilidade. Ao falar da esperança, do amor, desses problemas maiores que não apagam as subtilezas e os momentos ou actos graciosos que conferem à vida um tempero encantador, mesmo nas circunstâncias mais dolorosas, Chiziane começou um árduo e difícil processo de cura, de restituição, apontando um dos caminhos possíveis para as mulheres e para todos aqueles que sentem ainda o peso e os destratos de velhas assombrações, dos efeitos degradantes da colonização e das duas guerras (à da independência seguiu-se a guerra civil), de um processo que não libertou ainda aquele povo de ecos abusadores que sempre se renovam.
Em 1990, Chiziane publica “Balada de Amor ao Vento”, livro que, uns anos depois, vem a ser reconhecido como o primeiro romance escrito por uma mulher em Moçambique. Em 2002 publica o livro que viria a alcançar maior repercussão e sucesso, “Niketche: Uma História de Poligamia” onde relata a vida de Rami, que após descobrir que o marido tem outras mulheres se decide a procurá-las e criar com elas uma aliança para revirar aquele quadro em que é a mulher quem sempre tem de se subjugar à vontade do homem. A obra viria a ser galardoada com o Prémio José Craveirinha de Literatura em 2003.
Além de ter em muitos aspectos batido de frente contra todos os preconceitos, Chiziane para contar as suas estórias foi abatendo tabus, tendo falado de sexo com uma linguagem directa, simples, tantas vezes crua, e falou do desejo feminino, essa questão que não deixa de chocar as consciências e provocar um imenso desconforto. Luís Carlos Patraquim, poeta e jornalista moçambicano, identificou “uma dimensão telúrica, sem modismos literários, que impregna a própria matriz cultural da autora, uma respiração larga onde instância judicativa e ímpeto narrativo advêm directamente de uma oralidade como sabedoria primeira, matizando-se em registo diríamos que elegíaco, poético”. Num artigo publicado em 1999, a propósito da publicação do livro “Ventos do Apocalipse”, Patraquim admite que, embora sofra de uma certa falta de rigor no uso da língua, a linguagem consegue criar um efeito de circularidade cativante, numa “reiterada monotonia em crescendo de tragédia, que fazia daquela autora uma “das revelações mais promissoras da novel literatura moçambicana”. Passaram mais de duas décadas, e Patraquim reconhece ainda hoje a importância capital que esta obra teve num país e numa região (o Sul) “onde o feminino ainda não ascendeu à plena cidadania”
"A natureza satisfaz os seus caprichos macabros, nenhum ser é senhor de si. O sol vai e vem, a terra é uma caldeira com o negro assando-se dentro dela. Os homens não aceitam a indiferença dos deuses e tentam despertá-los do sono secular sacudindo-os com rezas, rituais, batucadas, sangue de galo e de cabrito cujas carnes tenras acabam nos estômagos dos que possuem garras e dentes”, eis uma passagem daquele livro que Patraquim quis então sublinhar. Mas podemos ir às páginas do mesmo romance levantar outra passagem que seja mais ilustrativa, não tanto de um certo fulgor literário nesse exercício de encadear as palavras atento ao rumor gracioso que estas produzem, mas mais ao seu compromisso com um projecto de afirmação de uma literatura pós-colonial, seja reivindicando uma autonomia do que se sente como da forma de se representar, misturando a denúncia social com um resgate de raízes ancestrais, da tal tradição oral que Chiziane sempre disse vir primeiro, sendo a escrita apenas a sombra que fica como uma imagem incompleta, mutilada, dessa razão que se foi tecendo entre tantos à volta da fogueira. “Escutai os lamentos que saem da alma. Vinde, sentai-vos no sangue das ervas que escorre pelos montes, vinde, escutai repousando os corpos cansados debaixo da figueira enlutada que derrama lágrimas pelos filhos abortados. Quero contar-vos histórias antigas, do presente e do futuro, porque tenho todas as idades e ainda sou mais novo que todos os filhos e netos que hão de nascer. Eu sou o destino. A vida germinou, floriu e chegámos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta madura. É época de vindima. Escutais os lamentos que saem da alma.”
Explorando ao acaso alguns dos livros da autora, tantos deles editados originalmente de forma bastante precária, vamos tropeçando aqui e ali num português só meio mastigado, bastante grumoso, ou desfeito em migalhas, e estas parecem largadas pelo caminho num efeito de sortilégio ou num calmoso desleixo. É uma escrita que nos faz ver que para lá de uma nau bem aparelhada, conta também esse ensejo de perseguir uma visão rumorosa, a audácia de estarmos tomados de um enxame de impressões para as quais tantas vezes nos faltam as palavras de modo a cumpri-las com um absoluto rigor. Mas ao invés de se deixar abater pelo desalento, a escrita é esse movimento de quem esforçadamente cria a consciência de um lugar, de um tempo, não cauterizando as feridas, mas deixando-as ao ar. Em vez de se buscar toda à procura da expressão ideal, pode manter-se o ritmo indo com aquela outra que serve, até para não se perder a compostura com o texto, acabando por jogar tudo fora ou, em alternativa, deixá-lo esfriar demais, emendando muito, enchendo-o de arrebiques pomposos. De algum modo, esta escrita leva-nos a pensar que, sem linguagem, ou antes da linguagem, a mente não se pode reconfortar a si mesma. Deve, contudo, haver algo de intermédio para não cairmos nesse excesso de linguagem que acabam embotando o juízo.
Em 2014, Chiziane fora já agraciada pelo Estado português com o grau de Grande Oficial da Ordem Infante D. Henrique, e já então dedicou o prémio às moçambicanas: “Quero encorajar o meu povo, as mulheres da minha terra: por muito difícil que as condições sejam, caminhem descalços e vençam”. Agora que recebeu a mais alta distinção às obras literárias escritas nesta língua, em vez de procurar uma pose orgulhosa, a autora teve a grandeza de se reconhecer surpreendida: "Sempre achei que o meu português não merecia tão alto patamar. Estou emocionada". E, numa entrevista que deu à agência Lusa, disse que a covid-19 a tinha mantido muito tempo em casa, quase desligada do mundo, e que o Prémio Camões 2021 podia ser "um alento novo", um símbolo de que a sua caminhada "valeu a pena" e de que "é preciso continuar a lutar".