João Barrento. Elogio do silêncio

João Barrento. Elogio do silêncio


Um dos maiores ensaístas portugueses, João Barrento acaba de publicar “Breviário do Silêncio” (Ed. Averno), um conjunto de ensaios intempestivos onde a festa do pensamento se faz contra a tagarelice.


A dívida que temos para com João Barrento é impagável. Não é apenas o trabalho incansável, meticuloso, de longos anos, sobre Maria Gabriela Llansol – uma obsessão, sem dúvida, mas talvez o que hoje falta seja esse movimento cego, imparável, esse aturdimento que nos arrasta e cujo objecto permanece, até ao fim, totalmente desconhecido.  Não é apenas, também, todo esse trabalho de tradução que, só neste ano, já nos deu a obra completa de Hölderlin (João Barrento é, sozinho, toda uma literatura, que vai de Rilke a Hölderlin, de Celan a Benn). A tudo isto, que já não é pouco, teríamos de juntar o singular e curioso ensaísta, que agora nos dá Breviário de Silêncio e que nos deu uma das mais intensas meditações sobre a “morte livre” com Como um Hiato na Respiração, Diário do dia seguinte – a indigência de um espaço público tagarela vê-se no manto de silêncio que recaiu sobre este último livro.

Numa edição cuidada, conseguindo entrelaçar de forma única a imagem (que não vale por nenhum conjunto de palavras, mas pode transportar consigo uma dose imensa de silêncio) com o texto escrito – sem ilustrações, que servem tantas vezes para encarecer um produto que se torna, cada vez mais, um objecto de luxo –, com uma interrogação que viaja constante e incansavelmente entre a imagem e a escrita, Breviário do Silêncio é um livro que, na sua sobriedade, se revela sempre e de cada vez intempestivo. Porque reclamar, hoje, essa experiência do silêncio, que talvez não seja nenhuma experiência – é sem interioridade, ou mais interior que qualquer interioridade, é uma atenção obstinada, uma relação dissimétrica onde não somos soberanos –, só pode surgir como profundamente intempestivo. É um texto de uma outra época, um texto sem época, menos uma acusação – que também é – que a abertura de uma possibilidade aí onde todos os caminhos pareciam encerrados. Um ensaio, vários, aliás, que vão da poesia de Echevarría a Hölderlin, de Maria Gabriela Llansol à obra desse outro intempestivo, Rui Chaves – género profundamente injustiçado face ao eucalipto a que se chama, actualmente, ficção – que reclama para si a festa do pensamento, mas uma festa que é também uma leitura, uma festa interior, silenciosa.

“Desta minha experiência faz parte a sensação do silêncio como uma festa interior. Tem a festa de ser ruidosa? Muitas vezes nos sentimos em festa interior, acompanhados da música, na contemplação, no êxtase do amor ou mesma na vertigem do corpo. Hölderlin lembra (no romance Híperion) que há ainda outras festas do silêncio, nomeadamente as da morte.”

 Esta festa interior parece hoje, tantas vezes, deslocada, fora de uso, como uma vaga lembrança, não de um outro tempo, mas de uma possibilidade ínfima, inscrita neste movimento de interrogação incessante (como incessante, abrindo-se no entrelaçar dos corpos e nas palavras, é este silêncio de que fala João Barrento). É tanto mais intempestivo – contra este tempo, contra qualquer tempo – quanto mais anacrónico, fazendo jogar em si, apelando, para um fôlego que poderíamos dizer cósmico, como se o silêncio fosse essa respiração ínfima das coisas, este movimento que as faz surgir, que nos captura, e que institui uma relação desde sempre dissimétrica. É a atenção, que João Barrento também convoca, como “oração natural da alma” (citando uma conhecida frase do teólogo Malebranche), onde, sem qualquer interioridade e sem soberania, vivemos num exterior onde o que conta são menos os objectos que as linhas melódicas.

Porque, de facto, este silêncio que de nos fala não é avesso ao som – é avesso, sim, à tagarelice, ao linguajar. Encontramos essa particular união entre som e silêncio no trabalho de Rui Chafes. Há, sem dúvida, o silêncio destas obras de onde a leveza nasce, tantas vezes, de uma gravidade insuportável, de um peso sem igual (“o pesado que é a raiz do leve, diz o Tao”), e que pedem uma distensão do tempo – são, diz o próprio Chafes citando Genet, oferendas ao inúmero povo dos mortos; mas o silêncio não está apenas aí, nessas obras que recusam a linguagem oferecendo-se à palavra (pedem qualquer coisa no preciso momento em que se subtraem a qualquer linguagem conhecida, seja ela da arte ou da filosofia); o silêncio encontra-se também no próprio labor de Rui Chafes – labor e não trabalho, parecendo haver aqui uma diferença abismal.

“Por vezes, os sinais do silêncio não são propriamente silenciosos, são sonoridades delicadas – a chuva leve na floresta densa, os passos que se ouvem no Palácio da Pena, o silêncio vibrátil dos objectos, as faúlhas da soldadura no escuro silencioso da oficina fogo prometeico da criação. As próprias ondas sonoras do martelo batendo na grande esfera negra, de tantos nomes, em si mesma cheia de silêncio”

Esta delicadeza, atenção às coisas ínfimas, carrega tudo de um halo de silêncio, como se víssemos a linguagem a retroceder – será, talvez, um outro nome para um conceito que João Barrento conhece bem, a aura de que fala Benjamin. É uma interdição, este silêncio não pode ser violado, e, no entanto, reside aqui uma das próprias fontes da linguagem – que tem, no entanto, de se medir constantemente, de estar à altura deste silêncio, o que implica, também, ter constantemente de se refazer: é uma questão de reinvenção permanente, de experimentação sem lei, de palavras que são como sondas enviadas, para usar a imagem de Wittgenstein que João Barrento usa, e que trazem, agarradas a si, despojos.

O que é que se ouve neste silêncio? Há uma palavra à volta da qual este conjunto de ensaios por vezes gravita – talvez seja necessário ter algum cuidado com ela ou colocá-la entre aspas: comunhão. O silêncio seria a experiência, ou melhor, no silêncio encontraríamos os despojos dessa experiência que nunca foi nossa, de uma comunhão com uma dimensão arcaica, um mundo que é tanto caos como ordem, feito de ritmos, de cambiantes, de silêncios.

“O silêncio é arcaico, pré-primordial. Em última análise, remete para origens inacessíveis (uma primeira in-fantia uterina do mundo, a forma informe do caos da natureza, grande mãe primordial, que a força da mão divina teve de domar depois, lemos em poemas de Hölderlin), antes de um onomaturgo primordial ter pronunciado a primeira palavra, o «faça-se»”

Maurice Blanchot dizia, algures, que quando se calar o último escritor o que desaparece é um certo silêncio. Este silêncio, claro, é aquele da própria literatura, está espelhado nestes ensaios em todos os momentos – é o momento da leitura, por exemplo, mesmo quando esta, levada pelo desejo, ganha esse movimento feito de precipitação e paragem, como uma ars erotica sempre à superfície da pele. Mas não é apenas algo que diga respeito à literatura, ou melhor, é-o na medida em que a literatura escapa sempre para fora de si, ganha uma dimensão cósmica (“o tempo do instante e o tempo cósmico são os verdadeiros sustentáculos do silêncio”). Que este “silêncio loquaz” – João Barrento refere-se a Hölderlin – não tenha hoje lugar é facilmente verificável: é o horror vacui demonstrado pelas televisões e jornais, que mostra que já não sabemos o que fazer com ele. Mas que ele já não seja hoje possível confere-lhe toda a sua urgência – daí, de facto, este conjunto de ensaios surgir, tantas vezes, como uma injunção.

Em todas estas declinações intempestivas de um silêncio que já não tem lugar há uma modalidade que, paradoxalmente, não comparece. Ou melhor, ela parece comparecer aqui e ali, sob a sua forma negativa – e, de facto, parece tratar-se de uma modalidade completamente negativa. É um silêncio, digamos assim, totalmente improdutivo, nem o horror vacui que encontramos na televisão – esse mal-estar sempre que o ruído se espaça – nem, também, esse “silêncio loquaz”, a fonte da linguagem que é uma outra forma de ler no livro da natureza. Chamemos-lhe, a título provisório, de “silêncio de Pascal” (lembrando a famosa frase que falava num silêncio eterno dos espaços infinitos), mas é possível também pensar numa passagem da Segunda Consideração Intempestiva onde Nietzsche fala do silêncio do animal – quando o homem lhe pergunta porque é que não fala, ele quereria responder que esquece logo o que ia dizer, mas até isso ele esquece e é remetido, doravante, a um silêncio melancólico do qual não consegue sair.

O que está em causa neste tipo de silêncio – pensemos, por exemplo, nesse silêncio eterno dos espaços infinitos – não é a “forma informe do caos da natureza” – talvez já nem se possa falar em natureza, sequer –, mas silêncio inumano, além da própria indiferença que a natureza tem para connosco. Petrificador, nem sequer desesperante, é um outro nome de um vazio que não nos reconhece e talvez a escrita pudesse, por vezes, tentar medir-se com ele.