"Uma condição [a de Portugal, como Estado exógeno e exíguo] que exige ser enfrentada, não pelo fascínio da alienação na ciência e na técnica em que se apoia a teologia de mercado que tem sedes directoras em lonjuras, mas pela convicção de que no princípio era o verbo, isto é, os valores, a decisão, um conceito estratégico que acrescenta, à informação e ao saber, a sabedoria de mobilizar, para o desenvolvimento humano sustentado, esses recursos da informação e do saber."
Adriano Moreira, A circunstância do Estado Exíguo, Diário de Bordo, Lisboa, 2009, p.177.
1-Desde a sua aurora que o Estado português se mostrou carenciado de auxílio exógeno – isto é, “necessitando de um apoio exterior à sua definição política e constitucional” – para “enfrentar a hierarquia das potências em cada data, e viabilizar o conceito estratégico nacional” (p.278). Na primitiva disputa, com a monarquia leonesa, logo emerge a “excelência” da diplomacia nacional – “talvez comparável à do Vaticano” (p.278) -, porquanto a intercessão junto do Sumo Pontífice, rumo à ratificação e legitimação portuguesas, se afirma estratégia vencedora, ainda que prolongada por décadas, ultrapassando, inclusive, a resistência papal de pretender uma cadeia de comando única para as forças cristãs. Alexandre III emite a Bula Manifestis Probatum est; a nossa independência histórica é reconhecida juridicamente, com Afonso Henriques oferecido em miles Christi [“guerreiro de Cristo”] (p.286).
2-Não faltam novas circunstâncias, na história portuguesa, onde lobrigar, reiteradamente, esta experiência (de nos confrontarmos com o factor exógeno impresso na nossa condição): “o acomodamento às exigências das mudanças estruturais da ordem internacional exigiram sempre um preço: a Restauração implicou a efectiva final cedência do Império do oriente, onde a presença inglesa se tornaria dominante até ao fim da guerra de 1939-1945; o projecto imperial de Napoleão exigiu uma penosa e longa reformulação constitucional portuguesa, com a renúncia à soberania no Brasil; a corrida das potências europeias da frente Atlântica para África, no século XIX, implicou a renúncia aos direitos históricos e o preço da talvez maior humilhação da história portuguesa que foi o Ultimatum de 1890; o desmoronamento da ordem euromundista, consumida na catástrofe da guerra de 1939-1945, exigiu o preço final do total abandono do império colonial português, parcela da estrutura imperial europeia em que se amparava. Este último facto marcou o esgotamento definitivo do conceito estratégico nacional que durante séculos teve o mar como horizonte dominante e a necessidade de reformular a definição constitucional do Estado iniciada com a Revolução de 1974, e de novo procurar o apoio externo na redefinida hierarquia das potências” (p.29-30).
3-Nas décadas mais recentes, a adesão à UE foi, também, uma inevitabilidade, uma não escolha (p.30), imposta pela exiguidade – Estado sem capacidades de cumprir as funções que lhe são acometidas/esperadas pela comunidade – do estado português.
4-Se nos referimos, em concreto, ao ‘Estado’ português é porque, na nossa história, é cristalino que o Estado precede a nação, “visto o percurso do Condado, confiado a um fidalgo vindo de longe, e a luta para a consagração da legitimidade da estirpe borgonhesa, a ser reconhecida quer pelo Imperador da Hispânia, D. Afonso VI, ligado pelo sangue a D. Afonso Henriques, quer pelo Papa Alexandre III” (p.49).
5-Tal não significa, de modo algum, que se deixe de identificar “factores diferenciadores [que] se encontravam no território, os quais puderam ser orientados para convergir na unidade nacional assumida, um tema que se tornou exigente nos séculos XIX e XX, com indagações que facilmente conjugaram factos como a língua, ou mitologias étnicas consagradoras de uma linhagem colectiva heróica, como foi o recurso aos gauleses pela França, ou aos lusitanos por Portugal, misturando a história com lendas. Talvez a conjugação efectiva desses elementos identitários, incluindo os costumes, as tradições, o amor à terra, as maneiras de amar, vestir, rezar, morrer, tenha sido dinamizada pela acção armada que lavrou no mundo as fronteiras estruturantes do apartheid que seria o modelo do globo dos soberanismos” (p.49). E, de resto, a crise de 1385 mostra que “a nação portuguesa tinha já a consistência das referências que as indagações novecentistas alinharam para definir esse tipo de comunidade excepcional, que incluía nos seus valores a defesa de um poder político nacional e independente. A longa duração do anti-espanholismo, com variações temporais, tem raíz no conceito de Lord Acton e na função militar do poder fundador” (p.49).
6- Assim, notaremos que “a identidade é sempre uma self-identification que leva os membros de um grupo a reconhecerem-se diferentes de outros, e, no caso da Nação, esse sentimento assenta no reconhecimento de uma história comum, interesses comuns, e um destino partilhado (Renan), por vezes implicando uma perspectiva etnocêntrica ou agressivamente racista” (p.48); que, p.ex., em 1640, houve acção empenhada do Padre António Vieira “que não hesitou em invocar o sebastianismo, nem em proclamar a confiança num Quinto Império a haver, para lograr a mobilização interna e o reconhecimento externo da independência recuperada” (p.278); numa palavra, “a variação da soberania é um fenómeno experimentado ao longo da história portuguesa, incluindo o difícil reconhecimento inicial dessa soberania, a submissão à dinastia filipina, a dependência da aliança inglesa, e os picos altos da função imperial” (p.52).
7-A actual crise portuguesa é, pois, e como sucedeu também, como acabámos de revisitar, ao longo da nossa história a de Estado soberano, mas não a de Estado nacional.
8- Para Adriano Moreira, em realidade, a capacidade diplomática, qual marca genética, presente, com brilhantismo de intérpretes/interpretação, desde o nosso momento inicial, é a grande força motriz que (nos) pode garantir que encontremos, a um tempo, a integração nos grandes espaços decisórios e conformadores do novo mundo/paradigma – sendo tais areópagos quer políticos, quer educativos/culturais, quer espirituais/axiológicos, quer económicos, para não sofrermos as causas de consequências em que não participámos/tomámos parte – e, bem assim, a criação de novas janelas de oportunidade/liberdade que permitam ao país um não bloqueio, nem fechamentos em estruturas/instituições que restrinjam a nossa capacidade de movimentação. A não exclusividade de filiação em determinados espaços políticos/culturais/geográficos; a mais-valia de um vaso comunicante entre continentes e culturas; a multiplicidade de diálogos e fronteiras, a promoção da paz, são, aqui, cruciais na afirmação de Portugal.
9- Para o Professor de Ciência Política, entre estas janelas de liberdade conta-se, inquestionavelmente, a CPLP. Muito interessantemente, é a Agostinho da Silva e ao seu pensamento preconizador da “multiplicação dos corpos”, por parte de Portugal, que recorre: “A experiência do Brasil, tal como aconteceu com Vieira, também esteve muito presente na circunstância de Agostinho, e também ele viu ali Portugal em corpo, como em corpo o veria nas colónias de África olhadas como países independentes a haver, sem esquecer os territórios perdidos como Malaca ou o Estado da Índia, e, naturalmente, o corpo que nos ficou situado entre o Minho e o Algarve (…) Então Agostinho, sem esquecer a invocação da confiança da Humanidade em Deus, advoga, no plano terreno que é o da política, a criação de uma Comunidade Luso-Brasileira, muito orientada pelos valores religiosos e culturais da cultura secular portuguesa (Romana Valente Pinho, in Agostinho da Silva e o Pensamento Luso-Brasileiro, Âncora, Lisboa, 2006). O texto que então escreveu, Condição e Missão da Comunidade Luso-Brasileira, também não foi recordado quando o, naquela data pouco atento Marcello Caetano negociou, como Presidente do Conselho Português, a Convenção de 1971 sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre Brasileiros e Portugueses, que a interpretação popular considerou como instituidor da dupla nacionalidade, e que seria reformulado, tendo em vista a multiplicação dos corpos, com a criação da CPLP em 1996 (…) O que (…) Agostinho (…) nos legou, com a teoria do milagre da multiplicação dos corpos [foi] uma semente de esperança que, nesta entrada do terceiro milénio, luta para germinar e crescer num terreno onde abundam os pessimismos esdrúxulos” (p.79-81).
10-Ainda tendo por escopo o pensamento de Agostinho da Silva e seu contributo para o germinar da CPLP e, outrossim, o seu carácter inspirador para as saídas possíveis para hoje: “Para Agostinho, a noção do Quinto Império, que o Padre António Vieira formulou, que Fernando Pessoa assumiu, que Camões talvez definiu na forma de utopia da ilha dos Amores, correspondia ao tempo daquela face da moeda que negava o poder que negava o poder de César, o tempo do espírito em toda a área unificada pela língua portuguesa, misturadora dos valores que transporta com os valores dos povos por onde passou a soberania ou simplesmente a pregação escutada.
É deste modo que posso ensaiar dar um sentido à sentença que nos deixou, e segundo a qual “só então Portugal, por já não ser, será”. Talvez como a Grécia, ou Roma, que perderam o poder político, que desapareceram como centro do poder, e que, “por já não serem”, estão visíveis no património comum da Humanidade.
Foi essa iluminação que esteve presente nos Congressos das Comunidades Portuguesas de 1964 em Lisboa-Guimarães-Coimbra, e de 1996 em Moçambique, organizados pela Sociedade de Geografia de Lisboa da qual era eu Presidente, legando um Programa que finalmente foi concretizado pela intervenção e convicção do Embaixador do Brasil em Lisboa Aparecido de Oliveira, tão injustamente esquecido nas celebrações oficiais da CPLP” (p.182).
11-Mas de que forma, afinal, poderá, a CPLP ser, actualmente, esse espaço de oportunidade e liberdade português? Para o compreendermos, teremos que, uma vez mais, precisar a circunstância: desde 1939-45 que o império euromundista se começa a desagregar; a hegemonia ocidental é, pois, colocada em causa; a soberania renascentista desaparece e dá lugar a uma soberania partilhada e cooperativa; a cidadania, na nossa geografia, é tríplice: adesão ao nosso estado-nação (que aqui coincidem); à Europa; à humanidade; a cidadania é, portanto, transnacional; há uma opinião pública mundial – que, no caso de Timor, se exprimiu e fez valer a sua força; finalmente, os vários espaços mundiais/culturais tiveram/têm direito a exprimir-se com voz própria; o saber não está já em reclusão, mas acessível e disputado.
Ora, neste quadro, “a capacidade que CPLP revela de construir um projecto assente na lúcida compreensão de que princípios e valores culturais asseguram as solidariedades de longo prazo, para além das diferenciações de leituras das conjunturas, dos conflitos de interesses datados, da própria subida aos extremos do recurso às armas” (p.148); mais, “as solidariedades horizontais são um elemento que fortalece o tecido da globalização das dependências, que contribui para uma articulação entre a linha da territorialização dos poderes políticos e a linha da mundialização da sociedade civil organizada em rede: textos de Amílcar Cabral, de Eduardo Mondlane, de Xanana Gusmão, testemunham que esta preocupação lhes foi comum nas distâncias geográficas em que agiam” (p.149).
Se “é certo que a organização tem de vencer dificuldades que são estruturais e resultam em grande parte de que cada um dos Estados-membros tem de pertencer a outros grandes espaços diferentes: o Brasil não pode deixar de pertencer ao MERCOSUL, Moçambique não pode deixar de aderir à Comunidade Britânica, a Guiné e Cabo Verde não ignoram o espaço da francofonia, Portugal está vinculado à União Europeia e à NATO” e “os conceitos estratégicos destes vários espaços nem sempre podem facilmente ser tornados coerentes, os recursos dos Estados são escassos e exigidos para satisfazer prioridades em conflito com as da CPLP. Por isso a estrutura continua débil, as disponibilidades financeiras são modestas, o conceito estratégico específico tarda em tornar-se vigoroso” (p.183), no entanto “a contribuição para a reformulação do conjunto de valores que possam dar forma e consistência ao paradigma pelo qual espera a ordem mundial depende mais do poder dos que não têm poder do que dos aspectos financeiros e das estruturas burocráticas, que certamente não podem ser descuradas. Uma das estruturas ao alcance dos recursos actuais parece-nos estar justamente na rede universitária, e nas redes paralelas das organizações representativas das actividades literária, artística, científica, profissional, e da comunicação social. Por essas redes circula o poder dos que não têm poder. Designadamente, não é difícil organizar, e não parece adiável, que na estrutura da CPLP seja definido um núcleo de reitores que dinamizem as regras e práticas de livre circulação do saber, dos mestres e dos alunos, dos títulos legíveis, de tal modo que aqueles que trilham os Novos Caminhos de Santiago não se dirijam predominantemente para centros fora da área transversal da CPLP. Porque nesta transversalidade está uma das suas mais valiosas contribuições para a sociedade solidária das áreas culturais que é preciso que se encontrem, negando as teses catastróficas do conflito de civilizações. Porque não temos dúvidas em reconhecer que o património comum da Humanidade não é nosso. Mas igualmente não temos dúvidas de que também é nosso” (p.183).
12- Fica, cremos, igualmente, claro, do ponto vindo de explorar: lado a lado com a sageza diplomática, a capacidade e a robustez na educação/nas universidades – aliás, a diplomacia muito dependente desta – é fulcral, na superação da nossa exiguidade, da nossa condição exógena, na manutenção de Portugal como estado soberano.
Adriano Moreira é concludente a este propósito: as universidades exercem uma função de soberania; tem-se assistido a uma mercadorização do ensino que rebaixa a sua condição – que, historicamente, foi a de assistir ao condicionamento, via financiamento, da sua autonomia, pelo Estado, pelas Igrejas ou os mecenas, mas a suplantação desse circunstancialismo, no ganho de independência, em função da (legitimidade ganha com o) excelência do exercício – a seguir os ditames de uma teologia de mercado, transformado os estudantes em (meros) clientes e, por outro prisma, obliterando que ao lado da ciência, da técnica, do conhecimento, tem faltado a dimensão de sabedoria aos claustros, onde o importante não é os anos que os estudantes lá passam (3+2, 4+1,5+0), mas o que aí adquirem (que instrumentos de interpretação/construção do mundo?), algo que, de resto, à nova luz de Bolonha, com a tutoria como modelo, requereria, mesmo, mais, e não menos, gente/mestres para o acompanhamento dos alunos.
Para a componente sabedoria, disciplinas como História, Filosofia ou Literatura – as Humanidades – teriam um papel fundamental, como, aliás, se defende em A circunstância do estado exíguo; todavia, a lógica, única, do produtivismo (as universidades influenciadas pela OMC, ou Banco Mundial, de modo directo, ou indirecto, com alguns think tank, como A. Moreira não deixa de trazer a debate), levou a que estas fossem colocadas de lado, e se confundisse a lógica de Politécnicos e Universidades. Faltou, ainda, articular Secundário com Ensino Superior – procurar que a chegada dos alunos ao ensino superior fosse bem preparada – e, deste último, com as Ordens Profissionais.
13- À Universidade, ela que deve estar à altura das ideias do seu tempo – quando não engendrá-las, formulá-las, questioná-las, colocá-las em causa -, como indicava Ortega e Gasset, em A missão da Universidade, título muito do agrado de Adriano Moreira, competirá, em nossos dias, explicar/tornar conhecido esse complexo fenómeno que é o globalismo: a vasta malha de rede que o perpassa; os sujeitos, de índole atípica (poderes atípicos), que têm uma força tremenda e que disputam o antigo poder do Estado (multinacionais, banca, ONG’s, Igrejas, Fifa, etc.), o novo tipo de cidadania emergente (de tripla filiação); a opinião pública mundial como factor relevante; o tipo de diplomacia pública necessária para com ela lidar; a perda do carácter sagrado das fronteiras, agora reduzidas a um mero apontamento administrativo; a eventual necessidade de uma universidade mundial, aventada – tal hipótese – logo após a I Guerra Mundial e depois da Segunda, agora reformulada em termos diversos, na procura de um maior mútuo conhecimento de áreas geográficas e culturais, seus valores, interesses e objectivos; emergência da carência de um eventual contrato ético entre todos os espaços para defesa de educação para todos, defesa do ambiente, paz (a este propósito, não raro Moreira, em intervenções públicas, cita os trabalhos de Hans Kung, embora não o faça nesta obra); formas de integração, assimilação, acomodação adequada e respeitadora dos movimentos migratórios – respeito por cada imigrante – que acedem às sociedades afluentes; compreensão de que todas as áreas culturais têm agora voz própria e de que os areópagos como a ONU devem atender, na sua reforma, a este novo factor; o saber está disseminado e não recluído e é a grande hipótese dos que não têm voz se fazerem ouvir e se destacarem; compreensão de que há entidades decisoras, como o G20, que não têm legitimação democrática para decidirem por todos e o têm feito (mas, assim, também, muita da construção europeia, ao longo dos anos); recordação que é à ONU que pertence uma palavra decisiva em alturas de crise como a que vivemos na última década, reclamando-se a intervenção do Conselho Económico e Social, em suma, preparar um conceito estratégico nacional que esteja à altura – e de acordo com – o tempo que vivemos.