Cláudia Andrade continua a manter a sua ficção afastada da lógica cinicamente comercial que nos governa e indiferente aos que buscam na literatura consolo e gratificação imediata. Antes de a Elsinore a descobrir, escrevia para o eco morto da gaveta e sob pseudónimo. Anos e anos de escrita no silêncio do anonimato explicam o ritmo editorial acelerado que se seguiu: depois da colectânea de contos “Quartos de Final e Outras Histórias” (2019), veio o romance “Caronte à Espera” (2019), distinguido com o Prémio para "Melhor livro de Ficção Narrativa" SPA 2020, a que se segue agora um “romance coral”, em cuja constituição entram, como tónicas: o cuidado construtivo, a crueza poética, um tom friamente irónico, quando não gelado. Rege-o uma batuta de “metal fundente”, desinfectada das coisas sentimentais. É a que convém à guerra (forma protocolar da epopeia) que neste livro se desenha – há convocatórias, há estampidos, sibilares guerreiros, futuros defuntos pátrios (e unhas partidas!) – mas que nunca chega efectivamente a viver-se.
Antes de ter publicado qualquer livro – e para usar o título de um capítulo deste seu novo romance – “a espera era um caracol sonhando asas”?
Era mais um caracol que ia avançando acreditando estar parado, por compreender mal a noção de movimento, e confundi-lo com velocidade. Mas não era um caracol em espera. Estava muito contente com a sua condição de gastrópode a espalhar a sua baba pelas folhas.
Profissionalmente, o que é que a ocupa?
Os trocos que consigo à laia de ordenado vêm do Pilates. Sou formada em Educação Física, mas cedo percebi que nem morta queria ir dar aulas para a escola (devo dizer que o meu companheiro é professor e vive bem com isso), por isso estudei Pilates. Os horários são esparsos e o tempo para escrever não é realmente problema. O dinheiro é que seria um problema, tivesse eu uma vida mais convencional, com os correspondentes gastos.
É habitual dizer-se que a literatura alimenta mal. Pudesse, e gostaria de poder viver da escrita?
Se pudesse dedicar-me exclusivamente à escrita, provavelmente não o faria. Gosto do meu emprego técnico, que é também criativo. E depois, as pessoas são o objecto sobre o qual escrevo, e creio que faz bem ao que escrevo que eu converse com pessoas e não fique sentada à secretária o dia todo. Quer dizer, o António Lobo Antunes fá-lo, e aquilo que faz é extraordinário, mas ele é uma memória com pernas.
O facto de o meio literário não lhe ser propriamente familiar, bem ao contrário, constituiu um entrave à publicação ou pode explicar de algum modo uma chegada mais tardia ao mundo da letra impressa?
Suponho que acabou por ser uma vantagem. Não havia qualquer ansiedade, porque também não havia qualquer esperança de publicar. Não conhecendo as pessoas, não podia abordar ninguém na esperança de uma cunha. Não conhecendo os procedimentos, não valia a pena tentar armar-me em relações públicas, o que teria sido patético, conhecendo-me bem. Escrevia para aquecer, e estava bem assim. E assim, hoje em dia levo uns anitos de avanço relativamente ao que está publicado, o que me dá muita tranquilidade.
E impressões do meio literário, havia?
Não tinha qualquer impressão clara, mas a ideia vaga de que só um génio, um fabricante de bestsellers ou um sobrinho de alguém com poder no meio podia aspirar a um lugar nas prateleiras. Mas afinal há meios termos, e ainda bem.
Entretanto depois da publicação do primeiro livro, não tardaram os elogios críticos e foram bem rasgados. Esses elogios pesaram-lhe? Condicionam-na de algum modo?
Tento não ficar demasiado presumida ou levar demasiado a sério uma crítica positiva, para poder com legitimidade ignorar as outras também. O facto de ter tido um punhado de leitores e feito uns trocos para comprar pevides, ultrapassa em muito a minha expectativa e ambição iniciais. Possuo um saudável pessimismo relativamente a tudo isto, e tenho a certeza, tal como tinha muito antes de publicar, que escrever vale a pena só porque sim, porque exorciza os demónios e porque me dá um propósito. Não estou a dizer que isso me faz imune quer às decepções quer às alegrias do foro do reconhecimento literário, não faz. Dizerem bem do que fazemos é-nos agradável e dizerem mal desagradável, quanto a isso não há nada a fazer. E isso de “aceitar a crítica negativa com objectividade e melhorar a qualidade do trabalho” (conselho de um amigo) era bonito, não se desse o caso de eu não ter qualquer poder de decisão acerca do quê e como preciso escrever para exorcizar os tais demónios.
E esse poder cabe a quem?
Não faço ideia. Sou uma mera estenógrafa do diabinho por cima do meu ombro.
Está a dizer que é uma transcritora desse demónio? Ele sopra, dita, cabendo-lhe a si a mera tarefa de passar a escrito, como se a escrita fosse o fruto de uma visitação que não controla? Está a sugerir, portanto, uma concepção romântica da literatura?
Não exactamente, nem sei bem o que isso é. Digamos que eu teria poder de veto sobre o diabinho, se o tipo me mandasse escrever algo que não me soasse bem. Ora isso não acontece. Por outro lado, realmente essa "voz" parece-me vir de fora. Talvez seja esquizofrenia. Tenho de ir ver isto [risos].
Presumo que esse demónio seja bastante enérgico, porque é difícil encontrar nos seus livros uma frase que se possa considerar mole, frouxa, sem função. Preocupa-a a construção da frase em si mesma?
O prazer de escrever passa também por evitar essa frase frouxa. Quando escrevo quero dizer algo, mas quero também construir algo estético, e acho que em mim a estética passa pela densidade e pela concisão. Mas não tem de ser assim. O Thomas Berhard, por exemplo, repete-se e repete-se, faz variações sobre o mesmo tema (a mesma frase) que são quase musicais, e todo aquele ritmo é bonito e faz todo o sentido esteticamente falando. Eu era incapaz de o fazer assim.
A propósito de vigor: pende sobre a literatura portuguesa a acusação de ser má na cama – já dirá se concorda ou se lhe parece má imprensa. Curiosamente, não faltam aos seus livros lances com conteúdo sexual que estão em condições de contrariarem essa percepção generalizada. É-lhe fácil escrever cenas de sexo?
De facto, pensando nisso, não me recordo de ler trechos memoráveis sobre sexo, de autores portugueses. Mas não sabia que a literatura portuguesa tinha essa fama. Talvez seja mas é frígida, tenda para a assexualidade. Embora deva haver excepções que desconheço, há sempre excepções. Escrevo na direcção daquilo que me surge como orgânico, como evidente, que é o que "funciona". A linguagem constitui sempre um desafio, mas o conteúdo, uma vez encontrado, não pode ser algo que me ponha dificuldades especiais, ou simplesmente não seria o caminho a seguir. As cenas de sexo não são excepção. Não acho que os trechos de teor sexual que escrevi sejam um bom exemplo para contrariar a ideia de que a literatura portuguesa é má na cama, porque o que me sai é um Tanatos mascarado de Eros. Em livros meus anteriores, recordo: um casamento em que a noiva leva um empregado do catering para um cubículo da casa de banho como vingança ao noivo (que afinal não quer saber); a sexualidade recalcada das mulheres de uma aldeia com resultados, como dizer … (?) coloridos; o sem abrigo enlouquecido, que se recorda de ser "humano" através da masturbação que pratica em público; a prostituta que se presta ao sexo contrariada e distraída; o violador de viúvas solitárias no cemitério, a violação sistemática da empregada por parte do patrão; o velho com um pé para a cova que apalpa as enfermeiras e se obceca por uma menina que vai visitar o avô, e mais uns etcéteras.
E onde é que se baseou?
Três das situações referidas basearam-se em factos verídicos. Do meu conhecimento, quero eu dizer. Aposto que verídicas são todas em algum tempo ou lugar. E nenhuma pode excitar sexualmente uma mente sã. E neste "Um Pouco de Cinza e Glória", creio que o Tanatos estrangula o Eros de vez. O sexo é sempre sórdido, não por ser particularmente pornográfico (não o é de todo), mas porque o contexto em que surge lhe retira qualquer intenção erótica e lhe atribui um propósito particularmente sinistro.
Diz-se contista, mas a verdade é que depois de um primeiro livro de contos (“Quartos de Final e Outras Histórias”), surgiu um romance a que faz seguir agora outro romance…
Sim, não sou lá muito constante relativamente a isso. Já me autodenominei contista, já me desdisse, e já não tenho muitas certezas quanto ao assunto. Mas continuo a achar que a história curta pode uma densidade, intensidade e profundidade fabulosas, mais complicadas de atingir num romance.
O facto de atribuir um título próprio a cada capítulo é uma tentativa de subir as bainhas ao romance?
Quando achei que tinha terminado o livro, os capítulos ainda não tinham título e não me ocorria fazê-lo. Depois de deixar o manuscrito em banho-maria durante os meses – como faço sempre para conseguir um certo distanciamento –, ao fazer a primeira revisão, uma ou outra epígrafe nasceu sozinha e convidou às restantes. Gosto desta opção, sinto que cada frase consegue urdir um pequeno mistério a decifrar em cada capítulo correspondente.
Este roda em torno de uma guerra que se desenha mas que não se vive e não é localizada em qualquer tempo ou espaço. Porquê?
Sei que por definição as guerras fazem-se entre potências bem localizadas no tempo e no espaço. Mas o “Um pouco de Cinza e Glória” trata-se de um universo em que a guerra é algo que define toda a acção pelo horror que a mera alusão traz consigo, mas que não chega a viver-se efectivamente. Não tenho interesse em ficcionar sobre as questões históricas, políticas ou económicas de um conflito em particular, mas em “estudar” as contingências do comportamento humano numa situação dessas. As hipóteses que coloco sobre o percurso desse grupo de indivíduos à espera do horror da guerra, creio que não mudaria demasiado se especificasse o espaço-tempo da acção. A psicologia, a filosofia e a poesia da questão humana seria a mesma, estivessem eles à espera que uma catapulta os esmagasse ou uma bomba atómica os fizesse desaparecer.
O livro apresenta-se como um “romance coral”. Isto relaciona-se de algum modo com um programa prévio que prevê que nenhuma personagem ouse levantar a cabeça?
O “Um Pouco de Cinza e Glória” nasceu de forma um pouco diferente daquilo que me é habitual. Normalmente parto de ideias, não de imagens. Mas neste caso surgiu-me uma imagem muito clara, e eu, que não sei desenhar nem para salvar a vida, dei por mim a desenhar o pátio em redor do qual iriam morar as personagens. Quando isto aconteceu estava no apartamento em Lisboa, cujas paredes são antigas, não têm insonorização nenhuma, e parecia-me que em todas as outras casas do prédio alguém berrava com alguém. Acho que por isso a imagem dos vizinhos, cada um com as suas tragédias próprias, e do pátio central onde converge a tragédia comum. Decidi que não haveria um protagonista e todos teriam a mesma relevância.
Esta forma “coral” lançou-lhe particulares desafios? Exigiu-lhe uma batuta firme?
O principal desafio dessa forma “coral” de escrever o romance é a necessidade dessa democracia na atenção do narrador, e consegue-se através do facto de estarem todos em confronto com o Inimigo, com I maiúsculo. O inimigo ainda ausente que vai entrar na aldeia por razões políticas, o inimigo secreto que é vizinho ou familiar, e o inimigo que mora dentro de cada um. Na verdade, nenhum do mal que acontece no tempo do romance é um mal vindo de fora.
A harmonia, para nos mantermos na esfera musical, é para si, do ponto de vista literário, um valor negativo?
A Harmonia (posso chamar-lhe Bem?) está quando e onde a desarmonia, ou o mal, não se encontra. Suponho que se pode escrever longamente sobre uma paisagem em êxtase panteísta, sem que nenhum distúrbio ocorra. Mas se eu tentasse fazê-lo, provavelmente acabaria a atormentar o meu narrador com pelo menos uma dor de dentes, para o lembrar de que tem um corpo e uma mente sensíveis, vulneráveis ao mal. Eu prefiro pensar a questão do mal porque literariamente é um tema riquíssimo. Desde aquele mal muito mau do maniqueísmo até ao mal causado com a melhor das intenções, passando pelo mal que se herda como hábito transgeracional ou social, o mal que provém da ideologia, da estupidez, duma leitura paranóica da realidade, da inflação do ego (que na verdade é sempre uma deflacção do ego), etc, etc, etc. É um manancial literário que nunca mais acaba.
À semelhança dos livros anteriores, não se cansa de fazer mal às personagens, que recebem das suas mãos tratos de polé. Estava decidida, desde o início, a dar-lhes desfecho trágico?
Atormento de facto as minhas personagens, mas nunca lhes decido de antemão os destinos. Observo os seus percursos e ensaio as possibilidades que me pareceram mais interessantes. Estou completamente na ignorância do que vai acontecer no momento seguinte, antes de o decidir baseando-me naquilo que já escrevi e que achei funcionar. Quando digo funcionar, não me refiro tanto àquilo que consegue entreter ou ser estético – embora ache que convém conseguir ambas as coisas –, mas a algo que é capaz de desenterrar alguma forma de verdade oculta (uma entre muitas). Acho que a ficção literária é a forma mais privilegiada de escarafunchar os meandros da realidade. Enquanto que um estudo científico sociológico ou psicológico tem imensos constrangimentos, como critérios rígidos e grelhas de observação, para além das questões éticas que não permitem ao estudioso colocar os objectos do seu estudo em determinadas situações (felizmente), um narrador de ficção pode, e acho que deve, pôr-se nas mais estapafúrdias posições para captar certos ângulos complicados, pode espreitar pelo rabo acima de alguém se lhe apetecer. É uma liberdade muito fértil, em potencial.
Há alguma personagem a que se tivesse apegado ou queira destacar ?
Talvez o Vidal. É um fulano brutal, narcisista, sociopata, tem a pior das intenções, e devido a uma série de desencontros, não consegue (no tempo do universo do romance) sujar as mãos, como tanto deseja. É-lhe oferecida uma oportunidade de redenção que não merece de todo, e sabemos que não saberá aproveitá-la. Diverti-me com ele.
Escolheu falar de um homem, apesar de as mulheres estarem bem mais presentes neste livro do que no romance anterior. Porquê?
Quando comecei a escrever, há mil anos atrás, os meus narradores e as minhas personagens eram todas homens. Identificava o homem com o humano, e sempre que tentava dar forma a uma mulher sentia que deveria abordar questões “femininas”, fosse lá isso o que fosse, e usar modos de expressão também “femininos”. Era um equívoco (e uma verdadeira estupidez) da minha parte, obviamente. Mas não era completamente desprovida de razões. Fala-se de uma “escrita feminina”; já me deparei com concursos literários exclusivamente para mulheres; há muito pouco tempo recebi uma newsletter sobre formações literárias (não costumo fazê-las, mas recebo informação sobre), e em vinte e um eventos, cinco convidavam especificamente mulheres e possuíam conteúdos exclusivamente sobre mulheres. Entre elas uma “Tertúlia Feminista” (o sufixo ismo nunca ajudou a fomentar o meu entusiasmo por coisa nenhuma), e um denominado “A Carga Mental Feminina”, que não faço ideia do que é, mas suponho que é não só muito diferente da masculina, como também muito mais merecedora de uma formação a propósito.
As questões que levam de antemão a etiqueta feminina afligem-na?
Já me fizeram (em público!) uma pergunta sobre “literatura e condição feminina” que me fez fazer figura de parva porque gaguejei, com uma branca total na cabeça, a tentar espremer qualquer comentário inteligente a propósito, ou mesmo menos inteligente, que nunca veio. Ora: é óbvio que se passa qualquer coisa que não atinjo. E como não atinjo, não procuro ter qualquer opinião sobre o assunto. Apenas não compreendo, pronto, sou burra quanto ao assunto. Hoje em dia, já consigo criar uma mulher literária. Basta-me pensar: ora bolas, eu sou uma mulher, afinal não me sinto transsexual de todo. Portanto, não complicando, se calhar uma mulher fala e pensa e age como eu falo e penso e ajo, e pode talvez estender-se por todo o leque plural de formas que as pessoas têm de se expressar e de pensar e de agir. Ou seja, já percebi o que é uma mulher: é uma pessoa [risos].
Só para a moer: se tivesse de falar de uma personagem feminina deste romance, sobre qual recairia a sua escolha?
A Balbina. Uma pessoa inadaptada, confusa, auto-boicotadora, que acaba por se destruir completamente. Mas que no meio disto acaba por satisfazer um desejo. Ou melhor, há um desejo que se satisfaz. Porque é uma pessoa destruída, não existente realmente, que o satisfaz. Esse desejo é exactamente “ser uma mulher”, o que para ela significa perder a virgindade.