Crise energética. Carregamentos nos elétricos também sofrem

Crise energética. Carregamentos nos elétricos também sofrem


Escalada do preço da energia no mercado grossista leva por arrasto comercializadores da mobilidade elétrica e faz encarecer os carregamentos dos veículos na rede pública.


Com as políticas de transição energética, traduzidas na subida do imposto sobre as emissões do carbono e no desinvestimento nos combustíveis fósseis por parte da União Europeia, os preços da energia no mercado grossista têm sofrido aumentos consecutivos a reboque das variações no preço do petróleo, do gás natural e do carvão. Em Portugal, se esta realidade já se faz sentir no preço dos combustíveis para quem conduz um veículo com motor de combustão interna, a verdade é que também tem afetado a mobilidade elétrica. Isto porque a produção de eletricidade a partir de energias renováveis no país ainda é insuficiente.

O acumular destas diferentes variáveis levou a que alguns comercializadores de mobilidade elétrica (CEME) aumentassem o preço da energia do kWh (quilowatt hora), explica o presidente da UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos. “Há de facto alguns casos, o caso mais referido neste momento é o da miio”, explica ao i.

A miio, que é um dos cinco maiores CEME em Portugal, contando com mais de 50 mil utilizadores, atualizou recentemente o seu tarifário. Este valor passou a ser indexado ao preço do mercado diário de eletricidade (OMIE), o qual tem uma variação horária, de forma a permitir aos seus utilizadores tirar partido de horários em que a eletricidade está a um preço reduzido no mercado grossista. Em termos concretos, isto significa que o custo do kWh num posto de carregamento lento (22kW) pode variar neste momento entre os 38 cêntimos, nas horas mais baratas, e os 70 cêntimos, nas horas mais caras. Fazendo as contas, o custo de um carregamento, na totalidade, pode ser de 8,36 euros, no período mais barato, ou atingir os 15,4 euros, no período mais caro. Nos postos de carregamento rápido (50kW), os valores são ainda superiores, podendo ultrapassar os 50 euros por carregamento.

Nos primeiros nove meses do ano, 61% do consumo de eletricidade em território nacional foi abastecido pelas renováveis. Contudo, os meses de verão foram anormalmente parcos em vento, tanto em Portugal como em Espanha, e consequentemente houve uma menor produção de energia eólica a entrar no mercado ibérico. Em resultado desta insuficiência, a miio, que normalmente trabalha apenas com fontes renováveis, viu-se forçada a comprar eletricidade proveniente de fontes como o gás natural e o carvão para fazer face às necessidades de consumo dos seus utilizadores, fator este que fez aumentar ainda mais o preço da energia nos postos de carregamento deste CEME.

“Aumento gigantesco” “Todas as entidades que compram eletricidade no mercado liberalizado, que no caso português é o MIBEL (Mercado Ibérico de Electricidade), estão a ser confrontadas com um aumento gigantesco do preço grossista da eletricidade, fruto do aumento do preço do petróleo, do aumento do preço do gás, e do aumento do preço do carvão”, corrobora Henrique Sánchez, da UVE, salientando que em países como a Noruega a eletricidade não aumentou, por uma razão muito simples: a eletricidade neste país é quase 100% abastecida por fontes de energia hídrica.

“Em Portugal temos um mix que inclui entre os 50% e 60% de energia renovável, mas no resto temos que utilizar o carvão, o gás natural ou qualquer outro tipo de combustível fóssil para produzir eletricidade. A forma de Portugal se defender do aumento do custo grossista dos combustíveis fósseis é aumentar fortemente a sua produção de eletricidade através de fontes renováveis”, defende.

Apesar da situação ser generalizada, nem todos saem impactados. “Um grande operador ou comercializador de eletricidade faz as suas compras a longo prazo. A EDP deve ter eletricidade comprada e garantida, através de contratos futuros, para um período entre 6 meses a um ano e, portanto, vai poder suportar preços normais, sem ter que aumentar, porque já tem comprada essa eletricidade com antecedência”, realça o fundador da UVE.

Por outras palavras, isto significa que os CEME com mais capacidade financeira estão mais ou menos protegidos contra as variações conjunturais que o preço da eletricidade pode sofrer. O mesmo não acontece no caso de um comercializador pequeno, como é a miio, a EVpower, a KLC, ou a Mobiletric.

“Não têm a capacidade de uma EDP, uma Galp, ou uma PRIO, para gerirem as suas aquisições de energia a longo prazo. Quem tem possibilidade de adquirir a longo prazo com um preço previamente contratado está imune a variações conjunturais. Quem não tem, está completamente exposto”, reforça.

Também contactada pelo i, a Mobi.e, designada como Entidade Gestora da Rede de Mobilidade Elétrica (EGME), diz desconhecer qualquer informação sobre alguma pressão adicional sobre os os CEME e OPC (operador do ponto de carregamento), motivada pela subida dos preços da eletricidade.

“Apesar do aumento do preço da eletricidade, a utilização do veículo elétrico é cada vez mais competitiva quando comparada com os gastos associados à utilização de veículos a combustão interna”, argumenta o presidente da Mobi.e, Luís Barroso.

Contudo, o i sabe de vários utilizadores de veículos elétricos que apresentaram queixa aos respetivos CEME, após terem notado um aumento substancial nas faturas dos carregamentos na via pública, como é o caso de um proprietário de um Tesla Model 3 que efetuou um carregamento de 67,36 kWh, por um custo total de 53,58 euros. Contas feitas, cada kWh custou cerca de 79 cêntimos.

Ainda assim, de acordo com a entidade gestora, desde abril, a rede Mobi.e tem vindo a registar recordes mensais quer ao nível de carregamentos, quer ao nível de consumos. E também a venda de viaturas elétricas tem vindo a aumentar tendo em setembro último registado uma quota de mercado de 25%, e no acumulado até ao final de setembro de 2021 era de 17,3%, quando durante todo o ano de 2020 foi de 13,6%.

“A pressão a existir é no bom sentido, isto é, ao nível de crescimento de clientes e do mercado da mobilidade elétrica”, diz Luís Barroso, acrescentando que acredita que “no curto prazo os CEME irão encontrar soluções para que as suas ofertas se mantenham competitivas num mercado que está a atravessar uma fase de alguma incerteza”.

Para o presidente da Mobi.e, não é provável que o consequente aumento do preço de carregamentos na via pública leve a que haja uma quebra no número condutores que opta por um elétrico.

“Não nos parece que seja esse o caminho e a realidade é que o número tem continuado a aumentar e esperamos que a tendência se mantenha. A instabilidade no setor da energia tem afetado os vários segmentos e as soluções de produção própria de eletricidade poderão ajudar a diminuir a fatura dos utilizadores, assim como a criação de pacotes de serviços”, explica.

Impostos sobre a eletricidade vão subir? Para o setor enfrentar a atual crise na escalada dos preços energéticos, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) vai avançar com um corte na tarifa de acesso às redes (TAR) de 94% para empresas e de cerca de 50% para particulares, com efeito a partir de janeiro de 2022. E para as tarifas o regulador pretende uma redução de 3,4% em janeiro face a dezembro de 2021, para o mercado regulado.

Na ótica da UVE este é um passo importante, mas não é suficiente: “A situação é mais complexa que isso e deve obrigar-nos, enquanto país, a acelerar a produção de eletricidade a partir de fontes renováveis. Se toda a eletricidade produzida em Portugal fosse proveniente a da energia solar, eólica, ou hídrica, nós tínhamos um controlo completo sobre o preço. Se a fonte que produz a eletricidade for renovável é evidente que o preço da energia vai ser mais barato”.

Apesar de Portugal estar efetivamente empenhado na descarbonização, a verdade é que se houver cada vez menos carros a combustão a consumir gasóleo ou gasolina, o Estado vai arrecadar cada vez menos com o ISP (Imposto sobre Produtos Petrolíferos). Em 2020, a receita com este imposto foi superior a 3,3 mil milhões de euros.

“O Estado vai ter que compensar essa quebra na receita fiscal”, admite Henrique Sánchez, antevendo que por essa razão no futuro sejam aumentados os impostos sobre a eletricidade.

“Mas há um dado para o qual temos alertado e que o Governo tem que ter em atenção. O facto de se poluir menos e do ar nas cidades ser muito mais limpo, vai provocar menos doenças respiratórias, menos doenças do aparelho auditivo, menos baixas por doença do trabalhador ativo, e menos idas ao SNS para tratar essas doenças. O Estado vai efetivamente diminuir a receita fiscal dos produtos petrolíferos, mas vai diminuir também a despesa com o SNS e com a Segurança Social”, nota.

Um outro fator que encarece os carregamentos na via pública são as taxas de operação, que devem ser tidas em conta pelos utilizadores.

Atualmente, a rede Mobi.e conta com uma cobertura geográfica superior a 95% dos municípios, com cerca de 2 mil postos de carregamento e mais de 4 mil tomadas, e o objetivo é que até ao final do ano a rede cubra todo o território nacional, ou seja, os 308 municípios.

Portugal ocupa o 4.º lugar na Europa, enquanto país com maior número de postos por 100 km, segundo um estudo publicado pela Associação de Construtores Europeus de Automóveis (ACEA).

De facto, a rede tem vindo a crescer em número de postos, mas também no número de entidades que disponibilizam serviços aos utilizadores. Neste momento, conta com postos de 49 OPC e com 19 CEME, sendo que os cinco maiores, que representam mais de 95% do mercado, são a DCS – Digital Charging Solutions, a EDP Comercial, a Galp, a miio e a PRIO.

Quanto aos OPC, os dez que possuem mais postos integrados, e que representam mais de 80% dos postos da rede são a EDP Comercial, a EMEL, a Galp, a Helexia, a Iberdrola, a KLC, a Maksu, a Mobilectric, a Power Dot e a PRIO.

Apesar da aparente facilidade em carregar o automóvel na rua, esta não é a opção que mais compense aos utilizadores, garante o presidente da UVE.

“Em casa, para ter eletricidade, basta ter um carregador wallbox, que custa entre 300 a 400 euros. Para ter eletricidade na rua é preciso um posto, que pode custar 2 mil euros, um posto normal, 20 mil euros, um posto rápido, ou 40 mil euros, um posto super rápido. Ou seja, há um custo adicional do investimento no equipamento, que em casa não é tão caro”, esclarece.

Em alguns casos o carregador wallbox pode ter um custo adicional de aluguer, mas que é muito reduzido comparativamente ao investimento que é feito fora de casa.

“Com uma agravante: há postos de carregamento a serem instalados em localizações que obrigam a um aumento de potência do ramal de ligação à rede existente ou a um aumento do próprio ramal, porque o ramal está afastado centenas de metros e o operador quer colocar o posto naquele sítio porque fez um estudo e acha que naquele sítio é onde passam mais carros elétricos, ou mais carros, portanto é um sítio que lhes vai trazer maior retorno para o seu investimento”, continua Henrique Sánchez.

De acordo com um estudo divulgado pela UVE, com os valores dos combustíveis fósseis de agosto, sem os últimos aumentos, para percorrer 100 quilómetros, um carro a gasolina gastava 12 euros, um carro a gasóleo gastava 9 euros, um carro elétrico gastava 6 euros na rede pública, 3 euros em casa, e com uma tarifa bi-horária gastava 1,5 euros.

A conclusão que se tira parece óbvia: o preço do carregamento em casa é muito inferior e com a benesse de que, se o utilizador tiver uma tarifa bi-horária e carregar durante a noite, nesse período a eletricidade é 50% mais barata.

A razão, refere Henrique Sanchéz, tem que ver com um custo adicional que os operadores têm, quer com o equipamento, na sua aquisição, quer com a sua instalação e ligação à rede energética nacional, quer depois com a necessidade de fazerem a manutenção desse equipamento, que, no caso dos carregadores ultra-rápidos, obriga ainda à refrigeração líquida do próprio posto tal é a sua potência.

Para amortizar o custo do equipamento e para garantir a manutenção do mesmo “nos carregamentos na rede pública, há uma taxa de operação ou de ativação que depende do operador” e é essa taxa que faz também disparar o preço dos carregamentos na rede pública.

Recentemente, cinco das empresas mais relevantes no panorama da mobilidade elétrica aliaram-se para impulsionar o setor. A APOCME – Associação Portuguesa de Operadores e Comercializadores de Mobilidade Elétrica, que junta a PRIO.E, a EDP Comercial, a Galp Power, a KLC e a Mobiletric, promete fazer crescer a rede pública e as opções de carregamento, e tornar as soluções para os utilizadores cada vez mais digitais e acessíveis.