Kyma e Safi.  Escuta: não escolhas nunca ficar na areia…

Kyma e Safi. Escuta: não escolhas nunca ficar na areia…


O Francisco Alegre Duarte gosta do mar. E por isso escreveu sobre uma menina e a sua onda. Não sabia que as ondas tinham nomes, mas por que diabo não haveriam de ter? Cada um talvez encontre a sua. E aprenda que elas não morrem na areia. Só vêm descansar um pouco para continuarem no…


No princípio era o mar e o mar fala connosco. Não é tão livre como dizem porque está preso em correntes, como escreveu Vinicius de Moraes. Mas vai e vem, e com ele o ritmo do tempo e da escrita. “As ondas foram entrando, cada vez maiores, e de repente Safi apercebeu-se de que estava só. Os outros surfistas ou tinham arrancado nas ondas precedentes ou tinham sido apanhados e enrolados pelas irmãs de Kyma”. O mar é uma escolha. Como as ondas. Podes mergulhar nelas ou, simplesmente, ficar na areia. Não quer dizer que ficar na areia seja uma questão de medo. Não, não é isso. É simplesmente querer ou não querer. Ficar na areia é, quanto muito, desistir da luta. Mergulhar na onda é, de certa forma, combater o mar.

O Francisco gosta das ondas. Por isso escreve sobre elas. É como se fosse um meu irmão mais novo, ou um sobrinho. As raízes dele misturam-se com as minhas. E isso, volta e meia faz doer. O mar pode fazer doer, mas é sem intenção. Nunca podemos dizer a uma criança que o mar é mau sob o risco de ela não voltar a fixar os olhos no azul mais azul do mundo e virar costas à nossa ideia de futuro. Em Portugal, o mar já foi o futuro antes de ser cada vez mais o passado. Por isso é importante escrever sobre o mar. E ensinar aos nossos filhos que o mar é um desígnio e não uma saudade. “Pois as ondas são filhas das tempestades. E viajam de muito longe antes de chegarem à praia”. Isso. Tal como nós viajámos de muito, muito longe para chegarmos aqui. Continuamos a viajar, aliás, onda a onda. “As ondas não costumam vir isoladas. Viajam em companhia, num comboio de energia que vai ganhando força e velocidade. Quanto maior a tempestade, mais agitado fica o mar, maiores as ondas que se formam. E lá vão elas, as ondas, filhas da tempestade”.

A tempestade é uma metáfora da existência. Tal como as ondas, as tempestades vêm e vão, vão e vêm. E podem ser sonoras, quando trazem consigo trovões, o que quer dizer que o céu está muito zangado connosco. E é preciso abusar imenso da paciência do céu para que este se zangue. Já o mar…

O mar é rabugento. Resmunga a toda a hora. Deve ser por isso que há tanta gente com medo de entrar no mar. O Francisco diz: “Havia uma praia à vista. Era uma praia grande, com areia branca, rodeada de falésias. Mar adentro, por debaixo de água, havia uma bancada de pedras e de areia, em forma de triângulo. Aqui a profundidade era muito menor. E era este o destino de Kyma e das irmãs, que agora aceleravam a uma velocidade vertiginosa”.

Nomes das ondas Eu não sabia, apesar de cada vez mais velho, que as ondas tinham nomes. Mas, que diabo, por que não hão de ter nomes? Só a Alice do Carroll era contra os nomes: “Que importância tem um nome?” Era muito bem feito que dessem o seu nome a uma onda. Uma daquelas ondas que toma balanço lá muito atrás e vem por aí fora crescendo, crescendo sempre, até se desmanchar contra a areia em forma de espuma. Uma daquelas ondas que pareciam feitas de propósito para Safi, a menina que se recusava a ficar na areia a ver a vida passar na sua frente como num disco de view-master. “Deitada na sua prancha, Safi, uma menina surfista, valente e determinada, remava ao encontro das ondas com todas as suas forças. Tinha treinado muito para este dia. Em dias bons e dias maus. Caíra muitas vezes da prancha, fora enrolada outras tantas, apanhara alguns sustos. Mas hoje estava preparada. Queria apanhar a maior onda. Deixou que os outros surfistas se precipitassem com sofreguidão para as primeiras ondas. Safi continuou a remar. Até que viu Kyma a formar-se lá atrás e soube que era a onda da sua vida”.

Eu não sabia, apesar de cada vez mais velho, que havia ondas das nossas vidas. Se calhar perdi muitas, entretanto. Agora já sei e não vou desperdiçar mais nenhuma. Sei, de saber sempre, que a onda é um encontro. Ela vem e nós vamos ter com ela. É absolutamente proibido ficar na areia a vê-la simplesmente enrolar-se! Absolutamente! O mar faz um esforço tão grande para nos dar ondas que seria de uma falta de educação quase indigna recusá-las.

As ondas são como o tempo: não as desperdiçais, amigos meus! Não lhes virem as costas. Aceitem simplesmente o seu abraço líquido e encantador que se envolve em nós daquela forma quase infinita e tão, tão bonita. “Safi por um instante pensou que não iria sair e que seria completamente engolida pela onda. Tentou não entrar em pânico, manteve os olhos e a mão da frente a apontarem para a saída. Até que, como uma bala disparada por um canhão para fora do tubo, reapareceu, e toda a gente que estava na praia gritava e aplaudia”.

Safi não era apenas amiga do mar. Conhecia a sua língua. A língua do mar é falada em ondas e só quem mergulha nas ondas sabe aquilo que, verdadeiramente, o mar nos segreda. A menina-do-mar não ficava na areia. Ia ao seu encontro. Ou seja, ia ao encontro da vida. E vivia-a até ao fim da onda que se desfazia na fronteira que separa a água da terra. “Quem disse que as ondas morrem na areia?…” Não morrem nada! Só vêm, por momentos, descansar do seu vai e vem infinito que é o som mais antigo que alguma vez um homem pôde ouvir. A areia é o recomeço. Por isso é que nunca podemos ficar na areia, à espera. Se o fizermos, o mar não nos responde em ondas. E ficaremos impossivelmente sós…