Kate Beckinsale. Quando o saber “rouba lugares”

Kate Beckinsale. Quando o saber “rouba lugares”


Recentemente, a atriz Kate Beckinsale revelou numa entrevista que o seu QI é muito acima da média. Contudo, aquilo que poderia ser considerado uma capacidade e singularidade nem sempre é visto assim. Sentir-se-ão os homens intimidados pela inteligência das mulheres? Haverá lugar para intelectuais em Hollywood?


À partida, não julgaríamos que a inteligência pudesse ser vista como uma complicação. Um provérbio português diz-nos que “o saber nunca ocupa lugar”. Mas e se a frase se invertesse? Se nos dissesse que o saber pode efetivamente “roubar-nos” lugares?

Este é o caso de Kate Beckinsale. A atriz britânica, de 48 anos, revelou que o facto de ter um Q.I. (o Quociente de Inteligência é obtido usando um cálculo simples e o resultado varia de zero a 200) anormalmente alto foi e ainda é algo que prejudica a sua carreira em Hollywood, bem como interferiu, em tempos, na sua vida sentimental, precisamente por “ser mulher”.

Foi durante uma entrevista ao The Howard Stern Show que Beckinsale contou ter um Q.I. de 152. Atualmente, de acordo com o Healthline, acredita-se que 68% da população mundial atinja uma pontuação entre 85 e 115 no Q.I. Ou seja, a atriz encontra-se muito acima dessa média.

AS CONDICIONANTES DE TER UM Q.I. ELEVADO Beckinsale, que se licenciou em Literatura em Oxford, garantiu ao carismático jornalista Howard Stern que ele não gostaria de ter um QI tão alto… “Todos os médicos e todas as pessoas que conheci disseram-me: ‘Serias muito mais feliz se fosses 30% menos inteligente’. E, na verdade, isso não tem sido bom para mim. Não ajudou em nada a minha carreira. Para ser sincera, acredito que até me possa ter prejudicado”, revelou a artista.

Antes de se dedicar à representação, Beckinsale estudou literatura francesa e russa em Oxford. Após os estudos, em 1990, resolveu mudar-se para os Estados Unidos começando a pisar as passadeiras vermelhas e a ganhar lugar nas grandes telas do cinema. Apesar de ser um grande nome em Hollywood, com papéis em Pearl Harbor, Serendipity e Underworld, não conseguiu igualar o sucesso de algumas das suas contemporâneas.

Kate Beckinsale acabou por não detalhar como é que a elevada inteligência a prejudicou em Hollywood, mas referiu que também teve um impacto na vida sentimental. “Sempre acreditei que posso lidar com alguém caso essa pessoa seja engraçada. Então, há um determinado nível de inteligência em pessoas engraçadas que faz com que acabe por me envolver”, contou.

A POLÉMICA COM OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Deixando as declarações um pouco “em aberto”, só mais tarde é que a artista efetivamente partilhou com o público as maiores condicionantes que já sentiu devido à sua inteligência acima do normal. Até porque, para si, as notícias que se saíram a seguir, corroboram todas as suas crenças. Numa publicação de Instagram, onde partilha fotografias de títulos dos órgãos de comunicação que noticiaram as revelações feitas na entrevista a Howard Stern, Beckinsale demonstra o seu desconforto e as dúvidas que quase a impediam de dar a conhecer essa sua capacidade ao público: “Aqui está o dilema: ‘dizer a verdade? Recusar-se a responder à pergunta? Mentir? Fingir?’”, escreveu a artista. “Eu disse a verdade e alguns jornalistas foram estimulados por isso. Será que estamos realmente a atacar as mulheres por responderem com sinceridade a uma pergunta sobre a sua inteligência ou educação? Ainda estamos a exigir que as mulheres se ‘mostrem inferiores’ para não ofender?”, continuou. “Quando eu disse que tem sido uma desvantagem em Hollywood, é precisamente por ser mulher e ter uma opinião que, muitas vezes, tem de ser cuidadosamente embalada para não ser ofensiva ou, neste caso, deliberadamente distorcida para superioridade ou arrogância” explicou a atriz britânica. “É bastante claro que este ainda é o caso, já que esses jornalistas viraram o jogo para mim, fazendo parecer que eu me estava a gabar. É precisamente por isso que acho que é uma desvantagem. Como uma mulher que responde honestamente a uma pergunta sobre o meu próprio QI, tenho sido o assunto de alguns artigos que me tentam envergonhar por isso”, lamentou.

“Eu inferiorizar-me em encontros para não intimidar os homens e arrependo-me por isso / Pode parecer mau, mas 60% das mulheres fazem isso”, lê-se no título e subtítulo do artigo da revista norte-americana GraziaDaily. “Parece difícil ser assim tão quente e inteligente”, escreveu o site feminino The Cut.

SUBORDINAÇÃO FEMININA? Segundo Bruno Reis, sociólogo e professor na Universidade Autónoma de Lisboa, “a questão do género está no presente momento num processo de forte efervescência social, em parte desde que coletivos como o Me Too foram pontuando o debate público com assuntos que estavam anteriormente arredados da arena mediática”. O especialista acredita que com a soma das vozes de outros movimentos sociais, “em concreto daqueles que se encontram próximos das causas identitárias LGBT”, foi-se produzido um efeito de eco que “permeia as agendas públicas com reflexões críticas, afrontando o que dizem ser a ‘hegemonia patriarcal’”. “A actriz Kate Beckinsale aproveitou a predisposição social existente para estas temáticas, maior atenção pública e mobilização, para colocar em cima da mesa a dicotomia historicamente marcada entre os papéis dos homens e das mulheres na sociedade”, elucida Bruno Reis, ao telefone com o i. “O seu argumento principal falava de uma subordinação feminina como resultado de uma posição consentida pelas próprias mulheres, que tinham interiorizado passivamente uma subalternização ditada pelos padrões de uma cultura machista”, clarifica.

“AS MULHERES INFERIORIZAM-SE PARA NÃO INTIMIDAR” A acompanhar as fotografias dos títulos dos órgãos de comunicação, a atriz acrescentou um estudo de 2014, conduzido pela professora portuguesa Maria do Mar Pereira, do Departamento de Sociologia da Universidade de Warwick, que concluiu que as meninas “sentem necessidade de minimizar a sua inteligência para não intimidar os meninos”, depois de três meses a analisar turmas de oitavo ano, em Lisboa. Além disso, a investigadora descobriu que “muitos meninos de 14 anos adquiriram a crença de que meninas da sua idade deviam ser menos inteligentes”. “Existem pressões muito fortes na sociedade que ditam o que é um homem adequado e uma mulher adequada”, argumenta a professora. “Os jovens tentam adaptar o seu comportamento de acordo com essas pressões para se encaixarem na sociedade. Uma das pressões é que os homens jovens devem ser mais dominantes – mais espertos, mais fortes, mais altos, mais engraçados – do que as mulheres, e que estar num relacionamento com uma mulher mais inteligente vai minimizar a sua masculinidade”, escreveu Pereira. Em contrapartida, diz a especialista, “as meninas sentem que devem minimizar as suas próprias habilidades, fingindo ser menos inteligentes do que realmente são”.

Focando-se no caso de Kate Beckinsale e “sociologicamente falando”, para Bruno Reis, o mais interessante é percebemos “que mulheres com visibilidade e status, compreendendo da importância que gozam no star system, estimulam um debate que ajude a ressignificar a condição feminina nas sociedades em metamorfose”. O sociólogo concorda, por isso, com a investigadora. Contudo, acredita que “os valores dominantes das sociedades tradicionalistas, ancoradas num conjunto de pilares estruturantes, vêm sofrendo um significativo processo de mutação”. De acordo com o especialista, a organização das sociedades contemporâneas, herdeiras do advento do capitalismo (revolução francesa e industrial), foram marcadas por três aspetos muito significativos: “Um modelo de divisão social do trabalho que reproduz assimetrias de género muito vincadas nas funções desempenhadas e nas remunerações salariais recebidas; a configuração societal obedecia a uma proposta de organização familiar homogénea, assente no modelo de família nuclear heterossexual com pendor para a valorização do papel masculino, cimentado no atributo de ‘chefe de família’ e um modelo dominante regido pelo peso moral das instituições conservadoras, em concreto o das instituições religiosas e da escola, que norteavam e regulavam fortemente os valores e os comportamentos”, explicou.

Apesar desse passado, Bruno Reis acredita que “o empoderamento feminino, um pensamento crítico que muito ganhou com uma crescente escolarização das mulheres, tem reivindicado ativamente uma nova condição feminina”: “A proeminência de um discurso que aborda a necessidade de processos de socialização paritários, propondo uma consciência de género ativa, capaz de escalpelizar os mecanismos estruturantes e subtis de uma dominação masculina que precisa de ser denunciada”, sublinhou, acrescentando que a postura “assumidamente” de conflito, na sua versão mais radical, propõe o género como uma construção social. “O resultado é o implodir do binómio homem/mulher, introduzindo um relativismo de tal ordem que deslegitima a própria luta acerca da condição feminina”, conclui.