Pacheco Pereira. O elogio da curiosidade

Pacheco Pereira. O elogio da curiosidade


No livro José Pacheco Pereira: A vida contada nos papéis da memória, em diálogo com José Jorge Letria, seguimos a curiosidade, sede de conhecimento e descoberta deste homem que fez do contentamento inteletual um fim em si mesmo.


Uma aula única no Youtube, uma canção predestinada de que ninguém se lembrava já, um curso que importa seguir online, a memória da escola e do entorno social da Boticas de antanho (interpretada à luz das leituras de Camilo), as bibliotecas particulares que lhe são confiadas e o que elas revelam, o interesse pela Matemática ou o Novo Testamento, a recusa enérgica, e se necessário snob, da ignorância presumida e altiva, o gosto pelos clássicos, a preservação de tudo o que ajude a explicar um tempo. Formado em Filosofia, ex-deputado à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu, autor de várias obras sobre História, Sociologia e Política, conferencista, voz forte em rádio, televisão e jornais, autor de um dos mais marcantes blogues portugueses, o Abrupto, José Pacheco Pereira deixa, como um dos seus legados, ao longo de décadas de presença habitual no nosso espaço público, uma exortação à curiosidade, ao interesse detido sobre as coisas, ao contentamento intelectual como fim em si mesmo. 

Enquanto ia do Parlamento Europeu até ao restaurante, em Bruxelas, Vasco Graça Moura escrevia três poemas, em três línguas diferentes, para impressionar as senhoras (convivas). “«Eu faço de conta de que sou como o secretário do Goethe, vou atrás de si e tomo nota». E fiz isso, tenho muitos poemas inéditos dele, em várias línguas, que ele ia fazendo” (p.62), conta o (muito) amigo Pacheco Pereira que, com o grande poeta e tradutor, se dirigia às melhores livrarias e alfarrabistas de Estrasburgo e Bruxelas, a intimidade das palavras e dos silêncios contemplava-os, cada um a seu canto do retiro literário, à saída, quantas vezes, curiosidade sobre a respetiva seleção, os mesmíssimos livros adquiridos (sem prévia combinação).

Depois de, in loco, assistir aos últimos dias da União Soviética, após ver, no terreno, o último dia da Bulgária, José Pacheco Pereira acabaria por ser das primeiras pessoas a deparar-se com o local onde Ceausescu tinha sido fuzilado – “ainda havia sangue no chão, havia balas por toda a parede”, p.97 -, contando, de resto, o que observara ao The New York Times. 

Descendente de uma família aristocrata, na qual, até à geração de seu pai, ninguém trabalhara – vivendo, antes, dos rendimentos -, José Pacheco Pereira, ainda infante, a quando da visita à “parentela” – que, segundo o progenitor do historiador, se devia “visitar”, mas não “frequentar” -, nomeadamente em Ponte de Lima, era tratado por “Senhor D. José” (p.32). Pacheco Pereira que, durante um ano, usará o anel com brasão oferecido pelo avô (que, homem de outros tempos, usava relógio de bolso e monóculo), como de tradição de linhagem, no então quinto ano (de liceu), pertence à “família com maior número de pessoas em Os Lusíadas depois da família real (p.27). 

Fortemente tributário de Eugénio de Andrade quanto à educação literária recebida – todas as semanas o escritor entregava a José Pacheco Pereira um livro para ler, já por si devidamente sublinhado e anotado -, o ex-eurodeputado regista quanto o poeta conhecia os autores italianos e franceses, sublinha o seu autodidatismo, a má língua em tertúlias de intelectuais em que Eugénio participava (e nas quais, este chamava a Torga “o poeta parolo”, p.50), as dificuldades materiais por que o homem, José Fontinha de seu nome civil, Inspetor da Segurança Social, passava, bem como uma condição homossexual não isenta de (concretizados) riscos no Portugal de há cerca de meio século: “Vi-o, algumas vezes, a chegar a casa magoado, com os óculos partidos” (p.50).

Com milhares de livros em casa, na hoje celebrizada Marmeleira (Rio Maior), “ponto de partida para uma excecional experiência arquivística” na constatação de José Jorge Letria, a Ephemera, sediada, por sua vez, no Barreiro, Pacheco Pereira conta, entre muitas singularidades, naquele arquivo único, com “um bastão para a pancada, que me foi oferecido pelo Mário Machado” (p.115), várias “coisas nazis dos anos 30, temos o catálogo, por exemplo, da exposição de arte degenerada” ou, ainda, referências à troika nas ementas (que ali estão guardadas para memória futura) é filho de um trabalhador dos Correios que concluiu o curso de Histórico-Filosóficas (enquanto trabalhador-estudante), conhecido pelos alfarrabistas do Porto pela impressionante lista de livros que trazia de memória na demanda periódica que entre aqueles realizava, e de uma mãe convencida a deixar, bem cedo, o petiz, portuense até à medula, viver na cave da casa, que era parte da biblioteca, mesmo que a golpes de exortação berrada para o sono se cumprir: “Ó Zé Álvaro, vai dormir” (p.102). 

Depois do mutismo e das deliberadas dificuldades levantadas ao biógrafo de Álvaro Cunhal – quer pelo próprio biografado, quer pelo PCP -, José Pacheco Pereira saboreia, hoje, o reconhecimento de uma obra “rigorosa” e de “qualidade” – observações, estas, que recolheu, acerca dos volumes publicados da biografia de Cunhal, vindas daqueles quadrantes que antes o haviam “boicotado”. 

Assim, à guisa de “Instantâneos” – glosando, desta sorte, título de breves apontamentos, pequenas histórias que Claudio Magris deu à estampa, durante anos, no Corriere della Sera (e, entretanto, título homónimo de livro, do mesmo autor, com recolha de tais escritos, com edição portuguesa também); Magris, admirado intelectual europeu e uma das companhias literárias que Vasco Graça Moura escolheria, como que arrebatando o lugar de Steiner por, no dizer do poeta português, conseguir dizer tanto, como o grande Professor e crítico literário, mas com economia de palavras -, ficam, acima, seis breves retratos ou flashes, a partir do diálogo “José Pacheco Pereira: A vida contada nos papéis da memória”(2021) promovido por José Jorge Letria (prosseguindo a coleção “O fio da memória”, na Guerra e Paz, com destacadas personalidades da vida pública portuguesa), de um percurso de um homem cuja curiosidade (“o principal motivo é a curiosidade, eu sou uma pessoa curiosa”, p.98), sede de conhecimento e descoberta, foi contribuindo para abrir espaços a um fascínio e sedução pelo contentamento inteletual como fim em si mesmo (numa das suas mais conhecidas expressões, “dinamite cerebral”), no nosso espaço público. Coisa para poucos, influência que atravessará, transversalmente, diferentes setores sociais e políticos e que, porventura, transcenderá os momentos em que, em épocas distintas, tais setores se reviram, ou repudiaram as asserções políticas de Pacheco Pereira. Entre estas, nas décadas mais recentes, contam-se desde as posições que expressou sobre a guerra do Iraque e pronunciamentos liberais na economia e funções do Estado, e não apenas um liberalismo sustentado no plano político – que mantém até aos nossos dias -, nos primeiros anos do século XXI, até à empenhada defesa do legado social-democrata, em especial na proteção dos segmentos populacionais mais desfavorecidos, com forte ressonância na última década, já para não nos referirmos aos tempos de militância maoísta que nunca procurou esconder, mas de que muitos menos estarão, ainda, lembrados, uma faceta conhecida apenas em traços breves e averbada como pertencendo a um tempo já datado.

José Pacheco Pereira, “um dos mais influentes formadores de opinião da vida portuguesa”, foi “feito pelo Porto” onde nasceu em 1949 – “sou completamente portuense (…) o Porto é, para mim, uma cidade fundamental. Em qualquer sítio do mundo, eu sou portuense. O Porto é, para mim, muito diferente do resto das cidades portuguesas (…) Thomas Mann sentir-se-ia bem no Porto, é uma cidade escura, dura, granítica, muito avessa a autoridades e muito senhora dos seus direitos. Não sendo uma cidade libertária, é genuinamente uma cidade liberal. Aliás, a República, no Porto, não precisou de ser proclamada pelo telégrafo. Mesmo a composição social das forças progressistas no Porto incluiu, praticamente até ao 25 de Abril, setores que noutros sítios não o eram, como, por exemplo, setores da indústria, setores do comércio, que tinham instituições próprias e que eram genuinamente liberais. Liberais no sentido do Alexandre Herculano, do Almeida Garrett, liberais no sentido político (…). Fui muito feito pelo Porto (…) Conheci o Porto do São João, que é a festa mais democrática que há em Portugal e, até em bom rigor, quase na Europa. E conhecia as casas por dentro e por fora (…) O Porto é uma cidade com muitas associações mutualistas, com muitas cooperativas, com muitas associações operárias, republicana, mas também fortemente burguesa e liberal. Por exemplo, uma instituição como o Ateneu, que era uma instituição de comerciantes, sempre foi da oposição. O Clube Fenianos (…) era da oposição. Havia, evidentemente, fascistas, legionários e pides, mas nunca houve, no Porto, um significativo movimento de ligação ao Estado Novo (…) O que eu aprendi no Porto foi mais este espírito de liberdade e um certo espírito de individualismo”, pp.22-26 -, mas também “pelo 25 de Abril” – nas suas memórias, e entre várias outras peripécias, a chamada ao reitor no Liceu Alexandre Herculano, fosse em virtude de um artigo sobre Fernando Lopes-Graça no jornal do liceu (periódico do qual foi diretor), onde elaborou, igualmente, sobre o período azul de Picasso com uma capa que não cumpria os requisitos para “as meninas” lerem, ou, ainda, no qual procedeu à redação de prosopoemas sem maiúsculas (“só muito depois é que eu percebi o que é que ele estava a querer dizer. Ele [o reitor] tinha-se formado nos anos 30, nos anos da Bauhaus na Alemanha. A Bauhaus, uma das coisas que fazia, quando os nazis protestavam, era não usar maiúsculas”, pp.40-41) -, “pelos amigos” – Alexandre Oliveira, Diana Andringa, João Bernardo, Amadeu Lopes Sabino (estes, sublinhados, nomeadamente, pela partilha ao tempo do Maio de 68), João Bonifácio Serra, Cáceres Monteiro, Antonieta Coelho.

Fez ainda trabalhos com Jorge Lima Barreto e Natália Correia (p.46). E, como já se destacou, Eugénio de Andrade “tem um grande papel” na “formação” de Pacheco Pereira – passando o então jovem portuense a conviver muito com o poeta, mas também com a pintora Rosa Ramos e José Rodrigues. Na “educação literária”, Eugénio de Andrade era, para o homem que se licenciara em Filosofia, um autêntico ‘privilégio’ (p.47), aconselhando e tornando Pacheco seguidor dos seus entusiasmos (apenas um arrufo, entre ambos, a quando do ingresso de Pacheco Pereira no PSD, algo logo superado pelo muito que tinham em comum). 

Apesar de ser, nas suas próprias palavras, “um bruto afetivo” (p.59), José Pacheco Pereira confessa como lhe “custou a morte do Vasco” (p.59): com Graça Moura, travara uma amizade que “suportava coisas que muitas vezes as amizades não” alcançam conter, frequentava, com o amigo, assiduamente, restaurantes, gostavam de comer, de ver as coisas, de conversar imenso, de irem às livrarias, de ficarem em silêncio sem incómodo para nenhum deles. Vasco Graça Moura, “machista até ao limite, embora gostasse muito de senhoras” (p.61), precisava que alguém mandasse nele – Pacheco Pereira, mesmo quando gosta, e se percebe que gosta muito, nunca é de hagiografias -, podia conhecer grandes problemas em certas traduções (que, aliás, não concluiria, como algumas de Ovídio). Ora, Pacheco Pereira, em casa do qual Vasco Graça Moura sempre passava de ano, sabe cada verso, de cada obra, de cada autor que torturava o grande tradutor (um homem que suscitou amores e ódios na sociedade, mormente na universidade, portuguesa, realça o antigo Vice-Presidente do Instituto Luso-Árabe para a Cooperação).

A “memória” – hoje gravada no arquivo Ephemera, que conta com 400 sócios e não mais de 2000 euros de gastos mensais; Pacheco Pereira pugna, há anos, por mudança legislativa que permita transformar a Ephemera em Fundação para preservar e salvaguardar todo o precioso património acumulado, mas “memória”, de igual forma, muito presente na sua dedicação particular aos volumes que compõem a biografia de Álvaro Cunhal – e a “curiosidade” – quando vai recrutar militância à tipografia Carvalhido apercebe-se que o barulho, naquele local de trabalho, era tal que a tipografia contratava surdos (p.96); insere-se no meio fabril no vale do Ave, em Riba d’Ave, e percebe as conversas e os caminhos de muitas daquelas mulheres que faziam todos os turnos e, ao fim de semana, ainda trabalhavam como cabeleireiras para ganharem mais algum dinheiro – são os demais fatores que, como o próprio se retrata, “explicam” José Pacheco Pereira (e que o levaram, no tempo da troika, a perceber que aquelas mulheres do Ave, entre outras que participariam da sua condição, ficariam não apenas sem emprego, mas que se iriam descuidar no trato próprio, na (impossibilidade da) ida ao cabeleireiro, na sua autoestima).