Não nascemos para estar sozinhos. Tudo nesta vida se conjuga para nos rodearmos de pessoas nas mais variadas circunstâncias e desde o momento em que exalamos o primeiro suspiro até ao momento em que não respiramos mais.
Não há nada mais sagrado do que a vida, em todas as suas formas, e com tanto mistério. O mistério da vida vai-nos sendo revelado à medida que os anos vão passando por nós, sendo certo que nunca o compreenderemos na sua plenitude. É no outro que encontramos as respostas para as nossas dúvidas, é nos mais velhos que vislumbramos parte do nosso epílogo e é com a ajuda de todos os que nos rodeiam que caminhamos rumo a um fim que teimamos em fintar e empurrar o mais que pudermos para um “sine die”.
Assim como nascemos, assim gostaríamos de morrer: no centro dos que nos querem, desejados pelo que fomos e pelo que soubemos ser, amados até no leito da morte quando já não somos mais do que pele e osso e uma assombração do que fomos em vida.
É na morte que o milagre da vida mais se revela. Não na nossa, mas na dos outros. Na morte dos que nos vão abandonando e reduzindo a presença dos que fazem parte de nós. Seguindo a ordem natural, começamos por perder os avós, depois os pais, os amigos, os irmãos…. Lembro-me perfeitamente dos dias em que perdi as minhas avós, duas mulheres que ainda hoje fazem parte de mim e que me acompanham. A primeira a partir, deixou-me quando tinha apenas 15 anos e recordo na pele o sofrimento da sua partida. Precisava de a ter comigo muitos mais anos e fez-me muita falta nos anos que se seguiram. A segunda avó partiu quando eu fui mãe de primeira viagem. Nasceu o meu primeiro filho e, meses depois, perdi a segunda mãe. Foram tempos difíceis de digerir entre a alegria de ter o meu primeiro filho no colo e o sofrimento causado pela ausência de quem velava por mim.
Mas os filhos têm a força de nos focarem neles e, lentamente, vão ocupando os espaços vazios que vão ficando.
Não deixo de pensar que há um momento no nosso percurso em que temos um superavit familiar temporário, que não se recupera nunca mais, uma vez que se comecem a sofrer perdas. A ideia de nascermos na base de uma pirâmide e de irmos ascendendo ao topo dela, reflete bem a quantidade de pessoas de quem nos despedimos e que levam uma parte de nós.
Vamos ficando mais sós, o nosso olhar oscila entre o céu e a terra, as dores de perder quem nos ama são sofridas num silêncio solitário e entramos na fila de espera para o epílogo da nossa história. A longa espera assemelha-se a uma das idas às urgências de um hospital, em que nos é atribuído um número mas, de acordo com a triagem de Manchester, tanto podemos ser os próximos, como um caso mais crítico nos pode passar à frente. A partir de uma certa idade, já não há grande previsibilidade sobre quem parte e quem fica; à nossa volta, as despedidas começam a sobrepor-se aos casamentos e aos batizados, e os sustos de outros provocam ansiedade nos nossos e até em nós próprios.
Há que admirar a capacidade do Criador em ter arquitetado toda esta passagem sem descurar nenhum pormenor. A dádiva que nos é oferecida de, a meio deste caminho, termos um vislumbre de como poderá ser o nosso fim, é mais uma oportunidade de nos questionarmos e prepararmos para o inevitável. Esta consciencialização é incontornável, a menos que se a queira ignorar propositadamente.
Mesmo na hora da partida, os que nos deixam falam-nos sobre o amor, sobre a esperança, sobre o perdão, e transmitem a sua responsabilidade e propósito, a quem estiver disposto a acolher o compromisso. Há um legado espiritual nesta passagem, que eterniza a presença dos que já não estão entre nós.
Escreve quinzenalmente