Fronteiras: quem as tem chama-lhes suas


A escolha de um critério para traçar as fronteiras marítimas aguça o apetite e a imaginação dos Estados e pode ser facilmente funcionalizada pelos respectivos interesses


Ao contrário do que se passa com as fronteiras terrestres, a maioria das fronteiras marítimas entre Estados confinantes estão por delimitar. Tal acontece por três ordens de razões. Em primeiro lugar, o conceito de Zona Económica Exclusiva (e as 200 milhas marítimas que lhe correspondem) é relativamente recente, surgindo na prática dos Estados a partir de 1945 e na Convenção de Montego Bay em 1982. Em segundo lugar, a exploração da Plataforma Continental, espaço marítimo correspondente, na maior parte dos casos, às mesmas 200 milhas mas agora no segmento do leito e subsolo, está ainda muito limitada pela lentidão dos progressos tecnológicos. A última das razões é a mais relevante, a delimitação de fronteiras marítimas entre Estados confinantes pode revelar-se técnica, jurídica e politicamente desafiadora. Serve de exemplo a ausência de delimitação da ZEE e da plataforma continental entre Portugal, Espanha e Marrocos, o que não os impede de reclamarem estes espaços marítimos em direcção ao alto mar nas zonas não potencialmente sobrepostas.

A escolha de um critério para traçar as fronteiras marítimas aguça o apetite e a imaginação dos Estados e pode ser facilmente funcionalizada pelos  respectivos interesses. No passado usou-se com frequência a linha mediana entre costas, pouco atenta ao sentido, extensão e inclinação de cada costa. Desde os anos 70 do século passado a preferência fixou-se na linha equidistante que permite uma maior justiça na delimitação, ao aderir a um critério de proporcionalidade entre a dimensão da costa e a extensão marítima adjacente. O recurso a critérios de delimitação materialmente justos não impede os Estados de tentarem “engordar” o respectivo caderno reivindicativo escolhendo um ponto na fronteira terrestre que lhes é mais favorável como ponto inicial do traçar da fronteira terrestre. As consequências desta escolha são facilmente compreensíveis se pensarmos que por cada grau ou minuto do ângulo inicial da fronteira terrestre aumenta a superfície em direcção ao alto mar.  

A simplicidade do critério de delimitação também tem valor negocial. Quando as fronteiras terrestres foram delimitadas a régua e compasso e correspondem a linhas rectas de latitude e/ou de longitude (como acontece na América do Norte e em África) é tentador prolongá-las em direcção ao mar.

Nesta terça-feira o Tribunal Internacional de Justiça decidiu o litígio entre a Somália e o Quénia relativo à respectiva fronteira marítima.  A Somália recorreu ao TIJ em 2014 e conseguiu, volvidos 7 anos, obter ganho de causa, vendo reconhecida a fronteira marítima com base na linha da equidistância corrigida. O Quénia, pelo contrário, viu recusada a reivindicação do prolongamento de uma linha recta de latitude a partir do ponto mais a norte da sua costa (cf. a cartografia fornecida pelo ICJ).

Logo no dia 12 as mais altas autoridades quenianas anunciaram que não iriam acatar a decisão do TIJ. De acordo com o artigo 94º da Carta da ONU a Somália poderá recorrer ao Conselho de Segurança para conseguir que tome uma decisão sobre o caso. Considerando os mecanismos de veto ao dispor dos membros permanentes do CS e a prática de um deles em matéria de (in)cumprimento das decisões do TIJ não é provável que o Conselho venha a tomar uma decisão sobre a recentemente delimitada fronteira marítima entre o Quénia e a Somália. Que sais-je?

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Fronteiras: quem as tem chama-lhes suas


A escolha de um critério para traçar as fronteiras marítimas aguça o apetite e a imaginação dos Estados e pode ser facilmente funcionalizada pelos respectivos interesses


Ao contrário do que se passa com as fronteiras terrestres, a maioria das fronteiras marítimas entre Estados confinantes estão por delimitar. Tal acontece por três ordens de razões. Em primeiro lugar, o conceito de Zona Económica Exclusiva (e as 200 milhas marítimas que lhe correspondem) é relativamente recente, surgindo na prática dos Estados a partir de 1945 e na Convenção de Montego Bay em 1982. Em segundo lugar, a exploração da Plataforma Continental, espaço marítimo correspondente, na maior parte dos casos, às mesmas 200 milhas mas agora no segmento do leito e subsolo, está ainda muito limitada pela lentidão dos progressos tecnológicos. A última das razões é a mais relevante, a delimitação de fronteiras marítimas entre Estados confinantes pode revelar-se técnica, jurídica e politicamente desafiadora. Serve de exemplo a ausência de delimitação da ZEE e da plataforma continental entre Portugal, Espanha e Marrocos, o que não os impede de reclamarem estes espaços marítimos em direcção ao alto mar nas zonas não potencialmente sobrepostas.

A escolha de um critério para traçar as fronteiras marítimas aguça o apetite e a imaginação dos Estados e pode ser facilmente funcionalizada pelos  respectivos interesses. No passado usou-se com frequência a linha mediana entre costas, pouco atenta ao sentido, extensão e inclinação de cada costa. Desde os anos 70 do século passado a preferência fixou-se na linha equidistante que permite uma maior justiça na delimitação, ao aderir a um critério de proporcionalidade entre a dimensão da costa e a extensão marítima adjacente. O recurso a critérios de delimitação materialmente justos não impede os Estados de tentarem “engordar” o respectivo caderno reivindicativo escolhendo um ponto na fronteira terrestre que lhes é mais favorável como ponto inicial do traçar da fronteira terrestre. As consequências desta escolha são facilmente compreensíveis se pensarmos que por cada grau ou minuto do ângulo inicial da fronteira terrestre aumenta a superfície em direcção ao alto mar.  

A simplicidade do critério de delimitação também tem valor negocial. Quando as fronteiras terrestres foram delimitadas a régua e compasso e correspondem a linhas rectas de latitude e/ou de longitude (como acontece na América do Norte e em África) é tentador prolongá-las em direcção ao mar.

Nesta terça-feira o Tribunal Internacional de Justiça decidiu o litígio entre a Somália e o Quénia relativo à respectiva fronteira marítima.  A Somália recorreu ao TIJ em 2014 e conseguiu, volvidos 7 anos, obter ganho de causa, vendo reconhecida a fronteira marítima com base na linha da equidistância corrigida. O Quénia, pelo contrário, viu recusada a reivindicação do prolongamento de uma linha recta de latitude a partir do ponto mais a norte da sua costa (cf. a cartografia fornecida pelo ICJ).

Logo no dia 12 as mais altas autoridades quenianas anunciaram que não iriam acatar a decisão do TIJ. De acordo com o artigo 94º da Carta da ONU a Somália poderá recorrer ao Conselho de Segurança para conseguir que tome uma decisão sobre o caso. Considerando os mecanismos de veto ao dispor dos membros permanentes do CS e a prática de um deles em matéria de (in)cumprimento das decisões do TIJ não é provável que o Conselho venha a tomar uma decisão sobre a recentemente delimitada fronteira marítima entre o Quénia e a Somália. Que sais-je?

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990