Gonçalo Leandro. Esses homens tão valentes dos carrinhos-de-choque…

Gonçalo Leandro. Esses homens tão valentes dos carrinhos-de-choque…


Não faço cedências ao ritmo. Nem à prosódia. Fui à procura deles em O Senhor da Camisola Amarela. “Escrever é tirar os pés do chão”, diz o Gonçalo, voando já.


Provavelmente é verdade: os homens dos carrinhos de choque são os mais valentes de um planeta, qualquer que ele seja, desde que tenha carrinhos de choque. No planeta de Gonçalo Leandro há carrinhos de choque; e um mês de Junho sem travessias de rio nem caravelas de rolha. Há, na forma da escrita, uma espécie de preguiça. Mas uma preguiça boa, virtuosa. A preguiça de olhar para as coisas e ficar contente por elas lá estarem e, se o mundo depender disso, talvez Adão não acorde mesmo logo depois de Deus o criar.

Depois a preguiça fica com pressa e ocupa as páginas. Em duas páginas apenas fui de Junho ao Natal. Depois um apagão na sala. E eu já dentro do livro, abrindo a luz aqui e ali, na vontade de lê-lo até ao fim. Confesso: nunca deixo livros a meio. Houve dois ou três que deitei fora logo na primeira página.

Num deles o autor estava tão bêbado que se sentou numa praia de Goa a ver o Cruzeiro do Sul. Como só uma besta com 128 patas julga que nos engana vendo o Cruzeiro do Sul mais de 1700 quilómetros a norte da Linha do Equador, peguei no livro e deitei-o para o lixo. Não faço cedências à Geografia. Nem à Geografia dos Afectos.

“Se me dessem a eternidade e a eterna magia da infância, acredito que me deixaria reinventar e encantar a cada descida a pé à praia, a cada fogueira que saltasse ou carrinho de choque em que andasse, e, sem dúvida, também em cada primeira quinzena de setembro que tivesse pela frente até que a eternidade, também ela própria, tivesse de ser reinventada”. Também não faço cedências à Geografia da Infância. E o Gonçalo é da Infância como se de um país. Como Saint-Exupéry.

A escrita exige esforço, se quer ser boa. E exige sensibilidade, se quer ser companheira. Não há melhor companhia do que um livro. E dentro do livro estão as pessoas que se sentam ao nosso lado e nos falam dos momentos que também existiram na vida de quem os lê, apenas de outra forma, noutros lugares. A escrita precisa de ter ritmo, se quer embalar-nos. Não faço cedências à prosódia.

Como as mulheres “Quando era adolescente vi um grande amigo sofrer muito quando foi deixado pela namorada, trocado por outro. Aquela dor não o largava, e o meu carinho por ele era tal que aquele sofrimento se entranhou em mim e, durante anos, vi o mundo e as relações pelos olhos dele. Ligava-me, envolvia-me, mas tinha medo de ser abandonado, e porque tinha medo tentava garantir segurança com novas conquistas, mantendo-me num ciclo vicioso”.

Os livros são como as mulheres: trocam-nos por outros. Mas nós também somos, para os livros, como a namorada do amigo do Gonçalo: trocamo-los uns pelos outros. Depois ou esquecemo-nos ou não. Depende do amor, não é? Se o livro for mau, é como um amor que não valeu a pena: o melhor é não lembrar.

Gosto de contos. Os contos contam. Gosto que me contem coisas e que elas me despertem outras coisas, vividas e por viver. Os contos, às vezes, também assustam. “Ficas sempre assim quando perdes alguma coisa na vida?”, perguntou a rapariga. Eu fico assim quando a vida perde alguma coisa de mim. Somos ambos gémeos, afinal.

O livro do Gonçalo tem um mistério. Um mistério que vai ficando mais profundo. Ou melhor: tem vários mistérios. Cada um que o ler que escolha o seu. Temos direito a isso. É ele que nos dá esse direito enquanto escreve. Eu escolhi o meu, mas não vou dizer qual foi.

O livro do Gonçalo também tem segredos, e eu fico com o meu segredo. Não vale a pena insistirem que não o desvendo. Procurem o vosso. Ele está lá. Leiam-no, portanto. É sempre agradável ler um segredo. Ainda por cima um segredo novo, um que ainda não sabíamos ser segredo e, afinal, era.

Tenho uma família cheia de gente com olhos azul-turquesa pelo que também gosto de personagens com olhos azul-turquesa. Ainda por cima também com segredos e mistérios, talvez também eles azul-turquesa como os olhos da rapariga que espreita da varanda para o vale. Sabem o que acontece com as pessoas que têm olhos azul-turquesa? Olham para nós e, de repente, o mundo inteiro fica azul. É tão bonito um mundo azul.

Nasci criança com uma vontade grande, grande de ficar sempre criança. Depois a vida fez de mim um adulto e eu sinto que a vida não tinha o direito de ter feito isso comigo.

Quando abri a primeira página de O Senhor da Camisola Amarela, também me deu vontade de perguntar: “Em primeiro lugar, quem és tu?” Quando o Gonçalo me fez chegar o livro e me disse para lê-lo, eu avisei-o que só escrevo sobre livros de que gosto.

“Escrever é saber tirar os pés do chão”, diz ele, voando já. Escrever é tudo, ao fim ao cabo, digo eu pensando na palavra escrita. Ah! E o ritmo, não se esqueçam do ritmo. O ritmo é como as ondas das páginas. É o ritmo que faz prosseguir o barquinho em que vogamos no mar das letras absolutas, manchas negras riscando o papel em branco. Goa, para mim, sem Cruzeiro do Sul, claro, é o lugar onde Adão pode, de vez em quando, regressar ao Paraíso, se lhe der na gana.

Mas para isso precisa de acordar depois de Deus o ter criado. Eu não acredito em Deus, mas acredito em Adão. E no Paraíso. E no sonho. E acredito nas ruas de Neom onde eu não sabia que se escreviam livros. Daqueles livros que se lêem até ao fim e deixam ficar um vazio que só se preenche com um recomeço.