ESFARELAMENTO
Somos todos uma ilha. E salva-nos
a erosão do vento e das ondas.
O voo raso das palavras, como domesticados pássaros,
o adejo de carícias e beijos.
Somos rochedo duro. O espírito
é arrogante, como um falcão selvagem.
Mas, devagar, o corpo esfarela-se
nas mãos desamparadas do amigo,
que nos derrubam com o toque da ternura.
Jordi Pàmias (1939), “Esfarelamento”, in Àlex Tarradellas, Rita Custódio e Sion Serra Lopes (org.), “Resistir ao tempo. Antologia de poesia catalã”, Assírio e Alvim, 2021, p.447.
Se John Donne (1572-1631), em uma das “entradas” das suas “Meditações”, assevera, em célebre fórmula, que “nenhum homem é uma ilha”, o sujeito poético de “Esfarelamento”, parece, claramente, entrar em diálogo com esta perspectiva para, pelo menos aparentemente, a negar de modo perentório – “somos todos uma ilha”.
Se Donne nos lê (essencialmente) gregários, na conhecida “meditação” e, assim, acrescente que a cada desaparecimento de um Homem os “sinos”, em rigor, “dobram” por “mim” (por cada demais humano), o poema, aqui evocado, de Jordi Pàmias parte de uma premissa oposta, a do humano encerrado em si mesmo (a ilha; ou, em outra imagem, “somos rochedo duro”; não, portanto, nesta concepção antropológica, uma “natural” propensão a sair para os outros).
Apenas o desgaste do devir (“a erosão do vento e das ondas”), a impotência das palavras (“o voo raso das palavras”), a abertura que “carícias e beijos” convocam nos levam, remetem ao outro. A um fechamento essencial, a um encerramento grave e sério, a um ensimesmamento altivo, sucede a entrega inapelável, indeclinável, para lá, mesmo e porventura, da vontade ao outro (e, neste outro, a especial figura do “amigo”), cujo “toque da ternura” derrubou (“que nos derrubam”) todos os muros daquele fechamento essencial/natural (havido em nós).
Em um poema no qual se sugere um jogo antinómico em torno de um dualismo antropológico – “espírito arrogante”, um “corpo” que se “esfarela” (portanto, espírito duro, corpo débil/frágil – é o Homem todo, afinal, que sucumbe “ao toque” – a importância do toque, da dimensão sensível – “de ternura” que nos é dado pelas “mãos desamparadas do amigo”. Esse toque, as “carícias e os beijos”, quando o desgaste da viagem e a incapacidade das palavras dizerem o indizível operam, ademais, em nós, com intensidade bastante, “salvam-nos”.
Se, ao fim e ao cabo, a ternura do amigo se torna absolutamente irresistível, não se negará a afirmação/mote inicial do poema (“somos todos uma ilha”)? Ou, pelo menos, se a infirmação daquela provocação primeira não se afigure completa, sempre se dirá que somos uma ilha…a tender para o mar (mas não indiferenciado) em que abraçamos o outro (concreto, singular, irrepetível).
Do mesmo modo que, regressando, em paralelo, à “meditação” de Donne, talvez possamos notar, naquela, que (o mote) “nenhum homem é uma ilha” surge (quase) como que uma advertência – mais do que uma segura e tranquila constatação.
De tal modo que o sujeito poético faz questão de esclarecer e sublinhar – portanto, tomando não como um dado adquirido, mas como algo que é urgente recordar – que quando morre um Homem, os sinos dobram por ti (por cada humano). Uma vocação para o outro – para a ternura do amigo, em especial, que nos recebe de “mãos desamparadas” naquele “trânsito de gratuitos sem porquê” – que salva, mas que pode, nem sempre, ser sabedoria com a qual o humano parta ou a que aceda imediatamente; dom, em qualquer caso, que o levará ao tapete (do amor).