Glória Novais. “Se tiver que morrer por isto, que morra, mas isto tem de mudar”

Glória Novais. “Se tiver que morrer por isto, que morra, mas isto tem de mudar”


Aos 59 anos, a licenciada em Gestão e quase mestre em Gestão Financeira assegura que é vítima de assédio moral e laboral há quase 16 anos. Por sentir que a sua voz não tem sido ouvida, está em greve de fome desde quinta-feira, prometendo passar por vários pontos da cidade de Lisboa. 


Glória Novais entrou pela primeira vez como funcionária na Junta de Freguesia de Benfica, em Lisboa, há 33 anos. Corria o ano de 1988 e, aos 26 anos, pensava que esta seria uma boa oportunidade. No entanto, tudo mudou em 2005, com o início do mandato de Domingos Alves Pires, e a assistente técnica recorreu pela primeira vez aos órgãos de informação para que a sua voz fosse ouvida.

“Na véspera de entrar, já se ouvia nos corredores que a minha cabeça era uma das primeiras a voar porque eu estava num bom cargo, era assessora da Cultura”, começa por explicar a mulher, hoje com 59 anos, em declarações ao i. “Esse presidente veio a demonstrar-se bastante racista porque dizia de boca cheia: ‘Não quero cá os pretos’, ‘As pretas montava-as eu em Angola’, ‘Os pretos tiram o trabalho aos portugueses’ e chamava-me ‘preta’”, continua, acrescentando que foi impedida de falar em crioulo com a irmã que, à época, era sua colega de trabalho.

“Trabalhávamos juntas e, sendo cabo-verdianas, era natural que conversássemos em crioulo. Fomos literalmente proibidas. Um colega meu ouviu, falou com a comunicação social e foi imediatamente ameaçado. Teve medo de represálias e calou-se”, constata, declarando que algumas pessoas lhe disseram que não existia racismo em Portugal e por isso seria extremamente complicado provar a discriminação de que havia sido alvo. “Uma colega minha até disse: ‘Ele não lhe chamou preta, chamou-lhe vedeta’”.

Por estes motivos, Glória denunciou o sucedido ao Jornal de Notícias e foi suspensa por um período de 30 dias “por violação do dever de correção”, na sequência de um processo disciplinar que lhe foi movido pelo presidente social-democrata, sendo que o Bloco de Esquerda (BE) da Assembleia de Freguesia de Benfica esteve do lado da funcionária “discriminada” e garantiu que a apoiaria por considerar que o presidente se havia “destacado pela sua atuação arrogante e autoritária, revelando até desprezo pela própria Lei”.

Nessa altura, Glória asseverou que tinha sido vítima de racismo e alegou que o autarca lhe chamara “preta” e “golpista” no decorrer de uma discussão relativa ao período de marcação de férias. “Devia descansar era no mês de agosto, e não quando queria”, ter-lhe-á dito o dirigente. "O senhor Domingos Alves Pires passou a chamar-me de golpista e de oportunista, alegando que não queria trabalhar como os demais colegas que faziam o trabalho a tempo inteiro. Sempre que pedia férias ao abrigo do estatuto de trabalhadora-estudante, muitas das vezes, indeferiu-o sem sequer dar justificação por escrito", atira Glória. "Como é normal as ditas férias colidiam, por vezes, com pontes, o que é normal acontecer, mas aos olhos dele, eu estava a ser oportunista, golpista. Nessa altura, de um dia para o outro, mudou-me para o atendimento ao público, obedeci e fiz o meu trabalho com zelo e dedicação".

“Considera-se vedeta e acima de todas as outras e isso acarreta sempre incómodos junto dos outros. Há funcionários que acham que só têm direitos e não têm deveres”, adiantou à agência Lusa o social-democrata, que reconheceu ter “chamado a atenção” para o uso do crioulo, em declarações a 30 de julho de 2008.

“A língua oficial, tanto para ela [Glória] como para qualquer funcionário, é o português. Por hábito, ela e a irmã resolviam falar em crioulo no espaço de serviço e eu chamei-lhe a atenção porque outras colegas se queixavam que isso as incomodava e lançava suspeições sobre aquilo que estavam a dizer. Quando uma pessoa fala com outra numa língua que as outras não percebem gera-se logo suspeição e mal estar”.

“Nunca lhe chamei ‘preta’. É mentira e foi por causa disso que teve de levar o processo disciplinar. É palavra que eu não uso, o racismo só existe na cabeça dela e da irmã”. Porém, o BE, do lado da alegada vítima, avançou que o presidente havia criado “um clima de medo”. E os problemas não terão ficado por aqui.

“Quando pedi o estatuto de trabalhadora-estudante, estive meses sem receber o vencimento porque queriam impedir-me de tirar a licenciatura em Gestão na Universidade Autónoma de Lisboa. Houve um dia em que o presidente gerou muita confusão e eu disse: ‘O senhor não pode discriminar nenhum funcionário pela etnia, pela raça, pela orientação sexual, seja o que for’”, recorda, não concordando com o facto de ter sido alvo de um processo disciplinar tendo em conta que nunca tinha sido repreendida e realizava as tarefas com brio. 

“Quando lhe disse na cara que era racista, armou-me um processo disciplinar, mas fez uma coisa totalmente ilegal: mandou afixar nos editais da freguesia, que só servem para informações como aquelas que são relativas às obras, que a reunião de Executivo tinha processado a funcionária Glória Novais. Ficou exposto para quem quisesse ver”, diz, em retrospetiva, a funcionária. “Aí tocaram na minha dignidade e fui para a porta da Junta com o carro cheio de cartazes, dando assim a minha cara para que os fregueses ficassem a saber quem tinha tido um processo disciplinar" e foi a partir de Julho de 2008 que se soube que Glória havia acusado o presidente da Junta de racismo e visto serem-lhe suspendidos três vencimentos.

“Só em 2018 é que saiu a decisão e soube que ganhei e foram-me devolvidos os vencimentos que ele cortou na época”, lamenta, explicando que pensou que o pesadelo havia terminado em 2009, quando Inês Drummond tomou posse, mas as suas expectativas não corresponderam à realidade.

“Fiquei um ano quase sem fazer nada, puseram-me na prateleira”

Em 2009, tomou posse Drummond, que trabalhara como assistente de bordo, é mestre em Economia Internacional – Desenvolvimento e Cooperação Internacional e integrou o círculo eleitoral de Lisboa do Partido Socialista (PS) na XII Legislatura.

“Quando entrou este Executivo, acarinhou-me e disse que tinha toda a razão e que devia ter processado o antigo presidente por assédio moral e perseguição racista”, recorda, esclarecendo que terminou o primeiro ciclo de estudos em 2011 e queria ingressar num mestrado. “E como achei que eram compreensivos, disse que queria ir mais além e tal foi-me negado. Aí entendi que não estavam contentes por continuar a estudar”.

Glória ainda conseguiu completar o ano curricular do mestrado com sucesso, mas não prosseguiu para a elaboração do trabalho final. “A cada dia davam-me mais tarefas. Passei a ter três ou quatro vezes mais funções. A partir daí, comecei a ver pessoas sem experiência na área da função pública a entrarem para cargos superiores ao meu. Mesmo assim não desisti e tentei ir para técnica oficial de contas”. Glória solicitou que fosse incluída na Gestão Financeira do órgão de poder local, de modo a poder exercer o ofício, conciliando assim as vertentes laboral e académica. Contudo, ficou num gabinete de Ação Social, tendo o Executivo alegado que "era um projeto dirigido aos idoso que incluía passeios culturais, viagens até à praia e ao campo e funções como o levantamento dos idosos isolados".

Assim, fez um estágio na Ordem e teve 16 valores. “Saí do gabinete de Ação Social em que estava e o Executivo ficou revoltado comigo. Quando terminou o estágio, fiquei um ano quase sem fazer nada, puseram-me na prateleira. Tinha colegas que choravam por terem tantas funções, eu oferecia-me para ajudá-las e elas diziam que tinham medo das represálias”, afirma, explicitando que estes episódios remontam a 2014. No final de março desse mesmo ano, propuseram que fosse para o mercado de Benfica.

“Perguntei se ia por mobilidade e se seria técnica superior até porque assistentes com licenciaturas tinham chegado nessa semana. A mim, disseram-me que não, que estava tudo congelado. Liguei para o Sindicato e coloquei as minhas dúvidas”. Durante essa chamada, foi-lhe explicado que a mobilidade intercarreiras – dentro do mesmo órgão ou serviço ou entre dois órgãos ou serviços – nunca esteve congelada e que se a junta de freguesia tivesse vontade política, podia contribuir para que evoluísse profissionalmente.

“Chegou um senhor num dos meus primeiros dias de trabalho, que nunca tinha trabalhado na função pública, e percebi que seria meu chefe. Rapidamente adaptei-me ao trabalho e implementei muitas coisas”, tanto que o funcionário em causa foi despedido em dezembro de 2015 e, entre janeiro e junho/julho de 2016, Glória exerceu todas as funções sem qualquer auxílio.

“Foi assim até terem contratado uma rapariga mestre em Segurança e Higiene Alimentar. Aprendi muito com ela. Foi minha chefe até 2019. Concorremos as duas ao concurso e fomos admitidas. E ela disse que eu era a única pessoa que dominava o mercado. Fizeram ouvidos moucos e mandaram um jovem chefiar-me”. A mulher garante que, mais uma vez, prestou todo o apoio aos colegas. Entretanto, foi contactada pelo Executivo, pois precisavam de uma fiscal, também para o mercado, e propuseram-lhe essa mudança. "Nessa altura, estive ausente um mês porque fui ao Brasil, com conhecimento da Junta, fazer uns implantes dentários por serem mais baratos. Aproveitaram a minha ausência e o novo chefe gestor, como eu, esteve em formação com a engenheira até o meu regresso. De referir que esse novo chefe era prestador de serviços até à entrada no quadro superior como eu, a engenheira e mais 27 candidatos. Todos tomámos posse no dia 2 de fevereiro. Logo, em 2019, só tinha um ano do quadro, enquanto eu tinha 29 anos de serviço".

“Estou a tomar medicação porque sem ela não sei se a esta hora estaria viva”

“Portanto, sou muito boa em tudo excetuando nas funções de técnica superior. Acham que sou uma nulidade. Fiquei responsável dos fiscais e começou a pandemia. Fiz tudo: fui fiscal, porteira, corrigi o plano de contingência feito por colegas mais novos e melhorei muitos aspetos”, reconhece com orgulho, adicionando que pediu para voltar às funções antigas.

“Ninguém me dizia nada e quis falar com o presidente Ricardo Marques, mas só consegui falar com a Carla Rhotes, em junho deste ano. Por uma questão de profissionalismo, trabalhei horas extra, sábados e aguentei”. Mas Glória prometeu a si mesma que esse cenário só se arrastaria até ao início do levantamento das restrições em vigor devido à pandemia. Por ter demonstrado vontade de mudar, foi encaminhada para o centro clínico.

“Eu recusei e o presidente disse que o despacho tinha sido emitido, que só faltava assinar e que eu ia recebê-lo. Como nunca tive um correio interno como os restantes funcionários, mas só o endereço geral do mercado, a Carla Rothes veio entregar-mo em mãos porque procurou pelo meu endereço interno e entendeu que não tinha um”, denuncia, expondo que recebe, a título de exemplo, os recibos de vencimento num e-mail geral do mercado e tem medo de que todos os colegas tenham acesso a informação que devia ser confidencial.

“Fui uma semana para o centro clínico e sentei-me na mesma cadeira onde estive há 33 anos. Toda a gente passava pelo centro clínico para ver onde a Glória estava sentada. Com isto tudo, fui abaixo, não dormia, sentia raiva e, a meio de junho, a minha médica de família prescreveu-me medicação e fiquei de baixa. Estou a tomar medicação porque sem ela não sei se a esta hora estaria viva e estou a fazer psicoterapia”.

Apesar de estar em casa desde o início do verão, Glória não desiste de lutar e, por isso mesmo, iniciou a greve de fome como forma de protesto. Tendo em conta as suas habilitações académicas, considera que trabalhar no atendimento ao público no Centro Clínico da Junta de Benfica não é o mais adequado. 

“O presidente diz que tenho funções de técnica superior, mas são de assistente técnica, como atendimento de doentes. Isto não acrescenta valor nenhum ao meu desempenho e desenvolvimento. Investi dinheiro, sou licenciada desde 2011 e a minha situação é esta”, confessa, admitindo que “é tudo dado aos jovens que são do partido, de determinado grupo, da Igreja da Carla Rhotes, amigos pessoais do presidente”. Agora, perante o novo despacho do presidente Ricardo Marques, a funcionária sentiu que "a dignidade outra vez violada", pois considera que não levou a cabo qualquer ato incorreto. "Nada fiz exceto ter teimado em prosseguir os estudos, e de uma forma encapotada, o atual presidente acabou por fazer o mesmo que o Domingos Alves Pires, mas por debaixo do pano, como se diz na gíria".

“E eu estou sem progressão na carreira ou subida de vencimento. Querem inovar a função pública, mas inovem com seriedade. Aquilo que se está a passar na junta de freguesia de Benfica é uma pouca vergonha”, comenta convicta, entre lágrimas, enquanto fala do marido, que passou a noite consigo à porta do órgão de poder local, na passada sexta-feira, e, por ter-se feito sentir muita geada, ficou doente e está de cama.

“Estive em greve de fome e este fim de semana só comi algo para me aguentar. A minha greve acontecerá por vários sítios de Lisboa: estarei na Assembleia da República – onde fazem leis que os próprios não cumprem –, o Ministério da República, a Procuradoria-Geral da República… O país tem de mudar”, manifesta a funcionária que realizará um percurso por variados locais representativos da política local e nacional para demonstrar o quão revoltada está.

“Se não me tivessem perseguido moral e laboralmente, acho que já estaria num doutoramento. Se estivesse noutro país da União Europeia, estaria num patamar muito superior. Sem estas injustiças, estaria perto dos 2000 euros de ordenado”, afiança, revelando que aufere 1205 euros mensalmente enquanto recém-licenciados ganham 1500-1600 euros. “Compram casas, compram carros, fazem as suas vidas e eu não consigo fazer nada disto”.

“Quero que haja justiça e mais transparência. Os cargos públicos não são apenas para os grupinhos e amiguinhos. Até em casa estou em greve. Como o suficiente de manhã e à noite para não ficar debilitada”, frisa, sustentando que a depressão de que sofre desde 2006 tem-se agravado muito nos últimos meses e não entende como é que, até hoje, não recebeu uma única palavra por parte dos dirigentes, sendo que iniciou a greve na quinta-feira.

“Até agora, ninguém me contactou ou demonstrou preocupação pelo meu estado de saúde. Se tiver que morrer por isto, que morra, mas isto tem de mudar. A função pública está a bater no fundo”, menciona a funcionária que, de acordo com declarações da Junta de Freguesia à agência Lusa, estará de baixa até 11 de outubro, data em que terá lugar uma junta médica para verificação da sua situação clínica.

“Há muitos funcionários a serem chefiados por gente incompetente. Em matéria de trabalho e de desempenho, não têm nada a dizer de mim. Devo ser boa em tudo menos para chegar mais além”, conclui, esperando que algo mude por falar com os órgãos de informação e dar a conhecer a sua história.