Esta forma de ser mulher

Esta forma de ser mulher


Os dias, as horas, o emprego, os filhos, os maridos, os amigos todo esse cortejo de um quotidiano sem espessura não é senão a emanação do seu ego, um vórtice que tudo engole.


Abomino esta nova forma de ser mulher promovida pelas estrelas e por estas "escritoras" que escrevem sobre a sua vida como se estivessem dissociadas de si mesmas e se vissem eternamente num palco, onde viver é indissociável de se re(a)presentar. De se representarem para si mesmas, como crianças ao espelho, e de se apresentarem para a multidão que elas imaginam estar, a todo o instante, a olhá-las com devoção e a vibrar com as suas mentiras convencionais com as quais elas pensam estar a comunicar a mais fiel natueza das coisas. Ahh, o naturalismo continua a ser uma vaca que dá muito leite.

Nestes livros e na vida destas mulheres, tudo passa por elas, tudo se centra nelas, no seu ego, na sua dramaturgia pobre de quem não viu e não sentiu o Sunset Boulevard, a Noite de Estreia, e ignora o triste de fim que aguarda quem só suporta a vida quando está a fazer teatro de, e, para si mesma. Como se todas elas não estivessem mais perto de serem Uma Mulher Sob Influência do que a Carrie Bradshow.

Os dias, as horas, o emprego, os filhos, os maridos, os amigos todo esse cortejo de um quotidiano sem espessura, que não é senão a emanação do seu ego, um vórtice que tudo engole.

Nada existe para além delas. E o mundo não é senão uma soma de contrariedades para a diva a caminho da noite dos óscares. E, pior, nada existe para além deste quotidiano insuportávelmente pequeno-burguês disfarçado de aridez, de "verdade", do cliché "as mulheres estão cansadas, estão exaustas, as mulheres sofrem porque têm filhos ou não têm filhos, ou têm a loiça por lavar, os homens não as amam como merecem, os professores são incompetentes, há as filas no trânsito e no supermercado, a casa para limpar… essas indignidades. E, como se nao bastasse toda a " terrivel pressão social que sofrem", ainda há essas horriveis mulheres que se atrevem a cultivar frivolidades como fazer a depilação nas axilas e usar desodorizante. E nós? E nós? E a nossa tragicomédia quotidiana de ter de fazer o jantar quando deveriamos estar a escrever aquela obra prima para a qual estamos destinadas? Oh já Bovary não sabia se havia de se suicidar ou ir ao teatro em Paris e cear depois da meia-noite. Convenhamos que Bovary, Anna Karenina ou Medeia ou Clitemnestra (que tinha um monte de filhos) eram muito mais verdadeiras que estas escritoras que vivem como se actrizes que não acertam com o palco e adormecem amarguradas por não lhes ser dado um prémio literário pela sua devoção à luta doméstica.

É muito simples: matem-se. Matem-se e poupem- nos a vossa vida de pacotilha, ao vosso feminismo como desculpa para uma enorme auto-complâcencia. 

Devo dizer que as abomino. A todas. As que escrevem, as que não escrevendo vivem em função desse teatro, sentem em função desse teatro. As que se escrevem no seu palco imaginado, com um cenário politicamente bem montado para impressionar incautos. Ou incautas. 

O que me choca realmente é como esta visão do mundo das mulheres se tentacula, um discurso pobre, paupérrimo sobre a condição humana que aspira ser "A" verdade , "O" século XXI, "A" geração do futuro. Que, em breve, não poderemos questionar, como já não podemos questionar tanta coisa, sob a pena de não semos feministas o suficiente, logo de não odiarmos profundamente quem discorda de nós.

Imaginem vocês que há, neste mesmo mundo, mulheres que gostam de ter o período menstrual, a vida a chamar-las vinda de dentro a correr quente pelas pernas abaixo. Há mulheres que gostam mesmo de ter filhos e neles, e com eles, diluem o seu egoismo e, na vida que neles desponta, também elas florescem e são felizes. Há mulheres que percebem que lhes foi dada a tarefa de fazer pão, e bolos, e encher a mesa de comida como quem faz um milagre e têm prazer em alimentar os outros. Lembram-se do Almoço de Domingo da Clarice Lispector? 

Qual destas "escritoras" têm esses olhos rasgados e delineados de negra sabedoria? Qual delas se atreve a ser uma loba e não uma urbanoide de olhos pálidos? Que só precisa de três parágrafos para fazer uma obra-prima?

Acreditem, há mulheres que amam os seus homens sem conflito. E homens que amam as suas mulheres sem conflito e são felizes porque, num mundo cheio de ódio e violência, eles tiveram a sorte de se encontrarem. Por isso, cuidam uns dos outros como coisas preciosas, tesouros achados debaixo de uma hecatombe. Porque, não se esqueçam, todos nós somos filhos da catástrofe. Só que alguns atrevem-se a sofrê-la calados. "ama e serás amado", dizia o Séneca. É mais simples do que parece.

O que salta à vista nestas escritoras do quotidiano é o seu analfabetismo emocional, a sua incapacidade para a verdadeira intimidade, a sua falta generosidade. A sua incapacidade para serem outra coisa senão fake people. 
E garanto-vos que a mim não me apanham a fazer publicidade de (mais esta) fraude nem ao teatrinho triste destas mulheres ao qual alguns chamam autobiografia, palavra que à letra significa somente "grafia do eu".