Embora tenha escrito um único romance A Nave dos Loucos por mais de vinte anos, obra que foi adaptada ao cinema pelo realizador Stanley Kramer, foi a veia contista com Collected Stories que lhe valeu em 66 um Pulitzer além do National Book Award. E também foi essa mesma veia que sempre mais sangue fez a crítica derramar.
Nascida numa pequena quinta em Indian Creek, Katherine foi a mais nova de cinco irmãos. A sua infância foi profundamente trágica. A mãe morreu quando ainda era criança e viu-se obrigada depois disso a mudar consecutivas vezes de lar. Passou por diferentes escolas religiosas do Texas e da Luisiana. Aos dezasseis anos fugiu de casa depois da morte da avó e casou nessa altura pela primeira vez. Não será difícil perceber que a instabilidade que desde cedo açoitou a sua vida, tê-la-á marcado a ferros para sempre. Casou quatro vezes. Mudou de cidade outras tantas e teve variadas profissões. Foi publicitária, jornalista, dançarina, crítica literária, escritora, professora. Morou no Texas, em Nova Iorque, na Alemanha, no México. Mas o México, sem dúvida, acabaria por surgir inevitavelmente como o cenário mais vulcânico da sua escrita. Vulcânico no sentido de nos ser apresentado ora como um paraíso, um lugar abençoado, ora como um ambiente irrespirável consumido pela intolerância e desarmonia. Tanto temos o México bucólico a tiquetaquear-nos o saudosismo com as suas paisagens, as plantações de algodão, o seu pulque, os seus cactos, como temos o México revolucionário, violento, dobrado e devoto sobre a sua própria podridão, o seu machismo, a sua desigualdade, as suas superstições.
Foi lá, nesse país de gigantescos contrastes, que tomando parte na pós-revolução mexicana de 1910 se inspirou para escrever muitos dos seus mais fascinantes contos. Considerava-se a si própria uma “idealista frustrada”, embora talvez se tivesse considerado ainda mais frustrada se tivesse ido como Scott Fitzgerald para a Europa, tal como afirmou em tom jocoso numa entrevista à Paris Review «(…) O México foi bom para mim. Eu teria ficado completamente sufocada, enjoada e revoltada com o que estava a acontecer nessa altura na Europa. Mesmo agora, quando penso nos anos 20 e na lenda que cresceu em torno deles, acho que foi uma época horrível. Superficial, trivial e absurda. O notável é ver como é que qualquer pessoa que conseguiu sobreviver numa atmosfera daquelas, continua a considerar Scott Fitzgerald um grande escritor!»
Ainda nesta entrevista, Katherine Anne Porter frisou que aquando das suas estadias no México nunca disse ou mostrou nada do que escrevia a ninguém. «Eu não mostrei o meu trabalho a ninguém ou falei sobre ele, porque na realidade ninguém estava particularmente interessado nisso. Era uma época de revolução e eu estava lado a lado com revolucionários quase puros.»
Maria Concepción, Virgem Violeta, O Mártir, Hacienda, Aquela Árvore, O Abandono da Avó Weathrerall, Judas em Flor ou Hacienda são alguns dos textos onde mais se espelha a influência desse tumultuoso país. Estes textos e outros mais encontram-se reunidos em A Torre Inclinada e Outros Contos (1944).
Editado pela Relógio D’Agua com tradução de Raquel Dura Lopes, esta coletânea reúne vinte e quatro curtas narrativas compreendidas entre os anos 20 e 30.
Nelas vamos encontrar não só diferentes cidades a servirem-lhe de pano de fundo como Xochilmico, Tehuantepéc, Cidade do México, Nova Orleães ou Berlim, mas acima de tudo vamos encontrar uma série de mulheres cujo pensamento jamais poderia ser comungado pacificamente como uma hóstia consagrada. Em todos eles assistimos a uma busca constante da identidade feminina. E são mulheres esquisitas estas. Indomáveis, temperamentais. E a sua verdade é igualmente esquisita, indomável, temperamental. A sua verdade não é como o azeite que vem sempre à tona. Não. É uma verdade plúmbea, impraticável, apodrecida como um molar cariado. E por isso em cada conto sentimo-nos estancados na berma de uma ravina com as mãos a suar. É um terreno escorregadio este. Não há nada onde nos possamos agarrar. Não há homens que nos possam valer. Não há. Os homens de Katerine Anne Porter são seres em quem as mulheres não podem confiar. Jamais.
Em Ele, Mrs Whipple não podia confiar no marido porque este era sempre enganado por comerciantes. Em Corda, o marido saía para comprar café e gastava todo o pouco dinheiro a comprar tudo menos o que lhe tinha sido pedido. Em Virgem Violeta, Carlos enganava as primas Blanca e Violeta com o seu falso carácter e as suas poesias baratas. Também em Maria Concepción, Juan traía a mulher a todo o momento.
Não há dúvida que estes homens não são de confiança, mas isso não faz das mulheres porterianas umas simples e inocentes vítimas. Pelo contrário. Elas são profundamente vingativas. Elas não ignoram a mulher primitiva que carregam dentro delas e por isso, a raiva persegue-as como um cão a espumar-se preso à corrente. Mas, no entanto, há na sua vingança esquadrinhada, no seu orgulho felino e na sua desgraça uma sedução desarmante. E a sua crueldade encontra-se fixa num molde preciso, detalhado e milimétrico de contenção.
Qualquer um dos contos pode por isso ser passível desse exemplo feminino. Atentemos por enquanto em María Concepción. Nele, a personagem principal, a que dá o nome ao conto, depois de ser traída pelo marido, vai assassinar a sangue frio María Rosa, a mulher por quem foi trocada. Mais do que a brutalidade do próprio acto, o que mais arrepia é o comportamento de María Concepción assim que descobre a infidelidade de Juan.
«María Concepción não se mexeu nem respirou durante alguns segundos. Tinha a testa fria e, no entanto, parecia que lhe despejavam lentamente água a ferver pela coluna. Sentia uma dor inexplicável nos joelhos, como se estivessem partidos.»
María Concepción tinha receio que o marido e a amante dessem pela sua presença. Mesmo assim deixou-se ficar ali a observá-los. Quieta, em sofrimento, por mais cruciante que fosse. Essa implacabilidade irá acompanhar a personagem até ao fim, porque depois de ter sido descartada do crime pelos gendarmes, ela seguiu com a sua vida como se nada tivesse acontecido. Com as costas erguidas, com a mesma consumição de sempre. O mesmo se passa com todas as personagens femininas presentes nestes contos. Com Miriam de Aquela Árvore, com a Avó Weatherall, com Rosaleen de O Espelho Rachado ou Mrs. Halloran de Um dia de trabalho.
«Os gendarmes não sabiam o que fazer. Também eles pressentiam essa parede protectora e impenetrável construída à volta dela. Tinham a certeza de que ela cometera o crime, mas não poderiam acusá-la. (…) Um pequeno embrulho encostado à parede da cabeceira do caixão remexeu-se como uma enguia. Um choro, um mero laivo de som, segui-se. María Concepción pegou no filho de María Rosa. “É meu.”, disse com toda a clareza, “vou levá-lo comigo.” Ninguém assentiu por palavras, mas um aceno aprovado, uma expiração simples de concordância absoluta, atravessou o grupo que abria alas para que ela passasse.»
Não há dúvida o quão arrepiante é esta falsa aparente e distorcida suavidade das personagens femininas de Porter. Mas é importante frisar que embora não haja uma variação impactante na abordagem das suas reacções, elas não se tornam menos reais por isso, porque em nenhum dos seus contos há espaço para a irrealidade. Porque o leitor sente o alvoroço de cada golpe. Porque se entrega de peito aberto aos mesmos rancores. Porque engole o mesmo icor purulento que escorre de cada uma das feridas que a escritora lhe oferece.
«María Concepción ouvia a respiração de Juan. O som exalava calmamente pela passagem baixa; a casa parecia descansar após um dia extenuante. Também ela respirava, muito lenta e sossegadamente, com cada inspiração a saturá-la de quietude. A respiração leve e ténue da criança era uma mera traça obscurecida de som no ar prateado. A noite, a terra debaixo de si, tudo parecia crescer e recuar em uníssono com uma respiração ilimitada, sem pressas, benigna. Deixou as pálpebras descair e fechou os olhos, sentindo a subida e a descida lenta no interior do seu próprio corpo. Não sabia o que era, mas descontraía-a por completo. Mesmo ao adormecer, com a cabeça pendida sobre o bebé, continuava ciente de uma felicidade estranha, alerta.»
Este estado de alerta e de desassossego é uma constante no íntimo das suas personagens e talvez por isso elas sejam mulheres dotadas dessa robustez maquiavélica que as caracteriza. Talvez por isso elas não baixem a cabeça nem façam tréguas consigo próprias. Talvez por isso elas talhem a seu bel prazer o fardo que envergam. Talvez por isso elas, ainda que no lugar do morto, conduzam o coração em piloto automático. Talvez por isso permaneçam firmes, mesmo quando tudo o que mais desejam é fugir.
Quer nos contos ou no único romance que escreveu, as mulheres portianas preferem os campos arados, as pequenas vilas às estradas. Elas esfregam o chão, vivem miseravelmente, trabalham tanto ou mais que os homens, envergam espingardas às costas, filhos no ventre e acima de tudo, defendem as suas crenças e causas sem a menor interferência masculina.
Laura, em Judas Em Flor é um exemplo perfeito desse tipo de mulher. Sabemos que ela é uma jovem professora americana, crente zelosa da revolução mexicana. Vale a pena a leitura do seu diálogo com Braggoni, o líder obeso, petulante, atiradiço e nojento que a cerca todas as noites com as suas canções miseráveis e o seu ego ciclópico.
«Laura vai passando os cartuchos pelo pano mergulhado em óleo e ele torna a dizer que não consegue perceber porque trabalha ela tanto pela ideia da revolução, a menos que ame algum homem que faça parte do movimento. “Não está apaixonada por alguém?” “Não.” “Então a culpa é sua. Nenhuma mulher precisa de suplicar. Porquê, qual é o seu problema? A pedinte sem pernas da Alameda tem um amante absolutamente fiel. Sabia?»
No mesmo ano em que escreveu Judas Em Flor Katherine Anne Porter escreveu os poemas West Indian Island e Night-Blooming Cereus.
Cereus é uma espécie de cacto que apenas floresce uma vez por ano numa única noite. A sua flor apenas sobrevive por escassas horas. Aos primeiros raios de sol da manhã as suas pétalas começam a cair e a morrer. Este fenómeno acarreta claramente a dicotomia beleza versus abismo que perpassa toda a sua obra. Além da fatalidade subjacente a esta flor, é notório constatarmos que uma vez mais somos, ainda que inconscientemente encaminhados para o México. Inconscientemente dado que a autora não menciona um lugar específico ao longo do poema. Mesmo assim será impossível não fazermos a analogia com a parte final de Judas Em Flor, onde a imagem do sonho de Laura se precipita com a árvore de Judas curvada sobre a terra e com as flores quentes a sangrar rente aos seus lábios.
De acordo com Ariel Katz «os poemas de Porter, ao contrário da sua ficção, muitas vezes desdobram-se em cenários pouco concretos». Ariel Katz, por outro lado ao estabelecer linhas entre a poesia e a ficção de Porter no seu artigo Defiant wiches and deceitful ecoes, sublinha que na grande maioria, os poemas ganham vida graças aos seus altifalantes.» Altifalantes esses que segundo o autor invariavelmente ecoam e mantém-se em uníssono com a sua prosa habitando muitos recantos das suas histórias, das suas intrigas políticas, do seu caos, do seu passado. Passado esse que “nunca está onde julgávamos que o tínhamos deixado.” É que o passado nunca está lá atrás. Nunca. O passado é um leão que nos ferra os calcanhares.