Fernando Echevarría (1929-2021). Em busca da música severa dos anjos

Fernando Echevarría (1929-2021). Em busca da música severa dos anjos


Morreu, aos 92 anos, o mais metafísico dos poetas portugueses. Autor de uma obra vastíssima, parecia bêbedo de um insaciável ritmo, mas os seus versos eram de uma lucidez e de uma sobriedade espantosas.


Era admirado, tanto como era reservado, o que não é pouco, e bastava-se com essa soberania alcançada por quem se tem a si mesmo. Quem consigo conta para armar a cilada de uma alma que sabe repercutir-se. E servindo-nos de versos seus, poderíamos dizer que “tinha/ a invisível altura de se doer com tal/ inteligência que o azul batia/ cumprindo-se em seu limbo de púlpito eficaz”. Há um retrato que vai e vem, numa obra que foi digerindo o tempo como se a partir da razão erguesse, na sua posição periférica, o seu próprio convento, a sua biblioteca exaustiva, defendendo uma apetência universal de conhecimento, do mundo e dessas ligações entre o visível e o invisível. “Transposto o sítio onde as flores/ entristeciam, a estrada”. Assim, depois da morte ainda há o longe em que se colocou esta obra, querendo-se de uma profundidade como a do horizonte, “quase abstracta/ que prosseguia qual se fosse/ a última clareira prolongada;/ e a tremulina da morte/ o houvesse deixado na solidão imóvel/ da sua própria alma”.

Fernando Echevarría morreu na segunda-feira, no Porto, aos 92 anos. Tinha passado os últimos dias internado, e já há alguns anos havia sofrido um ataque cardíaco, de que recuperou para se ligar com um renovado fervor ao seu ofício poético, tendo publicado, em 2013, “Categorias e Outras Paisagens”, um livro com quase 500 poemas inéditos. A sua obra era, ao mesmo tempo, um rio e uma destilaria, e estando sempre a retomar os autores clássicos, importava-lhe atingir esse ponto dominado pela “atenção de ver como o silêncio/ isola cada ruído na sua eternidade”. Esse alento confunde-se com o dos anjos, e só se pode atingir “quando o nome gastou os seus limites”. Com isto em mente, podemos ler mais fundamente versos como estes: “Tudo o que estava à sua volta via/ como o tempo, por ele, perdia idade,/ embora fosse entrando pela antiga/ luz que nos deixa, sobre a eternidade,// a ouvir aquela margem de rumor/ que desenha confins de terra e vento/ a qualquer coisa que não é no amor// mas alarga o espanto ao pensamento.”
O poeta explicava que, ao contrário de S. João, para quem no princípio era o verbo, “eu digo no princípio há o ritmo. Ainda não há poema e há já um ritmo prévio, que vai dar o primeiro verso ou o último ou qualquer coisa, mas que é prévio ainda, porque a poesia é uma língua, como o é a música, a pintura”.

Metafísico, um tanto barroco, Echevarría soube servir-se de um desgaste subtil do hendecassílabo ou do alexandrino, aproveitando-se da carcaça do soneto, onde fazia criação de pássaros algo mais rudes, impondo uma música severa, obscura e hipnótica, esse perfume que enreda e distende “o eco de pensar”. É uma poesia que está sempre a meio, que procede firmando ténues delimitações num regime ao mesmo tempo sensível e rigoroso, nascido de um ímpeto convulso. “E a outra noite pela nossa canta,/ não luzes de prestígio, a só penúria/ que, quase instrumental, se exerce. Instaura/ um dentro fora de dimensão alguma./ E é de aí que a noite se levanta/ e o mundo da insistência continua.”
Na sua proliferação algo esgotante, se esta poesia tem algo de solene, lembra, ao mesmo tempo, o discurso desses seres um tanto alheados, tartamudeando para si mesmos, fantasmas entregues à rede das suas conjecturas. Chega-nos assim a voz de alguém que nasceu dentro da poesia e sente o peso da sua irrealidade, dando o seu testemunho dessa outra razão que explora o mundo como imagem. E guiando-nos pelo exemplo do poeta cubano Lezama Lima, cuja influência tantas vezes se sente na obra de Echevarría, vale a pena citar estes versos: “Ah, que tu escapes no instante/ em que já tinhas alcançado a tua melhor definição./ Ah, minha amiga, que tu não queiras crer/ nas perguntas dessa estrela recém-cortada,/ que vai molhando as suas pontas noutra estrela inimiga (…) Ah, minha amiga, se no puro mármore dos adeuses/ tivesses deixado a estátua que nos podia acompanhar,/pois o vento, o vento gracioso,/ estica-se como um gato para se deixar definir. ”

Como sabemos pelo poeta argentino Roberto Juarroz, viver as suas noites sob temperaturas extremas é terrivelmente esgotante, mas um poeta como Echevarría soube valer-se desse alargamento de um ouvido que se enraíza no mundo, uma formação vasta em que a lírica opera como um amor duro, “que deseja permanecer virgem e que, por isso, prefere dirigir-se à alienação ou inclusivamente ao vazio do que a nós…”

Maria João Reynaud, quem mais se empenhou no estudo e louvor desta obra, reconheceu nela “um simbolismo místico e extático, em que a busca da perfeição objectiva se traduz numa genuína e requintada exaltação da forma”. Por sua vez, António Guerreiro vincava a tensão fundamental entre poesia e filosofia, entre a palavra poética e a palavra pensante das disciplinas críticas, mas isto “sem a desviar para um plano do conhecimento e da sensibilidade estranhos à poesia e inimigos dela”. Acrescenta ainda que “o ritmo latente das coisas do mundo não desapareceu dela e vem até, muitas vezes, envolvido numa dimensão religiosa que, como observou Maria João Reynaud, muito deve aos poetas místicos ibéricos”. Em declarações ao i, o poeta portuense José Manuel Teixeira da Silva, um leitor atento da obra de Echevarría nota como esta “faz corpo com o correr da vida, e tem algo de caudaloso, mas também de lúcido, de um ascetismo que nasce da atenção aos esplendores de existir”. Nota ainda que é uma poesia que, de tão sensível e lúcida se torna, na sua permanente afirmação, monumental, “capaz até de inventar uma espécie de nova língua, depurada de toda a ganga ideológica e mercantil, seja nas suas reiterações lexicais, nas suas reconfigurações semânticas e sintácticas, que parecem beber nas próprias raízes da língua”. Por último, Teixeira da Silva refere não só a postura exemplar de Echevarría na sua discrição e alheamento quanto aos circunstancialismos da cena literária, como o facto de a sua obra assumir a “vocação de instrumento de conhecimento, de desvendamento, alheia a toda a frivolidade, num território novo que traz saberes insuspeitos e transversais entre a arte, a filosofia e uma certa sabedoria de ocupar de forma justa e inquieta o momento e o lugar”.

Nascido em Cabezón de la Sal, na província espanhola de Santander, na Cantábria, em 1929, filho de um pai português e de uma mãe espanhola, Echevarría veio com a família, aos dois anos de idade, morar em Grijó, Vila Nova de Gaia. Ficou com o nome da mãe, e perto de fazer 90 anos, numa entrevista que deu ao Correio do Porto, lembrava como em Espanha se perguntavam qual era a sua pátria lhes respondia: “a minha pátria é o exílio, mas não me esqueço que nasci aqui…”

Tinha dez anos quando a mãe morreu e, no ano seguinte, em 1940, entrou no Colégio Cristo Rei, dos padres Redentoristas, onde permaneceu até 1946. Entrou a seguir num seminário em Espanha, fez estudos de Filosofia e Teologia. Disto nos dá conta a Nota Biográfica que surge nos dois volumes de 900 páginas que reúnem a sua obra, com o título “Obra Inacabada”. No ano em que publicou o seu livro de estreia, Entre Dois Anjos (1956), terminou o serviço militar, em Lisboa, regressou ao Porto e começou a dar aulas no ensino secundário particular. Nos finais de 1963, partiu para Argel, depois de ter aderido ao M.A.R. (Movimento de Acção Revolucionária). Esteve, portanto, próximo do chamado “grupo de Argel” e de Humberto Delgado (que passou por Argel em 1964, vindo do Brasil, onde esteve exilado). Mas sobre isso, nunca Fernando Echevarría publicamente deu testemunho, tendo sempre preferido manter-se discreto. Em 1966 regressou a Paris e permaneceu exilado até 1974 (já não em situação de exílio continuou em Paris até à viragem do século). Na já citada entrevista dada ao Correio do Porto, o poeta conta que, por esses dias, “como tinha de ganhar a minha côdea, fiz várias coisas, e o primeiro emprego em Paris foi o de porteiro. Depois, no sítio onde fui porteiro, acabei por ser professor de francês para estrangeiros. Com os horários das aulas, tinha de ter um rigor muito grande para poder trabalhar para mim, nas minhas coisas, ler e escrever. Esse rigor fez-me bem, porque ganhei uma disciplina que não era vã, era para. Nessa disciplina houve uma sorte enorme, porque pude, nessa época, em França, reformar-me aos 58 anos. Tive duas grandes alegrias na minha vida: uma foi essa reforma, e disse então ‘agora começo a ser eu’. Houve outra: tinha uma vida muita apertada economicamente e só podia tomar um café por dia, mas, quando pude tomar dois, senti-me rico…”

De resto, da biografia pouco mais se sabe. Tendo sido próximo de Emídio Guerreiro (fundador do PPD) e integrado a direcção da L.U.A.R (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), na fase inicial deste movimento político, fundado em Paris, em 1967, Echevarría fez sempre questão de separar aquilo que considerava terem sido as acções e os compromissos que assumiu decorrentes do seu empenho cívico, nomeadamente na resistência ao Antigo Regime. E numa entrevista ao Expresso, explicou a sua decisão de não voltar a Portugal após a revolução: “Não regressei a Portugal após o 25 de Abril. Vim tomar pulso ao que acontecia. E o resultado não me pareceu estimulante nem, por outro lado, achei decente que, após o cumprimento de um dever cívico, viesse alguém apresentar a factura do facto.” Talvez sejam os versos aos quais, no fim, faça mais sentido recorrer em busca de uma outra clareza para estas coisas, e mesmo para nos irmos despedindo: “Não. Não digam que é triste. Digam só que avançamos/ mais para dentro da nossa solidão./ Digam que ouvir é campo/ medindo o som/ que nos situa ainda próximos do pranto,/ ou de onde estão.// Mas se formos um pouco mais pra dentro/ da solidão, abrir-se-á/ a dureza sem fim do pensamento./ E, então, ficará/ ser triste cá fora. O vento/ esfriará o ar./ E, então só, seremos/ longe do mundo que à nossa volta está.”