Um dos maiores problemas da Justiça portuguesa reside precisamente no facto de as entidades encarregadas de aplicar as leis o fazerem de forma deficiente, vindo depois a culpar a própria lei por tudo o que está mal na justiça. E normalmente em seguida, surge uma alteração da lei, que deixa a situação ainda pior, sendo essa lei revista novamente a culpada pela ineficiência da justiça. E assim o país anda de reforma em reforma legislativa, mas o sistema de justiça mantém-se em colapso.
Um exemplo desta situação ocorreu com o recente episódio da fuga de um banqueiro, a qual era facilmente evitável, bastando para o efeito que o mesmo tivesse sido sujeito a uma simples medida de proibição de se ausentar do país e entrega do passaporte. Essa medida podia perfeitamente ter sido decretada, e era mais do que justificada perante um arguido que sistematicamente se deslocava para o estrangeiro, indicando no processo como morada a embaixada ou o consulado português. Efectivamente, o art. 200º, nº1, b) e nº3, do CPP prevê a possibilidade de como medida de coacção se proibir o arguido de se deslocar para o estrangeiro e entregar o passaporte, nada impedindo o Ministério Público de requerer essa medida e o Juiz de a decretar. Nada disto foi feito, o que naturalmente permitiu essa ausência do país, não havendo qualquer razão para não se assumir a responsabilidade por essa decisão.
No entanto, perante a indignação verificada na opinião pública por mais esta demonstração da ineficiência da nossa justiça, as explicações dadas foram claramente insuficientes. O Conselho Superior de Magistratura veio em nota afirmar que o comportamento do arguido só levantou suspeitas depois de os advogados do BPP requererem o agravamento das medidas de coacção, mostrando assim que esse comportamento estava a ser muito pouco fiscalizado.
Já o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público referiu que não havia indícios suficientes para ter requerido a aplicação de medidas de coacção mais rigorosas, mas, numa evidente fuga para a frente, aproveitou para solicitar o fim do efeito suspensivo dos recursos para o Tribunal Constitucional. Trata-se de uma medida claramente inconstitucional, e que manifestamente nada tem a ver com o falhanço no estabelecimento de medidas de coacção adequadas neste processo e que permitiriam evitar a fuga dos arguidos, mas tudo serve de pretexto para retirar garantias aos cidadãos, quando nada o justifica.
Finalmente, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses considera que a culpa de não ter sido estabelecida no processo uma medida de coacção adequada é da lei existente, responsabilizando o poder político que fez a lei. É assim que afirma que “dos actores políticos, daqueles que organizaram o sistema e que têm a responsabilidade de o mudar quando se detectam fragilidades que potenciam situações imorais, desses tem de se esperar mais do que reacções de aproveitamento e atribuição de culpas”. Assim, a culpa de num processo não ter sido estabelecida uma medida de coacção adequada, e de a mesma não ser revista quando se agrava o perigo de fuga, nunca é dos magistrados que estabelecem a medida, mas antes dos pérfidos actores políticos que fazem leis absolutamente inadequadas e que pelos vistos são as culpadas por tudo o que de mal sucede na Justiça. Mudem-se as leis pela enésima vez e naturalmente que tudo ficará miraculosamente resolvido, uma vez que naturalmente nada se pode apontar aos magistrados na sua decisão de aplicação de medidas de coacção.
Há uma máxima célebre dos Romanos que refere: “Plurimae leges, pessima republica”, ou seja que quanto pior é o Estado, maior o número de leis, demonstrando a ineficiência da sua aplicação. Também Montesquieu afirmava que a lei era enfraquecida sempre que se faziam novas leis inutilmente: (“Comme les lois inutiles affaiblissent les lois nécessaires, celles qu’on peut éluder affaiblissent la législation”). É por isso necessário que os operadores judiciários abandonem de vez a tentação de atribuir as culpas às leis por tudo o que mal sucede na Justiça e assumam a sua própria responsabilidade na gestão dos processos.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990