No deserto de evidências que ressalta de tanta poesia portuguesa, o mais que às vezes nos é dado esperar é o ir-se afinando uma certa qualidade cínica. Cada vez menos o território da invenção, a poesia é sobretudo um espaço de sedimentação, um forma de a língua devolver-se à tradição. E os poetas, como pintores de um tempo sem luz, ou tão racionada que por um só olho espreitam vários, degredados, amontoados na mesma cela, tirando avidamente da mesma gamela, da boca uns dos outros as suas impressões, aos poucos substituem o mundo, e este torna-se uma abstracção pela qual se desunham, batendo-se furiosamente pelas propriedades realistas dessa estreita sensibilidade.
A invenção parte da desconfiança das percepções, da ordem das coisas, de outro modo, julgando ver mais perto, amesquinha-se o mundo, tentando segurá-lo, acaba-se fixando-se em nomes ausentes, uma coisa de que se ouviu falar, um rumor. E por isso os eufemismos da morte preenchem o decálogo destes cultos. António Amaral Tavares não escapa a isto. E, no entanto, a sua poesia introduz sempre um elemento de estranheza, investe num mistério, as palavras deixam apenas metade do corpo à vista, e a outra metade segreda já para uma treva inapreensível. Numa plaquete como “Animais Incluídos”, o poeta consegue desde logo demarcar-se de tantos que hoje se rojam devido à folia precária dos editores Xerox que, sem investir na perenidade dos livros, sem buscar que estes alcancem um público tão vasto quanto possível, se contentam com manobras afiliares para se verem à cabeceira de umas patuscadas de restos, fins de festa, envergando coroas sobre uns reinos de nada.
“É muito difícil contrariar a luz que anoitece”, lê-se no fecho do primeiro poema deste livro. Os animais, que vão surgindo como figuras totémicas, abrindo o poema à rememoração, criam elos para um sentido religioso em que deus surge ameaçado como a natureza num tempo sujeito à dissipação. “Vendo bem as coisas/ da vida algo restou/ a que podemos chamar/ ouro silêncio do que ficou/ a cada passo por dizer.// Pousemos agora os espelhos/ e as palavras erradas/ é duro e imperceptível/ o coração das abelhas.” Assim, dos sapos nos diz o poeta que “estarão à porta do erro/ que escolheste para viver.” Não é um bestiário, e o poeta não cede às gastas efabulações, nem tropeça nunca nos sentimentalismos de projecção ecologista, mas consegue criar quadros pungentes e remata o livro de forma magistral, com um texto que descreve simplesmente um fenómeno de depradação natural de um certo fungo das florestas tropicais que escolhe as formigas como hospedeiras. É uma alegoria brilhante, um poderoso poema em prosa que mais não faz que abrir os olhos e ver o mundo.