Um ménage à Woody Allen

Um ménage à Woody Allen


Rifkin’s Festival é o mais recente filme de Woody Allen. Hilariante, burlesco e terrivelmente irónico como não podia deixar de ser.


Tal como Melinda e Melinda, em 2004, este filme abriu o último Festival de Cinema de San Sebastián.

Desta vez o cenário é a própria cidade de San Sebastián, uma cartão-postal colorido e turístico na Baía de Biscaia e outros lugares pitorescos da província basca de Guipúscoa.

Wallace Shaw no papel de Mort Rifkin é o personagem principal desta história. É ele quem encarna na perfeição a identidade de Allen com as suas contradições meteóricas, o seu habitual pessimismo, a sua melancolia deliciosa, o dramatismo hilariante de sempre.

Mort é um intelectual judeu nova iorquino de classe média nascido e criado no Central Park. É um homem profundamente frustrado, incompreendido, fora deste mundo. Em tempos escreveu num jornal de renome e deu palestras na Cinématheque de Paris. Toda a vida aspirou a ser um Fellini ou um grande escritor, mas vê-se incapaz de prosseguir com o livro que tem em mãos há anos. O seu maior pavor é escrever um romance medíocre e por isso escreve e rasga. Escreve e rasga. Escreve e rasga. Não se sente confiante e capaz de avançar e por isso deixa-se soterrar pelos escombros da insatisfação, pela fragilidade cristalina da vida.

A todo o momento vemo-lo descoser cada questão existencial e pôr em causa todas as fachadas. Fachadas essas na maioria estucadas por nós próprios. Qual o sentido da vida que levamos? Que espécie de relações mantemos? Somos felizes no casamento? Somos fiéis a nós próprios? Porque é que tantas vezes somos nós a incendiar os nossos próprios dilemas? Não seríamos capazes de morrer por amor? Claro que não. E não nos estaremos todos a fartar da posição de missionário? Na cama, na literatura, no cinema, no parlamento, na fé, na banca? Claro que sim. E se tivéssemos oportunidade para um ménage à trois? Quem é que iriamos escolher? Quem? Mort escolheria a maléfica cunhada. Sem a menor das dúvidas.

Tudo e todas as questões na cinematografia de Woody Allen continuam e não há dúvida que continuarão a ser passíveis de ser questionadas e cada interrogação atinge-nos como um tornado. É que há inúmeros momentos em que nos sentimos como que num interrogatório contínuo com a câmara suspensa sobre as nossas coronárias. Acontece que Woody Allen permite que cada costura dessas questões e desses interrogatórios barra monólogos se solte até ao cós da gargalhada. Como travar o riso com frases destas? «Jesus era um tipo normal, um carpinteiro brilhante. Devia ter ressuscitado no Dia do Trabalhador.»

Casado com Sue (Gina L. Gershon), uma mulher altamente pratica, sexy e empreendedora, vai acompanhá-la ao festival de San Sebastián durante dez dias. Sue, que já trabalhara anteriormente na Paramount, tem uma empresa de publicidade e vai estar presente no festival na qualidade de manager de Philipe germain, um jovem e atraente realizador. Será graças a este jovem que Mort começará a sentir formigueiros no coração. Formigueiros que não passam de puro ciúme já que Mort apercebe-se que a mulher está encantada e atraída por Philipe.

Ela acha-o brilhante, excepcional. Não se coíbe de estar sempre ao seu lado, de vangloriá-lo nas barbas do marido. Mas acontece que Philipe não passa de um galã oco, fútil, convencido e presunçoso, entusiasmado com a ideia de galar uma mulher como Sue. «Sou um realizador de mulheres. Um romântico.» E por ser um romântico, o seu próximo filme será como um mar de rosas brancas. Qualquer coisa como o caminho idílico para a paz no médio Oriente!

Se Mort personifica o cinema clássico, a Nouvelle Vague e se no seu altar tem acesas todas as velas bentas para Bergman, Truffaut, Chabrol, Philipe personifica o oposto. O seu altar é um circo. Um circo onde a superficialidade, a esperança, a paixão, o desejo, e a ilusão se equilibram num contorcionismo forçado e desastroso. Um circo que entretém, mas que não nos sustém. Um circo que não nos leva a lugar nenhum, que não nos toca, que não nos envolve. Daí ser urgente a suspeita, a desconfiança de tudo o que seja circense. É urgente suspeitar de tudo o que seja artefacto, balela, entretenimento, puro lucro.

Mais vale sermos umas “pilhas de neuroses ambulantes” e brindarmos a todos os filmes que são verdadeiras obras de arte. A todos os poemas, a todas as peças de teatro que são verdadeiras obras de arte. Mais vale sermos umas “pilhas de neuroses ambulantes”, continuarmos a pôr-nos constantemente em causa, falharmos todas as expectativas a sermos escravos de padrões comerciais, festivaleiros e burguesinhos. Afinal não passamos de “flutuações cósmicas”.