Depois de ter passado pela Feira Internacional Literária de Bogotá, chega-nos o documentário Entre Dois Rios E Outras Noites, de Nuno Fonseca Santos sobre a poeta Ana Luísa Amaral. A poeta que em 1990 se estreou com o livro Minha Senhora De Quê. A poeta que ganhou recentemente o prémio Reina Sofia. A poeta para quem os afetos são a maior das constelações. «Os afetos. Crescemos e formamo-nos nos afetos».
Inserido no Ciclo Artistas em Foco, este documentário conta com a participação de Pedro Lamares, Teresa Coutinho, Lauren Mendi, Marinela Freitas, o encenador Nuno Carinhas, entre outras personalidades que conhecem de perto a poesia da antiga Professora da Faculdade de Letras.
É graças a estas participações que nos é desvendado o universo compacto da sua poesia. Um universo feminista, povoado de vozes e contemplações, onde “em linhas ou palavras a linguagem/ que temos é sempre outra.” E por isso, cada diferente perspetiva surge-nos como uma espécie de munição. Uma munição certeira, precisa, perfurante. Uma munição que nos cerca de perto e nos lembra que «a palavra consegue ser mais poderosa do que a própria vida. Que a palavra poética não é a vida. Que a vida é outra coisa. Que a vida não é a poesia.»
Não há dúvida que foi crucial o realizador trazer-nos diferentes perspetivas sobre a poeta. Se por exemplo, ouvimos o encenador Nuno Carinhas salientar que na sua poesia há notoriamente uma necessidade de música nas suas palavras, por sua vez foi gratificante, ouvirmos a tradutora Lauren Mendi centrar-se na dificuldade que é traduzir a estranheza e a gramática da poeta. «É um desafio e um prazer.»
São estes depoimentos, ou passagens da poeta a dar aulas junto dos seus alunos, ou a ir ao talho comprar carne para fazer croquetes, que nos possibilitam um entendimento mais profundo do seu caracter e da sua forma de comunicar. «Os pequenos ofícios fazem parte da vida, da nossa linguagem.»
Vejamos como mais do que cinematográfico, este documentário está destinado a infiltrar-se com naturalidade naquilo que é o universo poético de Ana Luísa Amaral. As suas rotinas, os seus fantasmas, a sua Emily Dickinson, os seus versos.
«Eu não sei como se escreve um poema. Sou capaz de ensinar tercetos e quadras e versos decassílabos. Isso é fácil, mas como se faz ou como surge a atração das palavras entre elas não sei. Isso é maravilhoso e angustiante. É algo inquietante».
Entre Dois Rios E Outras Noites, tal como o documentário, começa com a chuva. «Era de noite. A chuva sem doçura. A estrada/ tão diferente das estradas/ a sul deste outro rio. A saudade parada durante muito tempo, / nas noites sem doçura, como a chuva. Era de noite e eu não sabia nada. // Entre as duas paisagens, entre os dois rios/ mais físicos que tudo, partiram, as gaivotas, eu/ perdi-me. (…)»
O leitor/ espectador também se perderá. Também com a poeta facilmente se perde na praia dos Ingleses na Foz do Douro ou na viagem de elétrico à praia das Maçãs em Sintra. «Há trinta e cinco anos que não andava neste elétrico. É como um corpo que nunca se esquece. É quase uma topografia do coração. Nunca se esquecem os locais.»
Mas não é só o elétrico que nos transporta até à praia das Maçãs, é a memória. São as emoções, os poemas. Há um em especial da sua autoria lido com comoção pela filha Rita que nos permite conhecer a poeta pelo ângulo nunca reto da maternidade. Esse poema chama-se “Testamento” e é um poema duro nos lábios de uma filha. É um poema em chamas.
«Se eu morrer quero que a minha filha não se esqueça de mim (…)».
Rosa Maria Martelo, na revista Colóquio Letras, num ensaio dedicado ao livro que deu o nome a este documentário escreveu que «este é também um poema de celebração dos laços de afeto e da vida humana.» Da mesma maneira, também podemos considerar este exercício cinematográfico uma celebração. Uma celebração do feminino, do nome, do avesso.
«Passaram-se alguns anos desde este documentário até agora. O que me agradou neste projeto, mais do que fazer deste documentário algo cinematográfico, foi trazer a Ana Luísa. Isto é um ponto de partida. Ainda não está completo, porque tal como na poesia de Ana Luísa Amaral, precisamos dos silêncios para dar outro ritmo.»