As origens dessa ficção sem remorsos que é James Bond

As origens dessa ficção sem remorsos que é James Bond


Foi há quase seis décadas que estreou o primeiro filme da saga 007, e foi uma visão de um futuro recortado com requinte e com margem para as fantasias de adolescentes num momento em que o mundo era ainda de uma vastidão assombrosa e por explorar.


No momento em que estreia por fim o 25.º filme da saga 007, depois de sucessivos adiamentos motivados pela pandemia, estamos a pouco mais de um ano de se cumprirem seis décadas desde a primeira vez em que o agente secreto com licença para matar primeiro se nos apresentou como Bond, James Bond no grande ecrã. Foi a 5 de outubro de 1962 que “Dr. No” se estreou nas salas de cinema. Na altura, o criador da saga, Ian Fleming, tinha 53 anos, e Daniel Craig, que com este “No Time to Die”, se torna o sétimo actor a render a guarda, despedindo-se do personagem, não era ainda nascido. Hoje, tem ele 53 anos. E se a certa altura parecia estar farto de Bond, afirmando que mal podia esperar pela hora de se ver livre dele de uma vez por todas, acabou por agradecer aos produtores a oportunidade que lhe deram de sair reconciliado com o papel da sua vida, admitindo que o mais provável é que venha a acolher como um rude golpe quando for finalmente anunciado o nome do actor que lhe irá suceder. Pelo meio ficaram uma série de lesões e fracturas, várias mazelas que irão sempre recordá-lo do alto preço que se paga por encarnar essa figura totémica da cultura ocidental. Numa hora destas, talvez os martinis ajudem a olear essa máquina do tempo que funciona menos ao longo de uma linha cronológica e mais de um rosário das fantasias que a época foi inspirando. Nesse desvio, a tendência para empilhar corpos sinaliza menos o compromisso de Bond com a defesa dos interesses da Coroa do que a sua noção de que tudo não passa de um artifício, de uma ficção um tanto selvagem. É tudo meio absurdo, e essa é precisamente a fórmula de sucesso, um divertimento sem remorsos, sem grandes consequências, como se tudo se passasse no registo íntimo do género de efabulações que mantêm um adolescente com a cara enterrada na almofada ansiando por virar do avesso as suas frustrações, e vingar-se, assim, da vida sem deixar de obter o seu favor, saboreá-la ao máximo. James Bond não observa qualquer pacto com os regimes do realismo em que se extenuava o romance burguês. De algum modo, a narração a partir dali abdicava da coerência e do rigor, dedicando-se a um gozoso desmantelamento da unidade romanesca, para passar mais tempo do lado de uma apreensão erótica da realidade, entre detalhes elevados à extravagância num registo em que tudo o que se liga à realidade e aparece de forma concreta parece assumir, ao mesmo tempo, uma careta irónica. Quando “Dr. No” estreou nos EUA, o crítico de cinema da “The New Yorker”, Brendan Gill, lembrava que há duas qualidades que se exigem à cabeça quando se quer escrever um thriller como o de Ian Fleming e que é difícil encontrar num homem crescido: “A primeira delas é a imaginação exagerada de um estudante de liceu sedento de sexo, e a segunda é uma quase total ignorância da forma como o mundo funciona.” Mas Gill admitia que, mesmo se o romance que inspirara o filme não passava de uma receita abandalhada e inócua, o filme em si, mesmo se inócuo era uma receita de sucesso, e reconhecia que Sean Connery tinha encarnado Bond de um modo tão admirável que jamais a audiência se cansaria de seguir a personagem de Fleming enquanto esta fizesse das suas no grande ecrã. Recorde-se que a primeira impressão que Ian Fleming teve de Sean Connery, quando soube que este iria encarnar o seu famoso espião, dificilmente poderia ter sido pior. “É um cabrão de um camionista”, terá rosnado quando os produtores que haviam comprado os direitos para a adaptação da saga 007 ao cinema lhe apresentaram um tipo de ar duro, inegavelmente belo, mas praticamente desconhecido, com um indisfarçável sotaque escocês. Parece que foi há muito tempo, e a verdade é que se atendermos menos à cronologia e mais à vida da imaginação, a sensação é de que Bond surge como o messias abandalhado da cultura popular no alvorecer da era dos voos comerciais, e, décadas mais tarde, com um franchise que já soma receitas de mais de 8,5 mil milhões de dólares, tornou-se claro como ele foi uma espécie de emissário do futuro, alguém que, depois de todos os receios e do ambiente de paranoia do período do Guerra Fria, vinha autorizar as audiências a marimbarem-se para as tensões geopolíticas, a deixarem de chorar pelas utopias perdidas, e focarem-se antes em gozar os consolos que o capitalismo oferecia. Era um novo estilo de vida, um horizonte de ficções inesgotáveis e livres de remorsos. “Dr. No” não precisou de mais do que uns meses nas salas do Reino Unido para recuperar o orçamento de um milhão de dólares investido pelos produtores, e, depois do sucesso se ter repercutido mundialmente, esse valor multiplicou-se 20 vezes. Buck Henry, um produtor que inspirado na saga 007, criou com Mel Brooks a sitcom “Get Smart”, não precisou de muito para reconhecer que estava diante de uma desses produtos deslumbrantes que afinam a frequência que toda uma época irá sintonizar para pedir direcções na sua exploração onírica. “Era deslumbrante aquele plano inicial de Ursula [Andress] a sair do mar, a brilhante direcção de arte, que fazia os nossos olhos tentarem forçar a tela a desenrolar-se um pouco mais para nos mostrar aquela mulher semi-nua nos créditos iniciais. Não era propriamente um quadro de Brueghel, mas era algo na linha das obras que artistas como Roy Lichtenstein andavam a fazer – grande Pop arte adaptada a outros meios.”

“Dr. No” e as suas sequelas que se seguiram em rápida sucessão, “From Russia with Love” (1963) e “Goldfinger” (1964), estabeleceram de certo modo o canône, no sentido em que deram o tom, definindo esse pacto com uma audiência que pretendia ver-se livres das memórias de um passado recente, desse martírio anónimo e até de um fundo biológico que as remetia de volta para tantas provações, humilhações e até cobardias. Havia algo como uma bela cegueira que permitia a quem entrava na sala de cinema encarar os destinos do Ocidente com uma nova excitação. Esses filmes não eram apenas ousados na forma como propunham a sua marca de entretenimento, como deixavam claro que não iam pedir desculpas por instigar esse grau de instinto que nutrem as nossas fantasias. Estava na hora de forjar um optimismo que nascia de assumir abertamente uma certa frivolidade e capricho própria mais da atitude adolescente do que da consciência madura. Mas estes filmes não davam apenas autorização às audiências para se livrarem de complexos, como ainda proporcionavam uma experiência de se verem já a viver nesse futuro dominado por um excedente de impaciência e de força, longe do entorpecimento que tinha caracterizado o período do pós-Guerra.
Se até 1960, nem dois por cento dos norte-americanos tinham alguma vez viajado para outros países, tanto “Dr. No” como “From Russia with Love” incluíam planos exuberantes em que se via aviões intercontinentais da Pan Am a tocarem nas pistas com os controlares a anunciarem a aterragem. Como notou o realizador de “Goldfinger”, Guy Hamilton, “o que estes filmes pareciam dizer era: “Compre o bilhete que nós prometemos levá-los a ver o mundo”. E até o pequeno-almoço pedido por Bond num hotel em “From Russia with Love” – “Figos verdes, iogurte e café, bem forte” – sinalizada um tipo de requinte que então não tinha ainda lançado a sua sombra sobre a imaginação palatal das audiências. E além da promessa de nos levar a conhecer o mundo, outra boleia que Bond nos oferecia prendia-se com a sua aventurosa vida sexual, tendo os filmes da saga estabelecido um panteão de divindades femininas que tem resistido, mesmo na era MeToo. O que não exclui a hipótese de muito em breve darmos pela primeira Bond girl tamanho XXL a fazer o agente secreto desaparecer debaixo das suas formas generosas.

Se os primeiros dois filmes da saga foram ensaios bem-sucedidos e tiveram uma projecção inesperada, “Goldfinger” foi já expressamente concebido para atingir no nervo o mercado norte-americano. E conseguiu superar as expectativas, com receitas de 46 milhões em todo o mundo, tendo a bilheteira nos EUA representado metade desses ganhos. O filme segurou por uns tempos a primeira posição como o filme até então mais visto de sempre. E “Goldfinger” ficou a dever este sucesso ao aperfeiçoamento da fórmula, com mais miúdas, mais locais de filmagens, mais remoques e frases lacónicas, foi também o primeiro Bond a ter uma grande música como tema e que andou a tocar nas rádios por meses (a canção que ainda hoje conhecemos na voz de Shirley Bassey), e foi também marcante a aparição do Aston Martin DB5 com as lâminas capazes de rasgarem pneus, metralhadoras e os assentos ejectáveis. Ian Fleming estava então já conquistado pelo fenómeno, e chegou a passar pelo set de filmagens em Pinewood, em 1964, numa altura em que vivia já achacado por graves problemas de saúde, tendo sofrido um ataque cardíaco um mês antes da estreia de “Golfinger” em Londres. Tinha apenas 56 anos, e morria no preciso momento em que Bond transcendia o sucesso da sua criação literária, enraizando-se profundamente como um dos ícones centrais do imaginário popular ocidental.
Muitas vezes foi dito que James Bond era uma espécie de alter-ego fantástico de Fleming, ao passo que este insistia em que o agente secreto era uma figura compósita que foi buscar aspectos de todos os agentes secretos com quem ele conviveu durante a Segunda Guerra Mundial, na qual participou como agente das secretas da marinha britânica, tendo vivido ele mesmo aventuras com alguma semelhança com aquelas que viria a relatar nos romances quando se sentou para escrever o primeiro em 1952.

A primeira aparição do agente que, ao serviço de sua majestade, tinha licença para matar dá-se em 1953, no livro Casino Royale, e apesar de Ian Fleming ter puxado o lustre, exagerando para o lado romântico a vida de um espião, estão lá as memórias daqueles dias em que Lisboa, devido à sua posição neutral, foi o ponto de confluência de um sem número de teias, com a rede urdida nas sombras entre aqueles que penetram os níveis subterrâneos da verdade a terem um impacto decisivo sobre o rumo do maior conflito da história.

A cena no filme "Casino Royale" (2006) em que Bond tem milhões apostados numa mesa de poker e bate o Full House de Le Chiffre com um Straight Flush, arrancando-lhe uma lágrima de sangue, não é apenas mais um exemplo da esmagadora auto-confiança do personagem de Fleming, mas é inspirada no momento em que Dusko Popov siderou todos os presentes numa noite de Maio de 1941, no Casino Estoril. Popov, era alguém que, sob a máscara de diplomata jugoslavo, afinal trabalhava como agente duplo e passou a perna aos nazis, fingindo estar ao serviço da Abwer, infiltrado no Ocidente, quando na verdade passava informação falsa, e foi uma peça-chave na vitória dos aliados. Fleming, por sua vez, era o agente do MI 5 que estava encarregue de vigiá-lo, e foi a uma mesa de bacará que testemunhou a forma como o agente duplo bateu a figura sinistra que inspirou Le Chiffre, apostando 50 mil dólares – o que equivaleria hoje a três quartos de um milhão – com uma mão ganhadora. Assim, fez baixar a crista ao outro, que não era propriamente um vilão, mas um imbecil fanfarrão que, perseguido pelos russos, estava em trânsito para o outro lado do Atlântico.

Sem pinga de sangue, Fleming sabia que se tratava de uma aposta completamente irresponsável, mas não deixou de ficar fascinado com a ousadia de Popov, que naquele momento arriscara uma soma que resultara de outro golpe aos alemães, e que pertencia agora à coroa britânica. Bond nascia assim dessa capacidade de caminhar no fio, arriscar tudo e ser perdoado pelo desfecho, provando o talento que leva a própria sorte a abandonar a imparcialidade e a ter os seus favoritos.