A falta de garantias dos arguidos em processo penal


Não é seguramente uma boa distinção para Portugal ser acusado de incumprimento das garantias de defesa dos arguidos impostas pelo Direito da União Europeia, para se defender que o país ainda deve regredir mais  neste domínio.


No passado dia 23 de Setembro a Comissão Europeia anunciou ter instaurado dois processos de infracção contra Portugal por incumprimento da Directiva 2010/64/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Abril de 2010, relativo ao direito à interpretação e tradução em processo penal, e da Directiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2012, relativo ao direito à informação em processo penal. Uma acção de incumprimento instaurada pela Comissão Europeia contra um Estado-Membro no Tribunal de Justiça da União Europeia é uma medida muito grave, constituindo uma grande reprovação para esse Estado-Membro em relação à falta de cumprimento das suas obrigações perante a União Europeia. A situação assume especial gravidade neste caso, uma vez que está em causa o não respeito pelo Estado Português das garantias dos arguidos em processo penal.

No primeiro caso, relativo ao direito à interpretação e tradução, o Estado Português é acusado de não ter transposto correctamente a Directiva 2010/64/UE. Essa Directiva reconhece a todos os suspeitos e acusados que não falam a língua portuguesa beneficiem sem demora de interpretação durante toda a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias (art. 2º). Para além disso, os suspeitos e acusados têm direito à tradução de todos os documentos essenciais à sua defesa (art. 3º). A Directiva determina que o Estado tem obrigação de suportar os custos da interpretação e a tradução independentemente do resultado do processo (art. 4º).

Da mesma forma, o Estado Português é acusado de não ter aplicado adequadamente a Directiva 2012/13/UE, que estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada (art. 1º). Esses direitos passam por assegurar que os suspeitos ou acusados de uma infracção penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais: a) O direito de assistência de um advogado; b) O direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção; c) O direito de ser informado da acusação; d) O direito à interpretação e tradução; e) O direito ao silêncio (art. 3º). Para esse efeito deve ser entregue um documento escrito contendo uma Carta de Direitos aos detidos aquando da privação da sua liberdade, que podem e ler e conservar na sua posse enquanto estiverem privados da liberdade (art. 4º). Para além disso, esta Directiva garante o direito à informação sobre a acusação, obrigando a que qualquer detido seja informado sobre as razões da sua detenção, incluindo o acto criminoso de que seja suspeito ou acusado de ter cometido (artigo 6º), bem como o direito de acesso aos elementos do processo, sendo as autoridades obrigadas a fornecer aos suspeitos ou acusados toda a prova de que dispõem contra eles, regra essa que só pode ser derrogada em casos excepcionais por decisão de autoridade judicial (art. 7º). A Directiva preocupa-se especialmente com a formação neste âmbito, determinando que os responsáveis pela formação de juízes, magistrados do Ministério Público, agentes da polícia e funcionários judiciais que exerçam atividade no âmbito do processo penal, ministrem formação adequada no que respeita aos seus objetivos (art. 9º).

Todas as obrigações resultantes destas Directivas são essenciais para a defesa dos arguidos em processo penal e por isso desde sempre deveriam ter sido garantidas no nosso país. Por isso, em lugar de efectuar reformas penais, consagrando regras absolutamente perniciosas como os acordos de sentença e a delação premiada, melhor andaria o Estado Português em cumprir prontamente as regras europeias sobre a defesa dos arguidos em processo penal. E todos aqueles que andam a defender que existe um excesso de garantias de defesa no nosso país, melhor fariam em olhar para a forma como as instituições europeias avaliam o funcionamento do nosso processo penal. Não é seguramente uma boa distinção para Portugal ser acusado de incumprimento das garantias de defesa dos arguidos impostas pelo Direito da União Europeia, para se defender que o país ainda deve regredir mais neste domínio.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


A falta de garantias dos arguidos em processo penal


Não é seguramente uma boa distinção para Portugal ser acusado de incumprimento das garantias de defesa dos arguidos impostas pelo Direito da União Europeia, para se defender que o país ainda deve regredir mais  neste domínio.


No passado dia 23 de Setembro a Comissão Europeia anunciou ter instaurado dois processos de infracção contra Portugal por incumprimento da Directiva 2010/64/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Abril de 2010, relativo ao direito à interpretação e tradução em processo penal, e da Directiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2012, relativo ao direito à informação em processo penal. Uma acção de incumprimento instaurada pela Comissão Europeia contra um Estado-Membro no Tribunal de Justiça da União Europeia é uma medida muito grave, constituindo uma grande reprovação para esse Estado-Membro em relação à falta de cumprimento das suas obrigações perante a União Europeia. A situação assume especial gravidade neste caso, uma vez que está em causa o não respeito pelo Estado Português das garantias dos arguidos em processo penal.

No primeiro caso, relativo ao direito à interpretação e tradução, o Estado Português é acusado de não ter transposto correctamente a Directiva 2010/64/UE. Essa Directiva reconhece a todos os suspeitos e acusados que não falam a língua portuguesa beneficiem sem demora de interpretação durante toda a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e as audiências intercalares que se revelem necessárias (art. 2º). Para além disso, os suspeitos e acusados têm direito à tradução de todos os documentos essenciais à sua defesa (art. 3º). A Directiva determina que o Estado tem obrigação de suportar os custos da interpretação e a tradução independentemente do resultado do processo (art. 4º).

Da mesma forma, o Estado Português é acusado de não ter aplicado adequadamente a Directiva 2012/13/UE, que estabelece regras relativas ao direito à informação dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada (art. 1º). Esses direitos passam por assegurar que os suspeitos ou acusados de uma infracção penal recebam prontamente informações sobre pelo menos os seguintes direitos processuais: a) O direito de assistência de um advogado; b) O direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção; c) O direito de ser informado da acusação; d) O direito à interpretação e tradução; e) O direito ao silêncio (art. 3º). Para esse efeito deve ser entregue um documento escrito contendo uma Carta de Direitos aos detidos aquando da privação da sua liberdade, que podem e ler e conservar na sua posse enquanto estiverem privados da liberdade (art. 4º). Para além disso, esta Directiva garante o direito à informação sobre a acusação, obrigando a que qualquer detido seja informado sobre as razões da sua detenção, incluindo o acto criminoso de que seja suspeito ou acusado de ter cometido (artigo 6º), bem como o direito de acesso aos elementos do processo, sendo as autoridades obrigadas a fornecer aos suspeitos ou acusados toda a prova de que dispõem contra eles, regra essa que só pode ser derrogada em casos excepcionais por decisão de autoridade judicial (art. 7º). A Directiva preocupa-se especialmente com a formação neste âmbito, determinando que os responsáveis pela formação de juízes, magistrados do Ministério Público, agentes da polícia e funcionários judiciais que exerçam atividade no âmbito do processo penal, ministrem formação adequada no que respeita aos seus objetivos (art. 9º).

Todas as obrigações resultantes destas Directivas são essenciais para a defesa dos arguidos em processo penal e por isso desde sempre deveriam ter sido garantidas no nosso país. Por isso, em lugar de efectuar reformas penais, consagrando regras absolutamente perniciosas como os acordos de sentença e a delação premiada, melhor andaria o Estado Português em cumprir prontamente as regras europeias sobre a defesa dos arguidos em processo penal. E todos aqueles que andam a defender que existe um excesso de garantias de defesa no nosso país, melhor fariam em olhar para a forma como as instituições europeias avaliam o funcionamento do nosso processo penal. Não é seguramente uma boa distinção para Portugal ser acusado de incumprimento das garantias de defesa dos arguidos impostas pelo Direito da União Europeia, para se defender que o país ainda deve regredir mais neste domínio.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990