Com 77 anos de idade e quase 50 de carreira, José Luís Pio Abreu lançou este mês o livro Os Desafios das Doenças Mentais: Pequena História da Psiquiatria. O título vem juntar-se a outros como O Bailado da Alma, Introdução à Psicopatologia Compreensiva, Estranho Quotidiano, Quem nos faz como Somos e Como tornar-se Doente Mental. O médico, professor da Universidade de Coimbra e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Psicodrama explica em pouco menos de 200 páginas o que mudou na psiquiatria desde o século passado, abordando nomes conhecidos lá fora, como Franz Mesmer e Freud, e cá dentro, como Egas Moniz, Miguel Bombarda e Sobral Cid.
Porque é que “ser psiquiatra é o maior desafio que um médico pode enfrentar”, como escreve no início do seu livro?
Porque a psiquiatria não é propriamente uma especialidade, não tem que ver com um órgão, nem com um sistema ou uma parte do corpo. Tem que ver com todo o corpo, com todo o cérebro, todo o ambiente, com o que se passa, com a cultura, com a família. Portanto, os fatores que levam às doenças mentais têm que ver com tudo isso, e, por isso, considero a psiquiatria um ramo da medicina e não uma especialidade. Nós temos de saber tudo: fisiologia, neurologia e temos de saber o que se passa com o cérebro. Além disso, temos de lidar com doentes difíceis, muito complexas, mas em que, na maior parte das vezes, não sabemos o que se passa lá dentro. Enquanto que os neurologistas podem ligar um determinado comportamento a uma lesão cerebral, os psiquiatras não o podem fazer, apesar de também existirem lesões cerebrais causadoras de doenças psiquiátricas, como as psicoses, por exemplo. Agora, podemos descobri-las facilmente através das imagens do cérebro, mas há uns tempos ainda não existia essa oportunidade, só conseguíamos ver o cérebro nas autópsias. Temos de lidar com todos esses fatores: e não só é uma grande amplitude de fatores, como também estamos a falar de fatores desconhecidos. Muitas vezes estamos a dar um tiro no escuro. É certo que podemos ajudar os doentes e ajudamos, com fármacos e psicoterapia, mas navegamos no escuro porque não sabemos exatamente aquilo que se está a passar.
O que quer dizer quando refere que a psiquiatria não é tanto uma especialidade mas um ramo da Medicina?
Faço essa distinção com base nos aspetos materiais e distingo três ramos: a a medicina clínica, a cirurgia e a psiquiatria. A cirurgia baseia-se, lá está, nos aspetos materiais, tem que ver com a anatomia, com a matéria do corpo. A medicina clínica tem a ver com a dinâmica do corpo, como ele funciona, com a fisiologia, basicamente. Só que, além disso tudo, temos de ter em conta a informação, e é a isso que se prende a psiquiatria. Prende-se tanto à informação entre as células – informação que passa nos neurónios, como é que as células falam umas com as outras, podemos dizer assim – como à informação que nós passamos às outras pessoas, como contactamos e comunicamos, não só através da linguagem, mas também através da comunicação não verbal. Quando os psiquiatras receitam medicamentos, eles estão a alterar a informação que existe entre as células do cérebro, que comunicam através de neurotransmissores e de iões – sendo que a medicação atua nesses elementos (e também nas glândulas endócrinas). Os psiquiatras têm de contar com todos estes elementos distintos.
Considera então que a psiquiatria é um ramo da medicina que tem de ter conhecimentos específicos de outros ramos?
Sim, e também de outras coisas que não estão diretamente ligadas à medicina, como a cultura, por exemplo. É importante entender os choques culturais, a relação entre as pessoas, a relação com os pais, com as famílias e até com pessoas que já morreram, uma vez que tudo isso é importante para as chamadas doenças psiquiátricas. Nós temos de saber tudo, mas não sabemos, como é óbvio, e quando não sabemos perguntamos aos colegas de outras especialidades, porque há mesmo muitas coisas a ter em conta.
Quais as principais alterações a que assistiu no ramo da psiquiatria em Portugal e no mundo ao longo dos últimos 50 anos?
Escrevi a Pequena História da Psiquiatria precisamente para dar conta de que, desde o início da minha carreira, há quase 50 anos, até agora, tudo mudou. Entrei na altura em que começaram a aparecer os psicofármacos e em que os doentes nos hospitais conheciam as lobotomias e os eletrochoques. Depois, estes medicamentos foram-se desenvolvendo e permitindo que pudéssemos tratar os nossos doentes do mesmo modo que qualquer médico trata. Neste momento, a evolução ainda é maior porque existe um conjunto de recursos terapêuticos que podemos usar, como por exemplo, a estimulação magnética cerebral, um espécie de psicocirurgia que agora se faz e que consiste na introdução de elétrodos e as psicoterapias, que os psicólogos desenvolveram. A psicologia também é, por vezes, um pouco complicada porque enquanto que os psiquiatras lidam com doentes que sofrem ou que fazem sofrer, os psicólogos não precisam necessariamente de fazer isso. Uma pessoa numa crise de vida, ou até que queira melhorar o seu rendimento, como um desportista, pode ir a um psicólogo. No nosso caso não é assim, trabalhamos mesmo com pessoas que sofrem ou estão muito alteradas. Os psicólogos têm várias psicoterapias – a terapia comportamental, a psicanálise e várias outras – que cada profissional utiliza à sua maneira, mas nós, psiquiatras, temos de as saber todas. Mas claro que podemos enviar doentes para os psicólogos, fazemo-lo muitas vezes, e vice-versa.
Como diferenciamos uma doença do foro neurológico de uma doença do foro psiquiátrico?
No meu tempo, quando entrei para a psiquiatria, falava-se muito dos neuropsiquiatras e sinto que tenho uma grande vantagem em ter colaborado sempre com neurologistas. Os neurologistas foram “apanhando” as doenças cujas causas nós sabíamos. Por exemplo, a doença de Parkinson, sabemos que é causada por uma alteração em certas partes do cérebro e são essas alterações que explicam os sintomas dos doentes. No entanto, essa doença também está ligada à psiquiatria. Há uns anos fiz uma tese de doutoramento exatamente sobre isso, quis estudar os reflexos psiquiátricos das doenças neurológicas. E depois, há imensas vezes em que os neurologistas pedem a colaboração dos psiquiatras, por exemplo, um parkinsónico pode começar com uma depressão grave, ou ter até psicoses e nesses casos o doente tem de ser acompanhado por um psiquiatra. A epilepsia, apesar de ser uma doença neurológica, também está muito relacionada com as doenças do foro psiquiátrico, como por exemplo, a perturbação bipolar.
Em que aspeto?
Aparecem-nos muitos bipolares que antes tinham tido epilepsia ou ataques epiléticos e uma das maneiras de tratar uma doença bipolar mais difícil e que não seja mais nada é o eletrochoque, que é a indução de um ataque epilético e uma terapia altamente eficaz apesar de todas as conotações que tem. Os médicos pensaram no eletrochoque quando verificaram que doentes que tinham uma psicose às vezes tinham uma crise epilética e ficavam bons, foi isso que permitiu o desenvolvimento dessa terapia. Portanto, a relação entre a neurologia e psiquiatria continua a existir, mas os neurologistas têm o problema facilitado porque sabem exatamente qual é a questão. Por exemplo, relativamente à coreia de Huntington (doença de Huntington), sabia-se apenas que era uma doença genética e agora sabe-se exatamente quais são os genes e portanto, podemos dizer que aquilo que se vai sabendo, passa para o domínio da neurologia, enquanto que os psiquiatras continuam a lidar com o desconhecido.
As pessoas já estão mais abertas a falar sobre saúde mental ou ainda é um estigma?
As pessoas ultimamente têm estado muito abertas a falar sobre saúde mental, a propósito da epidemia e por tudo e por nada, parece que todos são especialistas em saúde mental. No entanto, o estigma mantém-se, há muitas pessoas que continuam escondidas, muitos doentes que não vão para o hospital e cujas famílias escondem a doença, uma vez que, por vezes, os familiares são as pessoas mais estigmatizadas. O estigma baseia-se em coisas antigas que não têm nada que ver com o que se passa hoje e vem mais da ideia de que uma vida promíscua pode provocar uma doença mental.
Tal como explica no livro, em relação à sífilis…
Exatamente, as pessoas tinham sífilis e 30 ou 40 anos depois desenvolviam uma doença mental. Depois também se associou à questão dos incestos e a como as pessoas poderiam vir a ter problemas dissociativos no futuro quando eram violadas no seio da família. Tudo isso era muito escondido e portanto o estigma vem das próprias que têm depois medo de ter uma doença mental. Na maior parte das vezes, as doenças mentais não têm nada que ver com isso, portanto é algo que acabou mas o estigma continua. Eu acho que as pessoas que mais têm contribuído para acabar com o estigma são os próprios doentes que se assumem como doentes e não se importam de ir para programas de televisão, para vídeos ou de escrever livros sobre a sua doença e há muitas pessoas conhecidas que acabam por se chegar à frente e dizer “eu tenho esta doença, tive esta doença, sofri isto e fui tratado desta e daquela maneira”. A partilha contribui para acabar com o estigma. Eu conheço uma pessoa que fez uma estimulação cerebral profunda e que depois escreveu um livro a contar essa história, portanto é claro que isto ajuda. Um obsessivo que conhece a história de outro obsessivo sente finalmente que não está sozinho. E há muita gente conhecida, interessante e genial que sofre e sofreu com perturbações mentais, mas às escondidas.
Tanto que no livro até tem um parágrafo dedicado a “autistas de sucesso”…
Sim, os chamados “nerds” que se dedicam, por exemplo, à informática e depois quanto mais se dedicam a isso mais se isolam. Mas não só pessoas com autismo que podem ser geniais. Eu sigo pessoas há 40, 50 anos que tinham uma patologia grave no início e neste momento são super procurados devido às suas capacidades. Por exemplo, o matemático Georg Cantor, que inventou a teoria dos conjuntos, morreu num hospital psiquiátrico e o que ele escreveu só ficou conhecido depois de ele morrer.
O que quer dizer com: as pessoas têm falado de saúde mental “por tudo e por nada”? Está-se a “banalizar” o conceito de doença mental?
Às vezes as pessoas estão preocupadas com coisas que são absolutamente normais e basta nós lhes dizermos que aquele comportamento é “normal” para ficarem logo muito melhores. Há muita gente preocupada com a possibilidade de ter uma doença mental e que vai logo à internet ver. Depois, também existe um fator de influência ou de sugestão e quanto mais se lê sobre uma doença, maior é a probabilidade de começarmos a sentir essa doença, e o mesmo acontece com as doenças físicas. É isso que acontece com as pessoas hipocondríacas: vão à enciclopédia e começam a sentir aqueles sintomas todos, sendo que vão aperfeiçoando a sua pesquisa, mas sempre centradas nelas próprias. Isto acontece com as doenças mentais: as pessoas ficam preocupadas por qualquer coisinha que se passa, mesmo não sendo nada patológico, mas sim uma reação normal ao que acontece na vida.
Acredita que há mais pessoas com doenças mentais atualmente ou as pessoas estão simplesmente mais à vontade para dialogar acerca daquilo que podem achar que seja uma doença mental?
Penso que há doenças que podem, de facto, ver aumentar a sua prevalência. Por exemplo, com o aumento do desemprego é normal que os casos de depressão também aumentem. O clima social e as redes sociais também estão a perturbar muita gente e há muitas pessoas a ficarem paranoicas e zangadas. Toda esta mudança cultural a que estamos a assistir pode ser um fator que faça despertar uma doença mental porque as pessoas não sabem como lidar com isto. Depois, há certas patologias que, de um modo geral, não aumentam, como é o caso da esquizofrenia. A depressão tem aumentado muito, a perturbação bipolar tem critérios pouco rígidos, antes era chamada de psicose maníaco-depressiva e tinha critérios mais rígidos. Hoje basta uma pessoa num dia estar satisfeita e no outro estar um bocadinho triste que já tem uma perturbação bipolar, claro que não é assim. Portanto, os critérios permitiram aumentar o número de pessoas incluídas. Depois também temos de ter em conta o facto de as pessoas irem com mais facilidade ao médico e falarem, enquanto que antes escondiam, especialmente se a doença for menos estigmatizada.
Como é que uma pessoa consegue perceber se os seus sentimentos fazem parte de uma conjuntura dita normal ou se tem um transtorno psíquico?
Nós temos aquilo a que chamamos os diagnósticos, que são um conjunto de sintomas que podem ser definidos e através dos quais se pode estabelecer um diagnóstico. Mas ultimamente isso tem sido posto um pouco em causa porque não podemos ter doenças “à lista”, não temos um menu de doenças, sendo que há muitas que nem se conhecem e são coisas novas que aparecem. Cada pessoa é completamente diferente, embora as pessoas que têm essas perturbações tenham sintomas muito parecidos uns com os outros, por isso é que nós podemos classificar os obsessivos, os paranoicos, os deprimidos… Porque existe um conjunto de sintomas que nos permite dizer “podemos ir por aqui ou por ali” e perceber se há uma alteração química cerebral, de serotonina ou dopamina, orientando-nos para o melhor medicamento a utilizar. Uma pessoa, para ela própria fazer a distinção, tem de entender que, quando é uma doença, é uma coisa que cada vez se agrava mais. Por exemplo, uma pessoa tem falta de apetite, deixa de comer e entra em anorexia. Neste caso, a pessoa pode até conseguir reverter a situação sozinha ou não, pode emagrecer cada vez mais e chegar ao ponto de ser uma pessoa de 1,50m e ter 28 quilos. Obviamente que uma situação destas, que ameaça a própria vida, não se resolve sozinha, é necessária uma intervenção. Eu penso que o que tem que ver com isso é o comportamento resultante de uma perturbação mental ou psiquiátrica ser a causa da própria doença. Se uma pessoa com uma paranoia começa a desconfiar dos outros e se isola e deixa de falar, a paranoia aumenta. Depois, quanto mais a paranoia aumenta mais a pessoa se isola e isto é um círculo vicioso. Ou, dando outro exemplo, uma pessoa que tem uma fobia, tem um acidente de carro e não consegue conduzir. Faz um esforço, primeiro acompanhada, volta ao local, vai tentando conduzir e a certa altura já o consegue fazer. Por outro lado, existem pessoas que têm um acidente e nunca mais conduzem, sendo que, além disso, já nem conseguem fazer viagens de carro, nem viagens de comboio e depois deixam de conseguir sair de casa. Isto é uma doença e um psiquiatra tem de intervir.
Que transtornos psíquicos têm vindo a ser mais e menos comuns?
toda a gente fala da depressão e da ansiedade que neste momento é generalizada, mas isso também é um grande saco onde se pode meter muita coisa. Existem muitas formas de depressão, muitas formas de ansiedade e nem todas se tratam da mesma maneira. Da minha perspetiva as pessoas estão todas é a ficar um bocado paranoides e desconfiadas umas das outras.
No seu livro fala do uso do lítio nos doentes maníacos, uma vez que os acalmava. Esta é uma solução que é usada hoje em dia?
Sim, é dos medicamentos mais eficazes e foi descoberto até antes dos antipsicóticos mas demorou muito tempo a ser aprovado. Porquê? Porque o lítio é um sal e agora até é mais caro, mas antigamente era um sal baratíssimo, como o das cozinhas, muito parecido com o cloreto de sódio e o carbonato de cálcio. Como não dava dinheiro a ninguém, a indústria farmacêutica não patrocinou. Quando eu o comecei a usar, os psiquiatras mandavam fazê-lo nas farmácias em “hostiazinhas”: compravam carbonato de lítio, metiam dentro das hóstias, mediam aquilo e os doentes tomavam as hóstias, só depois é que apareceu em comprido. Como não dava grande lucro, a indústria farmacêutica nunca investiu, e para entrar nos Estados Unidos foi muito difícil. Foi preciso, à semelhança de muitas coisas que se passam agora, um médico ter enfrentado o Estado, que o estava a castigar por estar a usar o lítio que não tinha sido aprovado e ele disse em tribunal que usou o lítio porque estava a fazer o melhor que podia e sabia pelo doente. Neste momento, usa-se em todo o mundo e é um medicamento muito eficaz apesar de ser dos medicamentos mais simples possível. Mas isso tem que ver com o facto de as células cerebrais não comunicarem umas com as outras só através de neurotransmissores (como a serotonina, a melatonina, a dopamina) mas também através de iões, como é o caso do cálcio, do sódio, do magnésio e do potássio. O lítio é um sal igual aos outros, que substitui o sódio e o cálcio, é uma espécie de “pau para toda a obra”. É muito eficaz, embora com alguns cuidados, porque mais tarde pode dar patologias, ósseas, renais ou da tiroide, mas é extremamente eficaz. No entanto, também já vi pessoas cujo médico lhes disse que teria de tomar aquilo para toda a vida e ele apareceu-me aqui a tremer, com uma intoxicação. Portanto, é um medicamento eficaz sim, mas, como é óbvio, com o qual é necessário ter os devidos cuidados.
De que maneira é que a indústria farmacêutica é capaz de contribuir para o avanço ou para a estagnação do tratamento de certas doenças?
A indústria farmacêutica desenvolveu os psicofármacos e continua a desenvolver e fazer experiências e estudos, mas desde que deem lucro. Por exemplo, o anafranil, que é um medicamento extraordinário e ainda se usa muito, não tem nenhum laboratório que o patrocine e, por isso, não há investigação. Mas há vários medicamentos que, apesar de a indústria farmacêutica querer retirar, os psiquiatras não deixaram acabar, como é o caso do anafranil e do leponex. Já houve várias guerras entre médicos e a indústria farmacêutica porque os médicos não quiseram que deixassem de ser produzidos e isso traduz-se na existência de medicamentos “sem pai”, medicamentos “órfãos”, por assim dizer. E depois há laboratórios que se dedicam especificamente a estes medicamentos e acabam por fazer algumas modificações, mas só enquanto der lucro. Se der, muito bem, se não deixam de produzir. Hoje em dia já existem tantos psicofármacos, que é difícil ter lucro produzindo outro. Mas, por exemplo, a indústria farmacêutica produziu agora um antipsicótico – e os antipsicóticos são difíceis de receitar porque às vezes os doentes não os querem tomar porque acham que estão a ser envenenados – que funciona através de uma injeção, umas que são para dar de mês a mês e outras de três em três meses. E assim um psicótico pode-se tratar com quatro injeções por ano. E há ainda outros medicamentos novos que apareceram e já não são sedativos, já não dão aqueles sintomas de salivação e prisão dos músculos que os outros davam e portanto são muito melhores e a indústria farmacêutica de facto contribuiu para isso. Mas à custa do quê? Do preço dos medicamentos, porque são medicamentos muito caros.
Numa das suas crónicas, António Lobo Antunes escreveu: «Talvez o Miguel Bombarda tenha de facto sido um grande maluco mas eu fui muito mais doido ao acreditar nos psiquiatras […] nos antipsiquiatras, nos psicanalistas, nos psicólogos, nesse enxame de patetas enfáticos erguendo das cabeças dos outros pomposos castelos de cartas e teorias sem humor». Como vê essa crítica?
Eu também passei por tudo isso, aliás, eu sou contemporâneo do António Lobo Antunes e passei por tudo isso, não acreditei em tudo isso. Ele era muito cuidadoso e ia apanhando e conhecendo mas não acreditava nos castelos de areia que eles construíam. E o meu livro tem muito que ver com isso, a psiquiatria foi-se desenvolvendo, construindo, fez os seus diagnósticos e tudo isso mas tudo baseado em teorias erradas e, por vezes, muito enfáticas.
Portanto, até que ponto os psiquiatras e os psicanalistas não fazem nada mais do que erguer esses castelos de cartas na cabeça dos outros?
Penso que os psiquiatras e até os psicanalistas tentam ajudar as pessoas o melhor que sabem e nem sempre de uma maneira muito dogmática, os psicanalistas estão muito habituados a ver a pessoas para além do diagnóstico, é o papel deles. Os psiquiatras têm os seus diagnósticos e as suas teorias, eu passei por várias e essas teorias foram desabando mas sempre ficou alguma coisa, apesar de tudo. A teoria de que as doenças mentais se transmitiam de geração em geração não era verdade, não era por causa da hereditariedade mas sim do contacto e nisso se baseou a teoria da degenerescência, que estigmatizou as doenças mentais e deu origem ao apuramento da raça nazi. São teorias que caíram naturalmente mas que deixaram alguma coisa para trás e com as quais aprendemos. Agora não há muitas teorias, felizmente. A DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais) tentou ser a grande base teórica sem teoria nenhuma, mas também o empirismo ou a chamada medicina pela evidência é uma teoria. Há várias maneiras de investigar e tudo o que está por detrás delas é alguma teoria. A teoria positivista, por exemplo, está muito na base daquilo que faz agora, também em relação aos doentes de covid-19 e com umas coisas funciona bem e com outras funciona mal. Uma coisa é certa: a investigação da medicina pela evidência, além de ser empírica, é também um recurso das farmacêuticas porque essas investigações são patrocinadas, porque custam dinheiro, e as farmacêuticas patrocinam umas e não patrocinam outras, por isso é-lhes muito conveniente que exista essa teoria. Além disso, existe também a medicina pela experiência e eu acho que quase todos os médicos funcionam mais na base da medicina pela experiência do que na medicina pela evidência, medicina pela evidência é para os teóricos.
No seu último livro fala de Fragoso Mendes que, entre outras coisas, fundou a linha de apoio ao suicídio. Esta linha é formada por uma equipa de voluntários, que, apesar de terem formações, não são psiquiatras nem psicólogos. Acredita que isto é suficiente para alguém que se está a debater entre a vida e a morte?
Penso que sim, que pode ajudar sempre. Primeiro, por não ser um especialista. Porque imaginemos que era um psiquiatra, nesse caso poderia estar a dar uma consulta e existe uma diferença entre dar uma consulta e dar apoio para ir a uma consulta. Depois, por não ser um amigo. Porque, é claro que um amigo pode ajudar mas pode não conseguir ser suficientemente distante para ajudar. Eu penso que essas linhas têm a sua razão de ser, são usadas e têm algumas regras, tanto que, lá está, as pessoas têm formação para entrar e sabem o que devem dizer, o que devem perguntar e o que devem fazer. De um modo geral, as linhas de apoio são úteis.
Já na parte do “presente contínuo” do seu livro diz que, contrariamente àquilo que aconteceu até aos anos 90, não se estão a desenvolver novos psicofármacos. Isso significa que aqueles que existem já são os melhores que poderia haver?
No fundo é sempre por causa da indústria farmacêutica. Mas nós temos uma panóplia de medicamentos muito grande e muito diferentes entre si e podemos usar combinações e cada vez sabemos melhor qual é a interação entre cada um, que também não sabíamos antes. Mas essas interações temos de as conhecer não só para os medicamentos psiquiátricos como para os outros medicamentos, como por exemplo, até que ponto um medicamento interfere com a pílula, com um antibiótico, com tabaco. Existem muitos medicamentos diferentes e aqueles que se fazem ultimamente têm que ter uma maior gama de vantagens. De facto, têm aparecido alguns neurolépticos que são muito melhores em termos de efeitos secundários, mas são muito poucos. A clozapina Leponex, por exemplo, que eu estudei com o professor Fragoso Mendes, foi um medicamento que, na altura, foi um milagre no que toca à esquizofrenia. Aparece na revista “The Times” como “A cura para a esquizofrenia”. E as empresas farmacêuticas tentaram tirar o Leponex do mercado, porque era o único medicamento antipsicótico a ser usado e os outros iam todos desaparecendo. Aí houve uma guerra entre os psiquiatras e a indústria para que o Leponex não fosse retirado e eles até poderiam ser processados porque existiriam doentes que iam ficar muito mal. Mas a investigação à volta desses medicamentos, que são agora chamados antipsicóticos de segunda geração, demorou 20 anos até ser retomada. Ou seja, mais uma vez, é o dinheiro.
De que maneira é possível prevenir que alguém “se torne num doente mental”?
Não há nenhuma indicação simples, eu sei como é que uma pessoa se pode tornar num doente mental, agora como ficar saudável não sei. Até porque há pessoas “fora do contexto” que parecem doentes e são génios, são pessoas criativas. Aliás, há muitos doentes que se curam e ficam bem através da sua criatividade, fazendo desenhos, pinturas, estátuas, artesanato. Há uma coisa muito importante que é a flexibilidade e a capacidade de nos adaptarmos às outras pessoas, de empatizarmos, mas não é uma maneira certa. Claro que agora nós sabemos que há pessoas que estão em risco e são mais propícias para virem a desenvolver doenças mentais. Existem estudos que têm que ver com as pessoas em risco serem sujeitas a tratamentos precoces, com terapias ou medicamentos, mas feitos para evitar que fiquem doentes. As pessoas não começam a fazer isto desde novos, mas a partir de uma certa altura e chegados aí é importante atuar, antes que a doença se estabeleça.
Quem é que está em risco de desenvolver uma doença mental?
É difícil de dizer mas a hereditariedade, por exemplo, é um fator importante, tal como certas alterações genéticas que já se conhecem. Certas viroses à nascença podem facilitar o aparecimento da esquizofrenia. O facto de a pessoa ter alguma dificuldade em distinguir o eu dos outros, pensar muito em si, passar horas a ver-se ao espelho, ter ideias estranhas, ter dificuldades no sono, são tudo fatores de risco no caso das psicoses e da esquizofrenia. Sofrer perdas, viver num bairro onde se assiste a muita violência também pode levar à eclosão de doenças mentais mais tarde.
Que conhecimentos existem hoje relativamente ao uso de drogas recreativas (como a canábis, o LSD e a psilocibina – como fala no livro) para efeitos terapêuticos?
O professor Fragoso Mendes, que fez o doutoramento em Inglaterra, assistiu e contou-me que vários psiquiatras faziam uma espécie de “viagem contida” com LSD para tentarem compreender melhor os psicóticos. Mas também houve pessoas que começaram a descobrir que o LSD poderia ser bom para tratar perturbações obsessivas. Nessa altura houve também um movimento para proibir as drogas, que nunca teve um grande efeito mas algumas foram proibidas. E, portanto, o próprio uso terapêutico foi restringido. Neste momento, utiliza-se a morfina para cuidados terminais, mas esses outros medicamentos que podem ter algum efeito no cérebro e, eventualmente, tratar algumas patologias foram proibidos durante muito tempo. Ultimamente, tem havido movimentos para recuperar isso e um deles até tem um colega e amigo meu envolvido, que conseguiu pôr uma empresa no NASDAQ (mercado de ações norte-americano) por causa de um medicamento que é a ketamina. A ketamina, que já foi conhecida como a droga das violações, era um anestésico para cavalos mas que, nas pessoas, cria uma ilusão como se não houvesse passado nem houvesse futuro, as pessoas estão “na boa”, estão bem. Tem-se usado muito para as pessoas que pensam em suicidar-se e os antidepressivos ainda não atuaram porque, às vezes, quando uma pessoa começa a tomar antidepressivos, o risco de suicídio pode ser maior e esse medicamento é usado para fazer desaparecer as ideias suicidas, durante algum tempo pelo menos. Em Portugal, o medicamento já é utilizado por alguns psiquiatras mas exige que as pessoas estejam muito dentro dos efeitos e que seja muito controlado, daí a plataforma criada pelo Tiago Reis Marques, em que se podem inscrever os médicos que querem usar a ketamina e os médicos que já têm experiência com ketamina para dialogarem entre eles.
No caso da psiquiatria um medicamento que serve para uma pessoa pode não servir para outra? Não é como tomar um Ben-U-Ron para uma dor de cabeça.
Nem mesmo o Ben-U-Ron funciona em toda a gente. Em relação aos antidepressivos, uma das práticas comuns é usar o medicamento o tempo suficiente para ele fazer efeito, porque normalmente ele só faz efeito ao fim de 15 dias ou três semanas, e, se ele não fizer efeito ou se aumenta a dose ou se passa para outro. Esta é uma prática comum. Provavelmente, dentro de algum tempo será possível estudar os metabolismos, os genes e fazer uma série de análises para permitir saber quase à partida qual é o melhor antidepressivo.
Neste momento é um bocadinho à sorte, então?
Sim, depende da experiência de cada pessoa, de cada psiquiatra. Não é exatamente à sorte mas depende essencialmente do psiquiatra. Existem tantos antidepressivos que eu às vezes digo que bastava termos dois ou três e conhecê-los bem. Nós muitas vezes usamos os antidepressivos por causa dos seus efeitos secundários, uns dão sono, outros tiram o apetite, aumentam o apetite e é através disso que às vezes escolhemos o medicamento a utilizar.