A fala pública dos advogados e uma espécie de negacionismo


Cada qual tem direito ao seu negacionismo, mais ou menos convicto, mas, como escreveu Régio, “não, não vou por aí”.


Voltou à liça a questão de saber se os advogados podem e devem, ou não, falar publicamente sobre os seus processos mediatizados (falar sobre os dos outros é questão diversa). Volta e meia é assim, lá vem o tema, e depois passa, e um dia vem de novo. Pois eu acho que podem e devem; não de qualquer maneira, mas podem e devem, sendo que o “devem” se impõe e até modela (e dá muita força) ao “podem”. Noutro texto, escrevi que os defensores à outrance do silêncio público dos advogados nos (seus) casos mediatizados fazem-me lembrar aqueles cavalheiros que, em pleno século XXI, gostariam de ver as senhoras usar crinolina ou tournure. Esteticamente uma coisa e outra talvez fiquem muito bem, e talvez tais desejos – de silêncio ou de anquinhas – estejam de harmonia com as filosofias de tais defensores. O problema é que – e não falando agora de eventuais desarranjos das filosofias subjacentes – já não há espaço nem tempo para tais apegos ao passado. As cadeiras e a vida moderna não consentem crinolina nem tournure, do mesmo jeito que, em minha opinião, a mediatização não consente silêncios nem discrições absolutos. Pois, escrevi isso, e mantenho, aliás reforçadamente, e acrescento que o apego à teoria do silêncio me parece uma espécie de negacionismo, em que se não quer ver ou aceitar duas evidências, ou melhor, dois efeitos da mesma evidência: a mediatização de processos veio para ficar, goste-se ou não, e tem um enorme impacto, quer fora do processo, quer até, muitas vezes, dentro dele. Donde, é um imperativo de defesa tratar também disso, porque por isso também passa a defesa dos interesses do constituinte do advogado.

Isto, claro está, e como costumamos dizer na lide judiciária e judicial, salvo o devido respeito por opinião contrária. Mas sendo certo que sobre este assunto não pode deixar de haver opinião individual e institucional, pois é um assunto que está, não no olho do furacão (que é a sua parte mais calma), mas sim na sua parede. Além disso, é um tema que hoje está no âmago do sistema de justiça e da avaliação do que é e deve ser o exercício da advocacia forense, sobretudo a penal. É verdade que apenas poucos casos, no universo global, suscitam diretamente este tema, mas não é menos verdade que são, por um lado, casos paradigmáticos (e que testam a justiça e sobretudo formam as representações coletivas dela), e que, por outro lado, basta um caso para termos um problema sério, pois as garantias, a defesa e os direitos fundamentais não se medem em números macro, mas sempre, e necessariamente, em números micro – pelo menos enquanto quisermos ser um Estado de Direito Liberal e Democrático. O mesmo é dizer que, da mesma forma que os homens (perdão, as pessoas) não se medem aos palmos, os problemas mais sérios do processo penal não se medem em números.

Concretizemos um pouco, que é sempre uma boa forma de testar as proclamações teóricas, muitas vezes tão grandiloquentes quanto desajustadas à realidade. Após uma diligência judiciária, por exemplo em inquérito, que já foi mediatizada ainda antes de começar, e “martelada” de meia em meia hora enquanto durava no recato da sala onde decorria, com a afirmação repetida das suspeitas e das imputações, o advogado sai e apontam-lhe à cara os holofotes e os microfones, e fazem-lhe perguntas. Que deve ele fazer, para defesa da honra, do bom nome, et cetera, do seu constituinte, o qual, nos dias anteriores e nesse ou nas últimas horas, de meia em meia hora, desfilou pelos media carregado do rol de suspeitas e imputações que levaram àquela – já, helás, publicitada – diligência? Deve virar costas, sem mais, com holofotes e microfones em atropelo atrás de si, a insistir nas questões? Deve dizer que nada diz? Se o fizer, qual a interpretação da comunidade?

Creio que, excluindo porventura os cultores de uma visão estatutária antiga sobre o silêncio dos advogados, a comunidade não interpretará essa fuga e/ou esse silêncio a favor do seu cliente/constituinte. Aliás, talvez naquele momento, depois de “martelada” e “martelada” publicamente a suspeita, talvez já nem esteja disponível para interpretar seja o que for a favor do mesmo, pois é sabido que a imputação e a suspeita têm sempre mais picante e suscitam sempre mais apetite do que a defesa, da mesma forma que tem mais espaço mediático a mordidela do homem no cão do que o inverso. Especialmente se o alvo da suspeita e da imputação for um “grande” ou se o caso for “um daqueles”. Mas se o advogado der de costas ou de ombros ou se persistir no mutismo, aí seguramente é que nada virá a favor. Penso eu. E penso-o não em devaneio intelectual de gabinete, mas em pensamento feito de anos de experiência e de vivências deste tipo. Mesmo que desconfiemos do empirismo, há de valer tal experiência alguma coisa. Cada qual tem direito ao seu negacionismo, mais ou menos convicto, mas, como escreveu Régio, “não, não vou por aí”. (Continua.)

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