Gustavo Tato Borges. “Há mais pessoas a mentir aos delegados de saúde pública”

Gustavo Tato Borges. “Há mais pessoas a mentir aos delegados de saúde pública”


Presidente em exercício da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública defende necessidade de sensibilização da população para manter civismo e revisão de regras de isolamento. As perspectivas para o outono-inverno são melhores do que há um ano, mas a saúde pública continua sem reforços, critica Gustavo Tato Borges.


Que medidas considera necessário manter este outono-inverno e o que pode ser reavaliado?

Vai ser essencial manter o uso de máscara nos espaços interiores. Estamos a entrar na época de inverno e é uma garantia de que nos espaços fechados, com menor ventilação, continuamos a ter essa medida de proteção individual. Creio que também será fundamental manter algum período de isolamento e rastreios regulares em alguns contextos e que as pessoas mantenham a noção da importância de continuar a ligar para a linha SNS24 se tiverem sintomas para serem encaminhadas para fazer um teste. Penso que estas serão as medidas bases do inverno. Será muito uma questão de civismo e de reconhecimento individual do nosso papel enquanto cidadãos para a proteção individual.

Não voltar ao registo em que se vai trabalhar doente?

Sim ou dar o ben-u-ron à criança durante a noite para ela poder ir para a escola no dia seguinte porque já sabemos que vai ter febre. Sabemos que isso vai levar a um transtorno enorme para aquela turma e para os pais daquelas crianças todas. O nosso comportamento será fundamental, perceber que temos de protegermo-nos e proteger a comunidade. Quanto mais cuidado tivermos, menos impacto terá a pandemia e o inverno na nossa saúde e no nosso dia-a-dia. Em termos de medidas, defendemos que terá de haver uma diferenciação nas regras de isolamento [após contacto com um infetado] entre as pessoas que estão vacinadas e as que não estão. Cada vez faz menos sentido que continuem a ficar 14 dias fechados em casa.

O que seria adequado?

Neste momento, com quase 85% das pessoas vacinadas, já não é descabido que uma pessoa completamente vacinada possa não fazer isolamento e que faça por exemplo dois testes, um logo que seja possível e outro no que seria o meio do internamento, ao oitavo ou nono dia, garantindo assim o rastreio destas pessoas que tiveram um contacto de alto risco com alguém infetado, sabendo que mesmo estando vacinadas existe o risco de infeção mas é menor. Penso que poderíamos partir para aqui, se não terá de haver um isolamento mais curto. Outra coisa que pode avançar agora é o fim das restrições em espaços de acesso público, sejam restaurantes, espaços culturais, estádios de futebol, locais de culto.

Nas igrejas e salas de espetáculo, por exemplo, manter-se ia a distância entre lugares?

É sempre vantajoso manter os dois metros de distância e julgo que as pessoas continuarão a ter essa consciência de não ficar demasiado perto, mas com 85% de toda a população vacinada e tendo em conta que temos 10% a 11% de pessoas com menos de 12 anos, estamos no limite de não poder vacinar mais ninguém. Com toda a população vacinada, temos uma proteção acrescida e portanto não será necessário manter dois lugares de distância. Se calhar nesta fase de inverno manter um ligeiro espaçamento entre cada família. Os únicos locais onde acredito que se possam manter algumas restrições à lotação são aqueles locais onde é praticamente impossível manter medidas de distanciamento ou onde há atividade física intensa, por exemplo aulas de grupo nos ginásios e as discotecas e nos bares onde é muito comum circular de copo na mão e há contactos muito próximos.

Concorda com a reabertura de discotecas?

Não podemos continuar a exigir mundos e fundos à sociedade. Com a população toda a vacinada, a saber que medidas deve usar no seu dia-a-dia, não há justificação para manter medidas restritivas desse género. Até porque há uma tendência decrescente e estamos a caminhar para o que será uma incidência normal. As discotecas vão ter de reabrir, se calhar o outono/inverno não seria a altura ideal mas não se pode pedir para esperar até janeiro ou até à primavera. As condições estão criadas agora para ter um inverno relativamente normal desde que as pessoas mantenham alguns cuidados no dia-a-dia. As discotecas vão voltar a reabrir, as pessoas vão voltar a conviver mas provavelmente não poderão ter a lotação a 100%.

Manteria o uso de certificados covid-19 nesses casos?

Nesta altura diria que já não faz sentido pedir o certificado para fazer quase seja o que for. Com 85% da população daqui a duas semanas completamente vacinadas, o risco de entrar alguém não vacinado é cada vez menor, não terá grande impacto. Terá mais impacto talvez a medição da temperatura ou um pequeno inquérito de sintomas à entrada para garantir que a pessoa não se tem sentido mal nos últimos tempos.

Havendo melhores perspetivas para este inverno, as equipas de saúde pública tiveram o reforço que pediam?

As equipas de saúde pública foram reforçadas numa altura em que estávamos com um aumento de casos com profissionais não da saúde pública, técnicos ambientais, e com contratos que eram a longo prazo, e com estudantes e internos. Neste momento as unidades de saúde pública não têm estes reforços e estão com os recursos habituais, que são poucos para fazer face a tudo o que é preciso desenvolver na normalidade do dia-a-dia, quanto mais no tempo de pandemia ou numa época de gripe que será muito superior à que vivemos no início deste ano devido às regras que foram implementadas e que agora foram levantadas. Portanto claramente são necessários mais recursos profissionais, mais recursos técnicos, computadores, ligações à internet, telefones, material que precisamos para fazer trabalho no exterior e não temos em condições. O sistema de informação está prometido mas continua sem sair do papel. Há muitos recursos que a saúde pública continua a pedir, que não chegaram e que não há perspetivas de que cheguem. No Plano de Recuperação e Resiliência não se encontra uma referência à saúde pública e encontra-se uma referência ligeira a cuidados primários. Há um grupo de trabalho que foi recentemente nomeado pela senhora ministra para repensar os cuidados de saúde primários e não tem um único médico de saúde pública. A pergunta que se coloca agora é onde é que a senhora ministra nos quer colocar?

Nas autarquias?

Falou-se disso há uns anos, depois veio a pandemia de gripe A e percebeu-se a importância da saúde pública. Mas continuamos sem saber e não existe qualquer aproximação da tutela. Quem está a governar-nos continua a pensar que a saúde publica está bem e aguenta. Aguentou-se porque tivemos profissionais que deram o litro, ultrapassaram todas as incapacidades mas que estão a precisar de descanso e retomar o trabalho normal e não existe essa perspetiva.

Em relação à covid-19, as perspetivas são, no entanto, de um inverno melhor que o último?

Sim, penso que este inverno será normal para o tranquilo, até porque as pessoas ainda continuam com cuidados. Aquilo que poderá vir a piorar a situação é, com o relaxamento de medidas, o aparecimento de outras doenças respiratórias e podermos ter uma tempestade de covid, gripe, isolamentos e falta de recursos humanos, que pode levar a uma nova sobrecarga do SNS. O SNS assenta em duas áreas para garantir resposta: a medicina geral e familiar e a saúde pública. Quando estas duas áreas não conseguem cumprir o seu papel, há uma sobrecarga ao nível hospitalar.

O número de diagnósticos tem estado a baixar. Chega-lhe alguma preocupação do terreno?

Aquilo de que nos estamos a aperceber é que as pessoas estão a mentir aos delegados de saúde pública outra vez e estão a ocultar contactos de risco, a contar a história de forma enviesada, de forma a não colocar os outros em isolamento ou não dar a atender que não cumpriram as regras. Há muitas reclamações e pessoas a mostrar o seu desagrado por terem de ficar em isolamento, umas de uma forma mais simpática e outras menos. Estamos a prever que durante o inverno vai haver muita gente que não vai querer sequer falar com o seu médico de família e com o SNS24 para os sintomas e encontrará maneira de trabalhar à distância, mas se assim for é o menos.

E é nesse sentido que defende que é preciso haver esse apelo ao civismo e ao mesmo tempo ajustar as regras do isolamento?

Além do civismo diria que é preciso reforçar o sentido de proteção em relação aos outros. As pessoas continuam a olhar para esta questão de indicar um contacto ao delegado de saúde como uma denuncia. Às vezes dizem “aquele denunciou-me”. As pessoas não estão a denunciar ninguém, estão a indicar com quem estiveram com a preocupação de que o outro pode ficar doente. Temos de passar desta imagem do “a culpa é dele, pôs-me em isolamento”, para o reconhecimento da importância que temos na saúde dos outros. A revisão das regras de isolamento poderia ajudar, sabendo sempre que há pessoas que não irão colaborar. Se as pessoas puderem ter uma perspetiva de que estando vacinadas e se as condições permitirem não terão de fazer isolamento ou farão um isolamento mais pequeno pode dar-nos a possibilidade de rastrear um maior numero de pessoas. E aqui há outro ponto que eventualmente poderá mudar: sabemos que o teste PCR é um bom teste para identificação do vírus, mas importa perceber agora até que ponto será um bom teste de rastreio para uma população totalmente vacinada e continuar a identificar infetados em vez de olharmos sobretudo para as pessoas que estão doentes com sintomas.

Qual seria a solução?

Talvez apostar no uso de testes de antigénio, que detetam de uma carga viral que corresponde a uma capacidade infecciosa, possa ser mais adequado, passando a usar os testes PCR em situações mais específicas em que exista um maior risco. Os testes de antigénio seriam usados para fazer o diagnóstico de pessoas que estão doentes.