O regresso a uma normalidade diferente e perigosa


Não aproveitámos o tempo de paragem para fazer certas coisas que são fundamentais e estamos a pôr em causa a imagem de país seguro.


1. No domingo, uma rádio noticiava que, esta semana, regressam os grandes cruzeiros a Lisboa. Serão doze ao todo. A esse propósito, a organização ambientalista Zero lembrou que os cruzeiros são uma fonte de poluição brutal. De facto, os motores daqueles gigantes ficam sempre ligados e libertam tantos ou mais gazes quanto a cidade. A paragem gerada pela pandemia não foi aproveitada para se estabelecer uma ligação elétrica aos grandes navios, o que teria diminuído largamente as emissões. Lá está uma oportunidade perdida e uma prova de incompetência ambiental. Outra, também ambiental e de segurança, é a circunstância de não se ter feito o ramal de ligação de combustível ao aeroporto da Portela. Gradualmente, iremos descobrindo oportunidades perdidas no tempo de paragem, mostrando que os nossos poderes públicos e privados são medíocres em termos de planeamento. O regresso à normalidade vai ocorrendo com óbvias adaptações por causa de uma pandemia que se mantém perigosa e imprevisível. As próximas semanas serão decisivas do ponto de vista sanitário. Politicamente, sabemos que serão dominadas por uma vasta campanha de propaganda governativa aproveitando o êxito da vacinação, tendo em conta dois grandes objetivos: as eleições autárquicas que Costa quer ganhar à força de ‘‘bazucadas’’ e a aprovação do Orçamento do Estado que irá parecer uma coisa e ser outra, pois há de conter dentro de si a eterna dualidade de dar com uma mão e tirar com a outra. Para o cidadão da classe média, este é um ciclo infernal e repetitivo que passa sempre pela diminuição do seu poder de compra, face à subida sistemática dos preços. Por mais que o Governo diga que a inflação é pequena (depende do que se inclui no pacote para a medir), a verdade é que os preços estão a subir muito. Os combustíveis estão numa escalada permanente. O KW de eletricidade triplicou. Um frasco de salsichas Hot-Dog (sim, de salsichas, caro leitor!) da marca branca da maior rede de distribuição nacional passou em pouco mais de um ano de 1,19 euro para 1,79. O pacote de café subiu 30 cêntimos. As comissões bancárias atingem níveis de roubo, mas despedem-se milhares de bancários que vão pesar nas contas públicas lá mais para a frente. De forma gradual tudo foi subindo. Hoje, em Portugal, a alimentação em supermercado custa o mesmo que na Alemanha e mais do que em Espanha, com a brutal diferença de ordenados em nosso desfavor. Diariamente, verificamos que os prestadores de saúde privados se recusam a fazer cada vez mais exames passados pelo SNS, não havendo oferta do Estado. Quem quiser paga ou tem de ter seguro. É o caso de certas ressonâncias. Destas coisas comezinhas os políticos não falam. A maioria dos portugueses sofre com elas e vive sem ver atualizadas as suas pensões. Quem é da classe média e se reforma nunca mais vê a sua aumentada. Se viver muito tempo, acabará irremediavelmente pobre, com o seu provento roído pela inflação. Os apoios são dirigidos sistematicamente aos mesmos. Percebe-se a indignação daqueles que, ao receberem mil euros por mês, acabam por ter menos materialmente do que outros que acedem a ajudas diversas, começando muitas vezes pela habitação de que não cuidam e que acham que lhes é devida para sempre. É uma política recorrente e injusta que vem do salazarismo. Não é raro venderem-se vivendas e apartamentos sociais atribuídos pelo Estado por muitos milhares de euros. No sentido inverso, o Estado anda agora a recomprar casas que vendeu há uns anos a inquilinos. A habitação social e rendas acessíveis são uma necessidade. Mas não devem ser uma concessão para a vida toda e transmissível. Devem durar apenas enquanto há efetiva necessidade, para depois dar lugar a outros, ou atualizar-se as rendas para um valor lógico. É assim em países civilizados e assim deveria ser por cá. Neste regresso a uma relativa normalidade, mantêm-se velhos problemas e verifica-se a existência de alguma resistência em voltar à rotina laboral por parte de alguns. A questão é notória em empresas de grande dimensão. Os serviços de atendimento ao público rebentam, entretanto, pelas costuras, mais pela falta de zelo e de operacionalidade do que pela carência de meios humanos, que nunca são suficientes na ótica sindical. Há coisas que nunca mudam e são precisamente essas que mais nos atrasam.

2. O Presidente Sampaio morreu, deixando um legado de coragem democrática, independência, determinação, serenidade, sobriedade e intensa atividade e obra política, antes e depois do 25 de Abril. As exéquias de Estado revestiram-se de grande dignidade, especialmente na tocante cerimónia nos claustros dos Jerónimos. Jorge Sampaio era merecedor dessa homenagem e deverá ser lembrado como um grande português. Muito se disse e escreveu sobre ele e, neste espaço, só se poderiam repetir elogios merecidos. Por isso, talvez também se possa abordar o seu desaparecimento analisando outro aspeto: o das escolhas presidenciais dos portugueses. Há que reconhecer que somos um povo que tem mérito. Os Presidentes eleitos foram referências de que nos podemos orgulhar, podendo naturalmente discordar-se aqui ou ali de certas decisões ou até de traços de caráter. Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa (que até ao presente tem mostrado não destoar dos seus antecessores) representaram-nos ou representam-nos com dignidade, interna e externamente. Honra lhes seja feita e honra seja feita também ao povo que os elegeu. Sem ser necessário recorrer a exemplos recentes como Trump e Bolsonaro, basta comparar, por exemplo, o perfil dos nossos chefes de Estado democráticos com os que os franceses escolheram sensivelmente no mesmo período. É um exercício simultaneamente dramático e hilariante. Não recuando ao nunca esclarecido perfil de Pompidou e nada havendo a assinalar de especial sobre Giscard d’Estaing, é um facto que não tivemos de nos sujeitar a casos de corrupção como os de Chirac, a passados obscuros como o de Mitterrand, a financiamentos ilegais como os de Sarkozy, a palermas com comportamentos de adolescente como Hollande ou a erráticos como Macron. Os portugueses votam sempre com uma enorme dose de bom senso, no caso dos Presidentes. Já para outros cargos a história e a conversa são bem diferentes.

3. A globalização faz vítimas inesperadas. A Partex, que a Gulbenkian despachou para um grupo tailandês por 600 milhões de euros (aplicar em energias limpas) deixou de ter a sede em Lisboa, o que não era suposto. Ironia do destino, a primeira vítima da decisão foi Costa Silva, o homem que desenhou o plano de recuperação e resiliência que dá acesso à bazuca e que resolve tudo mais alguma coisa. Com ele saem trinta colaboradores, altamente qualificados. Uma lástima!

4. Na semana passada soube-se que vários altos dirigentes nacionais, designadamente o Presidente da República, estiveram expostos a um cidadão iraquiano membro do Daesh e suspeito de ter praticado e preparado atos terroristas, o que levou à sua detenção e à de um seu irmão, potencialmente mais perigoso. No sábado, Ferro Rodrigues foi gravemente ameaçado e insultado por centenas de negacionistas (de esquerda ou de direita, tanto faz) mesmo ao lado do parlamento, de que é Presidente. São situações inaceitáveis. Há responsabilidades políticas e operacionais a assumir. Há que remover os incompetentes de ambos os lados (Cabrita, Magina e quem mais for). Começa a ficar desfeita a ideia de que somos um país seguro, o que tem sido uma mais valia económica. O Ministério Público abriu o tradicional inquérito da semana, em vez de prender quem apela à violência de forma desabrida e terrorista.

Escreve à quarta-feira