A revisão do Código de Processo Penal


A confissão tem que ser prévia ao acordo, e embora se preveja que, na falta de acordo, a confissão não pode ser utilizada como prova, a verdade é que o julgamento é feito pelo mesmo juiz que negoceia a confissão.


No passado dia 25 de Junho foi discutida no Parlamento a proposta de lei do Governo nº 90/XIV/2, que altera o Código Penal, o Código de Processo Penal e leis conexas, implementando medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, tendo essa proposta baixado à Comissão de Assuntos Constitucionais sem votação. É assim previsível que brevemente o Parlamento venha novamente a discutir toda uma série de medidas que, a nosso ver, são extremamente prejudiciais aos Estado de Direito e aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, não trazendo qualquer vantagem no combate à corrupção, antes pelo contrário.

A situação mais grave proposta nesta lei diz respeito ao acordo sobre a pena aplicável, que agora passa a ser previsto no artigo 313º-A do Código de Processo Penal, permitindo ao Tribunal acordar com o Ministério Público e o arguido a pena aplicável no processo, mesmo em caso de concurso de infrações, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido. Se o limite máximo da pena aplicável não for superior a cinco anos de prisão, esse acordo permite mesmo a possibilidade de substituir a pena de prisão por pena não privativa da liberdade ou até a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, caso venha a ser concretamente determinada pena de prisão efectiva não superior a dois anos. Temos assim que os tribunais passam a negociar com os arguidos, não só as penas a que eles podem ser sujeitos, mas inclusivamente as condições do seu cumprimento, garantindo-lhes que ficam fora da prisão. Seguramente que não é esta a melhor forma de se garantir o respeito pelas leis e a punição dos infractores.

Salienta-se que para se obter este acordo é necessária a confissão livre, integral e sem reservas do arguido e a concordância do Ministério Público e do arguido, enquanto que o assistente (a vítima do crime) é apenas ouvido sobre o acordo, não se exigindo assim a sua concordância. Nos casos de crimes contra a paz e a humanidade, crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção, em que qualquer pessoa se pode constituir como assistente, nem sequer essa pessoa é ouvida sobre o acordo. É difícil assistir a maior desconsideração pela figura do assistente no nosso processo penal, nem sequer lhe dando a possibilidade de impedir a celebração de acordos em crimes de que este foi vítima ou sequer de ser ouvido sobre os acordos em crimes de grande gravidade, que justificam a intervenção dos cidadãos comuns como assistentes em processo penal.

Para além disso, verifica-se que o acordo sobre a sentença passa a implicar a renúncia à produção de prova e à consideração dos factos como provados. É manifesto que tal situação constitui uma grave violação dos direitos do arguido, dado que não há garantias relativas ao carácter livre da sua confissão, uma vez que a mesma é sempre realizada sobre a promessa de uma concreta pena, que até pode ser não privativa da liberdade, e com a ameaça de uma pena maior, que pode ser detentiva, se não confessar. Desta forma se converte o nosso processo penal de um processo penal de julgamentos num processo penal de acordos, à semelhança do que sucede no Direito Norte-Americano. No entanto, a nossa Constituição considera, no seu artigo 32º, nº8, nulas todas as provas obtidas mediante coacção, sendo claramente estas propostas de acordo uma forma de coacção sobre os arguidos. A norma é, por isso, claramente inconstitucional na medida em que admite uma condenação penal com dispensa de prova nestas condições.

Finalmente, salienta-se que a confissão tem que ser prévia ao acordo, e embora se preveja que, na falta de acordo, a confissão não pode ser utilizada como prova, a verdade é que o julgamento é feito pelo mesmo juiz que negoceia a confissão. Ora, é manifesto que o juiz deixa de ter condições de imparcialidade para realizar o julgamento depois de ter participado numa negociação frustrada para um acordo sobre a sua sentença.

Estas propostas são assim muito graves para a nossa justiça penal e para os direitos dos arguidos e das vítimas, devendo por isso merecer a mais firme reprovação de todos aqueles que têm defendido o Estado de Direito no nosso país.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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