14 de setembro de 1963. O estranho caso das crianças trocadas

14 de setembro de 1963. O estranho caso das crianças trocadas


No mesmo dia em que Vitorina deu à luz um par de gémeos, Ausenda foi mãe de uma menina. Depois começaram as confusões – já ninguém sabia quem era filho de quem.


A srª D. Vitorina Augusta de Oliveira Ramos, de 24 anos, casada com o sr. Carlos Alberto dos Santos Gomes, ajudante de cozinheiro na companhia de Seguros A Mundial, residente na Calçada da Bica Grande, 22, 4º, esteve alguns dias internada na Maternidade Magalhães Coutinho (hoje em dia Hospital Dona Estefânea) onde, no dia 18 de Junho, deu alegremente à luz um par de gémeos, um do sexo feminino e outro do sexo masculino, tendo recebido, quase de imediato, a terrível notícia que o segundo não resistira ao parto e morrera à nascença. Com fortes problemas respiratórios, a menina foi obrigada a recorrer a uma incubadora, até porque nascera com o peso muito abaixo do normal. D. Vitorina Augusta de Oliveira Ramos manteve-se, igualmente, aos cuidados do hospital, acompanhando o estado da filha diariamente. A criança foi, entretanto, afixada nas resmas de papéis do posto do Registo Civil com o nome de Maria Celeste Ramos Gomes, filha do casal supracitado.

Tudo parecia ir correr dentro da normalidade para a jovem família quando, na altura de receber alta, em vez de lhe entregarem a sua bebé para poder, finalmente, ir para casa com ela, Vitorina percebeu que lhe tinha sido atirado para o colo um menino. Depois da surpresa completa, seguiu-se um escarcéu. De nervos em franja por tudo o que passara nos dias anteriores, Vitorina Augusta mandou chamar desde logo a enfermeira-chefe para que lhe fosse explicado, tim-tim por tim-tim, o que acontecera para que a troca tivesse acontecido. Revelando uma frieza notável, a enfermeira-chefe deu-lhe outra visão dos acontecimentos que não correspondia à inicial: afinal, os gémeos eram dois meninos e não um menino e uma menina; ali estava, pronto do recobro, o garotinho sobrevivo. Quanto à questão do registo, aventou que o mais assisado era dirigir-se ao Registo Civil e trocar as identidades. Acompanhada pelo marido, Carlos Alberto, a jovem mãe entrou numa crise de histerismo absolutamente compreensível.

Ausenda das Neves, domiciliada numa pensão da Rua da Rosa, é a próxima personagem a entrar nesta estranha trama. No mesmo dia em que Vitorina fora mãe, Ausenda trouxera ao mundo um menino, registado de seguida com o nome de Gabriel e filho de pai incógnito. Ausenda já saíra, entretanto, da maternidade. Não tardara a perceber que o seu Gabriel era, na verdade, uma menina.

Lógico ou talvez não Esta é a altura dos desenvolvimentos em que o desfecho parece tão lógico que o caso pode ser encerrado. Mas não foi bem assim. Investigados os registos médicos da maternidade, chegou-se à conclusão que, de facto, foram dados como nascituros dois meninos gémeos por parte de Vitorina Augusta, o que adensava o mistério e não explicava de forma alguma porque Ausenda levara consigo um menina, convencida de que era um menino que tinha nos braços. Concluiu-se igualmente que nesse dia 18 de julho haviam decorrido cinco partos simultâneos.

Durante quase dois meses o assunto foi investigado a fundo. Chegou-se à conclusão – ligeiramente conveniente – de que não houvera qualquer erro levado a cabo nem pelo clínico nem pela parteira de serviço. Se houvesse responsabilidade a atribuir seria aos serviços de registo. O caso atingiu um ponto que conduziu a nova investigação, desta feita realizada pelos Serviços de Sangue do Hospital de São José, de forma a poderem afirmar-se com exactidão as ligações parentais das crianças.

O mistério manteve-se. E as culpas voltaram a ser atiradas para cima dos ombros dos serviços de baptismo. Não havia, para a direcção do Hospital Magalhães Coutinho quaisquer dúvidas que os filhos de Vitorina e Carlos Alberto eram ambos do sexo masculino e que um deles morrera devido à fragilidade física. O irmão mantivera-se na incubadora e a os directores da instituição ignoravam por completo a que propósito havia ele ter sido registado com o nome de Maria Celeste. Só podia ser um erro grosseiro de quem procedera ao registo, tendo-o trocado por outro qualquer. Quanto a Gabriel, a decisão era a mesma. Ausenda dera à luz uma menina e, portanto, estava certo que tivesse levado uma menina consigo para casa. Ninguém conseguia explicar o facto de a mãe estar convencida de que parira um rapaz. E também ninguém parecia muito preocupado com o assunto. As crianças tinham nascido, tinham sido cuidadas com todo o carinho à nascença, e entregues aos respectivos pais para que a vida continuasse e para que a Maternidade Magalhães Coutinho se mantivesse como a indústria de nascimentos que sempre fora até aí.

Ao tempo, o estranho caso das crianças trocadas abalou os leitores de jornais ávidos por problemas intrincados de resolver. Depois, com o tempo, o interesse abrandou. O velho anexim foi calando as vozes mais indignadas –– o que não tem remédio, remediado está. Para Vitorina Ramos não havia dúvidas: tinha tido uma menina e o rapazinho não era dela. Para Ausenda, idem: Gabriel nascera menina e nem sabia ao certo de onde surgira aquele nome que nada lhe dizia. Entretanto, novas crianças continuavam a nascer.