“Foram registadas sete queixas, mas muitas outras ficaram por registar e não fazem parte da estatística”, começa por explicar Sofia (nome fictício), cidadã que assistiu de perto ao caos vivido nas Lojas do Cidadão desde o regresso ao atendimento presencial e viu um funcionário público ser agredido. “Por mim, teria sido motivo suficiente para chamar e apresentar queixa as/junto das autoridades uma vez que se tratou de uma agressão física e podia até ter existido risco grave para a saúde do lesado. No entanto, as pessoas responsáveis pela Loja deixaram ao critério do funcionário agredido apresentar queixa em nome individual, não tendo existido qualquer apoio por parte da entidade”, avança a mulher. “Uma vez que não se oficializou a queixa não me cabe expor detalhes”.
Sofia refere-se ao facto de, na passada sexta-feira, o Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado ter explicado à TSF que, desde o dia 1 de setembro, foram registadas “sete agressões físicas”, assim como outras menos graves e também de cariz verbal, que ocorrem todos os dias. Segundo o sindicato, estão em falta, nos mapas de pessoal dos serviços, 1756 profissionais. Se este número de trabalhadores existisse, permitiria 50 mil atendimentos diários a mais, mesmo tendo em conta a média de aposentações que ocorrem mensalmente: entre dez e 15.
Mariana, igualmente com receio de divulgar a identidade e a região do país em que presenciou as situações que relatou ao i, lembra que “as pessoas estavam em fila para entrar. Já estava muita gente dentro do centro de saúde e a funcionária disse para esperarmos um pouco. Um jovem que estava com a mulher e um bebé no carrinho ficou furioso, reagiu muito mal, disse que não ia ficar na rua com o bebé” e, logo de seguida, insultou-a, chamando-lhe “estúpida de merda”.
“Depois, alegou prioridade por causa da criança e fez um telefonema, acho que à enfermeira que iria ver o bebé e esta veio buscá-los à porta, passando por cima da ordem normal que é dar o nome na secretaria. A funcionária viu-me mais tarde, à espera de consulta e, porque nos conhecemos, desabafou que tem sido muito mal tratada ao tentar fazer cumprir as regras” e, naquele momento, deu o exemplo de outro cidadão que, à frente do filho, “lhe perguntou ‘se ela lhe queria medir a temperatura no cu”. Por este motivo, confessou “que está a ser tão desgastante e está a ficar tão afetada que já teve de ir ao médico e ficou de baixa durante um mês”.
No início do mês, os serviços públicos passaram a funcionar sem marcação prévia, segundo as novas regras no âmbito da covid-19 aprovadas no último Conselho de Ministros, pois havia sido anunciado que as medidas seriam alteradas assim que fosse atingido o patamar de 70% da população com vacinação completa e foram então atingidos os 83%. Mas será que os funcionários públicos somente são maltratados desde o início da pandemia?
Uma realidade antiga “Há uns anos, era assistente operacional num mercado municipal, na Amadora, e nessa altura, aos sábados, fazíamos a cobrança monetária aos vendedores. Frutaria, peixaria, lojas e havia venda ambulante e também cobrávamos o pedaço de terreno que estava identificado por números e ‘alugado’ a um feirante”, recorda Ana Teixeira, de 40 anos, que exerceu estas funções por volta dos 25. “A câmara começou a cobrar as mensalidades atrasadas e os vendedores de etnia cigana que não pagavam foram notificados a pagar ou ficariam sem lugar de venda”.
Contudo, esta decisão não trouxe bons resultados. “Íamos sempre duas colegas mulheres fazer a cobrança, por causa dos trocos, e houve um dia que houve um vendedor que não quis pagar. Assim que chegámos ao escritório, falámos com o nosso chefe, o fiel de mercado, e nem acabámos a conversa, pois a pessoa entrou no escritório, virou-se contra ele, derrubou mesas, pegou no telefone, deitou-o ao chão e estava prestes a pegar num agrafador que tínhamos na secretária e a atirá-lo contra o meu chefe, mas meti-me”.
Ana não hesitou e defendeu o chefe e tirou o agrafador da secretária. Mas, nos instantes seguintes, perdeu a coragem por temer as consequências dos seus atos. ”Peguei na chave do nosso refeitório e tranquei-me lá. O meu chefe foi pedir ajuda e a polícia chegou, pois havia gritos e, no mercado, todos tentaram chamar as autoridades. Enquanto isso, a pessoa estava perto e eu lá dentro e as minhas colegas trancadas no vestiário. Assim que as autoridades chegaram, a pessoa foi embora, saímos dos locais onde estávamos e arrumámos o escritório”, estando estas três divisões distintas no mesmo piso do edifício.
O chefe de Ana pediu-lhe que nunca mais enfrentasse nenhum dos vendedores, pois tinha sido assistente como ela e, devido às cobranças, foi alvejado numa perna. “A polícia também me disse que não o devia ter feito e o que me valeu foi que a pessoa me respeitou como mulher e não me fez mal fisicamente. Durante alguns meses, tivemos polícia à porta do escritório e íamos acompanhadas por um agente fazer as cobranças”. Porém, a mulher vivia outro inferno: era agredida verbalmente, todos os dias, por ter excesso de peso. “Era obesa e os vendedores insultavam-me muito”, diz.
Já em 2013, o i, no artigo “O inferno dos funcionários públicos. Insultos, agressões e ameaças de morte”, narrou histórias de rabalhadores da Segurança Social, do Fisco, dos tribunais, assistentes sociais e médicos que se queixavam de agressões diárias, encaradas como “culpa da crise” financeira que abalou o país entre os anos de 2010 e 2014, sendo que, no decorrer desse período, os salários no setor público tiveram uma redução acentuada. O i revelou, à época, quatro histórias de funcionários públicos ameaçados e perseguidos.
Em janeiro, a Ordem dos Advogados (OA) publicou, no seu site oficial, na área dos contributos para os processos legislativos, a nota intitulada de “Tipificação de crime público para as agressões cometidas contra qualquer funcionário público”. “Decorre de todo o exposto que, não vemos necessidade, ou vantagem, no que se refere à tipificação do crime de ofensa à integridade física simples praticado contra funcionário público, como crime de natureza pública, tanto mais que, como também se disse, não existem dados que permitam aferir do aumento extraordinário deste tipo de criminalidade, bem pelo contrário”, apontou no documento em que, baseando-se no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), referente ao ano de 2019, reconheceu que “Portugal registou um ligeiro aumento da criminalidade geral e da criminalidade violenta e grave”, notando que a primeira havia registado mais 2.391 participações e, a segunda, mais 417. “Apesar deste ligeiro aumento, Portugal continua a registar baixos índices de criminalidade”.
Por meio da análise do RASI relativo a 2020, veiculado em março, é possível constatar que a criminalidade violenta e grave registou uma diminuição de 13,4% no ano passado em relação a 2019, passando das 14.398 participações para as 12.469. A criminalidade geral registou menos 36.817 queixas às forças e serviços de segurança no ano passado em relação a 2019, caindo das 335.614 para 298.797, o que corresponde à diminuição de 11%.
É importante apontar que os roubos a farmácias, residências, edifícios comerciais ou industriais, bombas de gasolina e viaturas, a extorsão e os homicídios são os crimes violentos e graves que mais subiram em 2020, o ano em que o novo coronavírus dominou o mundo, e, na criminalidade geral, subiram os crimes de desobediência, burla informática e nas comunicações, burla de fraude bancária e lenocínio e pornografia de menores. Lendo o mesmo, compreende-se que o furto por carteirista, ofensas à integridade física – que abarcam os crimes contra funcionários públicos, quando estes são de cariz físico e não somente verbal –, contrafação, falsificação de moeda e passagem de moeda falsa, roubo a ourivesarias, violação e rapto, sequestro e tomada de reféns estão entre os crimes que mais desceram.
“Sou funcionária pública e a violência verbal é constante e diária. Já fui vítima e já vi muitas coisas. Nada justifica a agressão! Os funcionários públicos são sempre chacota para tudo e da fama não se livram por muito bom trabalho que façam… É até ao dia em que algo mesmo muito grave aconteça e que se dê um basta!”, desabafa Inês (nome fictício), assistente técnica num agrupamento de centros de saúde, contrariando a perspetiva transmitida pela OA e juntando-se a Catarina (nome fictício), que já teve o mesmo cargo.
“Há muito que os funcionários públicos são alvo de bullying e agressões verbais e físicas. Trabalhei num centro de saúde e é impressionante a forma como falam e interagem com o pessoal administrativo e os médicos. Houve situações em que tivemos de chamar segurança e polícia porque os utentes queriam bater nos médicos, entrar nos gabinetes sem autorização… Uma falta de civismo, falta de educação, falta de tudo… Liberdades a mais”, conta Catarina, adicionando que, estando do outro lado, isto é, sendo utente do Hospital Garcia de Orta, em Almada, assistiu “a lamentáveis situações e médicos a terem de levantar a voz e expulsar pacientes”.
(Ainda) existe ‘normalidade’? Na semana passada, Carla Kristensen foi ao Espaço Cidadão de Portimão e só havia duas pessoas na fila para além dela. “Foi tudo normal. Fiquei lá pouco tempo. A funcionária veio à porta perguntar ao que íamos, as pessoas que estavam na fila explicaram e, no meu caso, a funcionária disse que não podia ser ali e onde me devia dirigir. Tudo com muita educação e boa comunicação”, salienta.
“A questão aqui é mesmo a comunicação que às vezes falha, as pessoas exaltam-se e a maior parte das vezes sem qualquer pingo de razão. Não tenho queixa das Lojas ou Espaços Cidadão. Tenho só queixa da burocracia excessiva neste país e da falta de recursos humanos – claro que esta falta fez-se sentir ainda mais nestes quase dois anos”, esclarece, frisando que “a educação cívica e para a cidadania é extremamente necessária”.
“Não fui vítima, nem testemunhei. Nada justifica a violência seja por parte de quem procura um serviço ou muito menos por parte de quem o presta. Ser funcionário público é isso mesmo, estar a desempenhar um serviço público, ter consciência de que o seu salário é pago com os impostos de todos. Se fizer o melhor será em prol de si e de todos. Ser funcionário público não é ser político. Infelizmente, a caracterização de funcionário público que fiz é uma ‘exceção’, quando devia ser a regra”, lamenta Márcia Pinheiro que, simultaneamente, realça que “não podemos esquecer que, durante quase um ano e meio, este país esteve com a economia ‘parada’ e com os ‘funcionários públicos’ na linha da frente: médicos, enfermeiros, assistentes, voluntários, professores, serviços públicos com atendimento online. O país não parou graças à exceção”, afirma a mulher que se sente agradecida pelo trabalho contínuo desta classe.
“Quem sabe se o que aconteceu nessas Lojas do Cidadão, em termos de agressões, não se deveu ao facto de os funcionários terem a agenda sobrecarregada até setembro, tal como informaram antes da abertura presencial das lojas?”, questiona, sendo que se alinha com a informação que foi dada a conhecer há alguns dias.
Por exemplo, na manhã de 1 de setembro, as senhas de atendimento esgotaram em vários serviços públicos de Lisboa e do Porto. De acordo com a RTP, na Loja do Cidadão das Laranjeiras, na capital, foram criadas duas filas: de um lado, estavam os cidadãos que fizeram agendamento prévio e, do outro, aqueles que apareciam de forma espontânea. Contudo, no período da manhã, esgotaram as senhas da Segurança Social e dos serviços de emissão de passaporte e cartão do cidadão para quem não havia procedido ao agendamento prévio. Uma semana antes, a Plataforma Sindical dos Registos havia alertado para o “cenário terceiro mundista” que as pessoas sem agendamento enfrentam nas conservatórias e lojas do Cidadão, na esperança de serem atendidas.