O juiz de cima e os juízes de baixo


O problema do encartado e de todos os encartados do género é julgarem-se “acima”, por uma predestinação própria.


Anda à solta, desvairado e desbocado, um encartado de juiz que presume uma superioridade própria sobre os restantes cidadãos e beneficia de uma morosa impunidade na cominação de sanção para o evidente desvio, permitindo-lhe espetáculos físicos e digitais deploráveis. O espécime é uma expressão maior do que a que a humanidade pode estar sujeita, mas o que importa é a nossa incapacidade coletiva para lidar com as derivas, os desvios e a insanidade consciente, em tempo útil, até para tratamento psiquiátrico e eventual posterior reintegração no meio social.

O problema é que a verbalização do encartado de magistrado, “Ponha-se no seu lugar. Eu é que sou a autoridade judiciária aqui. O senhor está abaixo de mim”, não é um exclusivo, estando antes presente em diferentes graus na organização do Estado e nas interações sociais. Ela está presente na relação do fisco com os contribuintes, na interação entre outros serviços públicos e os cidadãos e em alguns posicionamentos sociais de esferas de liberdades de pessoas que se julgam acima de todos os outros, descurando os mínimos de respeito pelas esferas de liberdades dos restantes.

Há muito que o encartado de magistrado deveria estar em situação que o impedisse de invocar o estatuto, por estar despojado dos mínimos para o exercício das funções em que os cidadãos o investiram para administrar a justiça em seu nome. O encartado está investido de um mandato do povo, de uma comunidade de destinos comuns, e não tem consciência disso, julgando-se um predestinado para o exercício de um quadro mental justicialista e de ajustes de contas à margem da lei vigente. É claro que os juízes gozam de uma proteção especial à luz da Constituição e que a classe é muito corporativa, mas não perceberem que o encartado em causa está a contaminar a perceção social da função e a contribuir para a degradação ainda maior da justiça, sendo urgente uma ação consequente, no respeito pelas garantias existentes, é bem sintomático.

É tão grave a incapacidade de agir em tempo útil para a contenção dos danos e do alarme social como a dúvida que se abate sobre o exercício de funções do encartado em causa e de outros encartados que exercitam uma suposta autoridade de posicionamento numa alegada escala social para se afastarem dos factos e da lei no exercício das funções para que foram mandatados pela Constituição e pelo povo.

Mas também é grave que, mesmo existindo separação de poderes entre a justiça e os poderes executivo e legislativo, não tivesse havido uma palavrinha em defesa dos agentes da Unidade Especial de Polícia da PSP que estavam em funções investidos pelo Estado e foram ofendidos pelo encartado de juiz de cima. Só se manifestaram os sindicatos e a questão está longe de ser sindical. É do domínio da estruturação do Estado e do seu funcionamento, devendo este ser assertivo na defesa de quem desempenha funções em seu nome, tal como é suposto ser no sancionamento de eventuais desvios que possam ocorrer. Agora, haver um desvio grave, um ataque ao exercício de funções do Estado e ninguém dizer nada, só contribui para a desmotivação dos agentes e alimenta os populismos presentes na sociedade portuguesa. É disto que se faz o Chega.

O juiz de cima, destravado no pensamento, na linguagem e nas ações, não pode continuar encartado. Num país em que os juízes de baixo, o povo, fossem mais exigentes com a organização do estado e o funcionamento da sociedade, o clamor já tinha imposto a cessação da vigência do mandato do espécime para a administração da justiça, mas por cá não. Enquanto for com outros, lá longe, na televisão, com os do governo, folgam as costas. “Ele até diz umas verdades à moda da conversa do taxista, do café, das redes sociais ou dos comentários online dos jornais.”.

O problema do encartado e de todos os encartados do género é julgarem-se “acima”, por uma predestinação própria, não emanada dos pressupostos da organização das comunidades, da observância de regras comuns e da existência de métodos de avaliação e escrutínio do exercício dos mandatos. São impunes, julgam-se acima dos cidadãos e das leis em vigor. Uma vez mais ressalta o quadro de desfasamentos dos nossos tempos. Há um tempo real que está desfasado do tempo das decisões, da capacidade de agir. Vimos isso em tempo corrente, das dinâmicas normais da sociedade, mas também em situações de emergência como o da pandemia ou nestes desvios comportamentais como o do juiz de cima.

Portugal tem demasiados juízes de cima e um insuficiente exercício dos juízes de baixo, enquanto assim for nem os quadros mentais dos que se julgam acima mudam nem o funcionamento da sociedade é alterada. Continuaremos alegremente, como comunidade, a ser tratados pelo fisco como pré-criminosos, pelo sistema judicial como arguidos a expor na praça pública e pelos poderes como subservientes. É um caminho. Trágico, mas um caminho, com os de cima e os de baixo. Só há juízes de cima e outros que tais porque os juízes de baixo, o povo, deixa.

NOTA FINAL

JORGE SAMPAIO. A República vai perdendo referências e tarda a emergência de novas, perante sinais preocupantes em diversas áreas das nossas realidades. Jorge Sampaio era uma referência de humanismo, que se deixava tocar e tocava os outros, pela sua ação, como fez com os presos políticos do fascismo, nas lutas estudantis contra a ditadura, na Câmara de Lisboa, na Presidência da República, com Timor-Leste, com a Tuberculose ou com os estudantes sírios, resgatados da guerra para novos futuros. Não é fácil tocar positivamente as pessoas e as realidades, Jorge Sampaio conseguiu deixar vários mundos melhores do que os tinha encontrado. Recordo a primeira campanha eleitoral à séria em que participei, em 1991, com o Paulo Alexandre Silva Pereira era um dos responsáveis da organização da Juventude Socialista, sob a liderança do António José Seguro, em que percorremos o país num desafio eleitoral difícil contra Cavaco Silva, sem recursos, sem mobilização e com muitas adversidades. Acrescia ainda uma tensão interna no PS pré contenda Sampaio/Guterres, que não impediu uma participação importante dos jovens socialistas com as suas camisolas e bandeiras amarelas, os suspensórios vermelhos e outras singularidades, ao lado do candidato, onde outros falharam. Eram tempos diferentes como o foram depois, com outro nível de reconhecimento eleitoral, em Lisboa e no país. Humanismo, tolerância e capacidade para ver em redor, plasmados desde o “25 de Abril, sempre” à “há mais vida além do orçamento” ou à “não há portugueses dispensáveis”. Tanto que os de cima precisavam de aprender. Até sempre, Presidente Jorge Sampaio!

Escreve à segunda-feira