Há uma certa retórica em torno do livro e do literário que nos deve colocar de sobreaviso – Alberto Manguel é, actualmente, um dos mais conhecidos nomes deste discurso que está constantemente a declarar o seu amor pelo livro e pela cultura livresca. E deve colocar-nos de sobreaviso por diversas razões. A primeiro é, digamos assim, estética: as relações ambivalentes são sempre mais interessantes que o terreno plano e enfadonho da adoração e do amor incondicional – que tantas vezes descamba numa retórica vazia, enfatuada e cheia de si, graças à infinita bondade que coloca no seu objecto e, por consequência, em si mesma. A segunda é vagamente ideológica e alguém apostado no retorno de uma retórica mais politizada diria que se trata, aqui, da antiga e bastante comentada “má-consciência burguesa”: não é difícil encontrar estas declarações de amor ao livro e à cultura livresca em lugares em que esse amor tem sempre de ser traduzido numericamente – seria interessante que alguém prestasse atenção ao discurso público de certos agentes culturais, como agora se diz, para ver uma incessante negociação entre retóricas aparentemente antagónicas; basta, aliás, um rápido passeio pela feira do livro de Lisboa para encontrar, lado a lado, o grande templo da Literatura (com maiúscula) e o centro comercial e facilmente se percebe que a função da primeira é, tantas vezes, maquilhar com cores civilizacionais o segundo, que é feio e deve permanecer escondido sob uma camada de boas intenções. A segunda razão, portanto, é facilmente formulável: todas estas retóricas que colocam o livro como um dos últimos redutos de resistência – resistência não se sabe bem a quê, havendo sempre uma confusão de razões mais ou menos conservadoras, mais ou menos progressistas – são facilmente conjugáveis com aquilo mesmo que tantas vezes dizem combater.
A terceira razão, por sua vez, tem que ver com aquilo que se pode chamar de lógica do moribundo. Não é raro esta retórica do amor aos livros vir acompanhada de um tom em forma de lamento por um objecto que desapareceu ou está em vias de desaparecer – seja o livro, a cultura livresca, cada vez mais ameaçada por tudo e mais alguma coisa, seja a capacidade de leitura e interpretação, cada vez piores. Na realidade, havendo algum interesse neste tipo de retórica ele reside neste morto por vir que o discurso está constantemente a criar, nesta morte sempre presente e sempre adiada onde o tom lamentoso vai buscar o seu vigor de moribundo mas, igualmente, toda a sua insuficiência. É a estranha perseverança do homo literatus, que se lamenta perpetuamente desde o Renascimento sem nunca morrer totalmente. Nietzsche conhecia-os bem: “o verme pisado contorce-se. É assim que é sábio. Diminui desse modo a probabilidade de ser novamente pisado.”
Ao lado desta retórica encontramos outra. O amor não é o mesmo, bem pelo contrário, é, ciumento, excessivo, chamando a si a vida – quer ser, digamos assim, o amante ciumento e nunca o marido respeitável. E já que o livro de Nietzsche se encontra aberto, posso recorrer uma vez mais ao nosso mais intempestivo pensador: “andei à procura de grandes homens e encontrei sempre apenas os macacos do seu próprio ideal”. É a fala do desiludido, mas de um desiludido cuja vontade compara interminavelmente as coisas com o seu ideal – é aí que reside o seu excesso, a sua forma de justiça destemperada. Para o desiludido, a Literatura (com maiúscula) será sempre o Exterior Absoluto e a literatura (sem maiúscula), por comparação, é sempre um macaco, uma imitação que negoceia demasiado com o seu próprio tempo e que deve, por isso, ser rasurada.
Ao lado destas duas, no entanto, encontramos um outro tipo de tradição e é esta que penso encontrar num pequeno livro de André Gide, Paludes, traduzido por Aníbal Fernandes e editado pela Sistema Solar. O silêncio à volta da colecção dirigida por Aníbal Fernandes – com edições cuidadas e as excelentes traduções de Aníbal – terá de ser um dia explicado. Talvez se deva, em parte, ao facto de os títulos escaparem a três condições que conferem visibilidade: o grande nome (edita nomes consagrados, sem dúvida, mas muitas vezes títulos aparentemente menores), a curiosidade e a novidade – a novidade é muitas vezes uma retórica do diferente, da monstruosidade, da mistura de géneros, que faz as delícias de um certo jornalismo cultural.
André Gide não está esquecido, é um morto venerável, com assento nos grandes nomes da literatura francesa do século XX, mas parece ter-se eclipsado – Paul de Man, conhecido teórico, escrevia em 1965 um pequeno artigo cujo título era: Whatever happened to André Gide?. Em Portugal, depois do desaparecimento da Âmbar, que editou alguns dos seus títulos mais conhecidos, os livros de Gide saíram de circulação para, aparentemente, nunca mais voltarem. Para quem veja neste desaparecimento uma qualquer tragédia epocal é sempre possível dizer-se: Bach esteve desaparecido durante um século (ninguém sentiu a falta dele, aparentemente) e Gide, que conseguiu colocar contra ele metade dos franceses, actualmente já não nos dirá grande coisa – já ninguém, felizmente, sente necessidade de travar o combate com a religião como ele travou e a homossexualidade já não é, em literatura, lugar de grandes combates existenciais. Gide teve o seu papel, um papel bastante importante dentro das letras francesas, foi errático em termos políticos (é conhecido o seu texto de louvor à União Soviética e, posteriormente, o seu recuo) e conseguiu um feito notável: nem quando morre se tornou consensual. Que, poucos anos depois da sua morte (morre em 1951), Paul de Man possa colocar a pergunta que colocou, deve-se, talvez, a um facto bastante comum: há obras que não ressoam com determinadas épocas, com determinadas mudanças (perdem pregnância), e há outras em que é a própria figura que se destaca, o que significa que o desaparecimento desta sela, de certa forma, a própria obra (foi o que aconteceu, em parte, com um outro nome maior da cultura francesa, Jean-Paul Sartre).
Paludes, no entanto, é outra coisa. É, também, uma crítica, não muito simpática, ao meio literário francês, com os seus macacos – para citar de novo Nietzsche –, os seus trejeitos, as pequenas manias, as figuras mais ou menos interessantes, os diálogos pomposos, as afectações, a “vácua monotonia dos salões parisienses do final do século XIX” (Gide, no entanto, não faz um retrato, uma descrição realista, nem o pretende fazer). “Oh! Estes literatos! Estes literatos, Angèle! Todos insuportáveis!” Encontramos a personagem principal do pequeno livro de Gide a escrever um romance intitulado “Paludes” – Gide vai fornecendo pequenas passagens desse romance onde nada se passa.
“– Receio que a tua história seja um pouco aborrecida – disse a Angèle. Houve um dilatado silêncio – e depois exclamei, muito emocionado.
– Angèle, Angèle, peço-te que me digas quando vais compreender qual é o tema de um livro… O que pretendo descrever é a emoção que a minha vida me causou: tédio, vaidade, monotonia… a mim tanto me faz, porque escrevo Paludes… mas a vida de Tityre não existe; e garanto-te, Angèle, que as nossas vidas ainda são muito mais baças e medíocres”
É, como refere Aníbal Fernandes no prefácio, “uma reiterada impossibilidade de concretização” – “Paludes”, o romance dentro de Paludes, não é terminado, a curta viagem que pretende fazer com Angèle é um fracasso. E enquanto impossibilidade de concretização, Paludes pode facilmente inserir-se num conjunto de outras obras – Carta de Lord Chandos ou, num dos seus exemplos mais conhecidos, Bartleby – que cruzam um juízo epocal com uma certa impossibilidade interior à própria literatura. É este juízo epocal que também comparece em Paludes:
“Paludes – comecei a dizer – é a história do terreno neutro que a todos pertence… ou melhor: do homem normal, aquele com que todos começamos… a história da terceira pessoa, aquela de quem se fala… que vive em todos nós e não morre connosco… No Virgílio chama-se Títiro… é-nos expressamente dito que está deitado – Tityre recubans… Paludes é a história do homem deitado”
Mas não se trata apenas deste salutar nojo existencial pelo meio literário e do taedium vitae cujas repercussões políticas já dentro do século XX foram bastante ambíguas – “paludes”, começa por nos avisar Aníbal Fernandes, é “uma palavra que, nas línguas francesa e também portuguesa, designou em tempos passados – e nunca com muita popularidade – aquilo a que hoje chamamos vulgarmente «pântano»”. Se fosse apenas isso seria um curioso documento, mas nada mais do que isso: o taedium vitae há muito que desapareceu do horizonte (ninguém tem tempo ou paciência para isso) e o meio literário, que em Portugal, a existir, é um conjunto vazio ao qual ninguém quer pertencer, já não deslumbra ao ponto de ser alvo de grandes ataques – curiosamente, os poucos ataques que, volta e meia, ainda surgem nunca chegam de escritores, grande parte deles em busca da famosa “deusa-cadela” de D.H. Lawrence.
Paludes é, também, uma outra coisa, uma fuga, uma evasão, mesmo que esta nunca se venha a concretizar – uma fuga, uma evasão, à própria literatura, porque esta não existe sem o literário. Há aqui, claro, uma contradição: renunciar a tudo isso, aos textos, à escrita, aos livros, a tudo quanto acompanha a literatura, tentar evadir-se desta, fugir pura e simplesmente, mas dar disso notícia. Mas não é isso, também, a escrita, esse prazer em ser contraditório de todas as formas possíveis? E aqui está, com Gide, uma forma de levar uma certa ambivalência – que não convém confundir com o ódio ao literário – ao limite.