Jorge Sampaio: Democrata e humanista

Jorge Sampaio: Democrata e humanista


A oito dias de completar 82 anos, o adeus a Sampaio – político completo e homem de causas, criador do lema ‘25 de abril, sempre!’ . Um dia antes de ser internado, anunciou o reforço de emergência de bolsas de estudo para jovens afegãs, mantendo-se fiel aos seus princípios até ao fim.


Em pequeno, «fazia imitações de tribunais, alegações» e «tinha muito jeito para imitar». Tal não é de estranhar, pois fez estudos musicais e, nos primeiros anos de vida, a atriz Mariana Rey Monteiro foi sua professora no Queen Elizabeth’s Kindergarten & Junior School, em São Bento. Poderia ter sido fotógrafo, pianista ou cantor, mas, como é comum, os sonhos de criança reinventam-se e, depois de passar pelos liceus lisboetas Pedro Nunes e Passos Manuel, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

«Estou convencido de que gostou muito quando o meu irmão foi para Medicina. Comigo? Talvez tivesse gostado [que eu tivesse ido para Medicina]. Achava que eu ia ser juiz, advogado», respondeu em 2010 numa entrevista Público, questionado sobre o rumo profissional que o pai gostaria que tivesse seguido.

«Vamos lá ver: alguns dos meus críticos, ou alguns dos meus amigos mais fundos, dizem que eu era muito correctozinho. Onde eu ganhei asas foi como membro da associação de estudantes», explicou, referindo-se aos tempos em que desempenhou os cargos de Presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito (AAFDL) e Secretário-Geral da Reunião Inter Associações Académicas, tanto que o seu nome consta na lista de colaboradores da publicação académica Quadrante (1958-1962) – que, na sua génese, combatia a reduzida imprensa académica portuguesa dos anos 50 e 60 do séc. XX, publicada pela AAFDL.

 

A participação cívica e política

Filho do médico Arnaldo Sampaio e de Fernanda Bensaúde Branco – que, por sua vez, era filha de Fernando Branco, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Marinha da Ditadura Nacional (1928-1933), e de Sara Bensliman Bensaúde, sobrinha-neta do empresário da indústria tabaqueira José Bensaúde, de ascendência judaica – e irmão do psiquiatra e professor universitário jubilado Daniel Sampaio, mais novo sete anos, disse sempre que a política tinha começado na família.

«Os meus pais eram altamente participativos. A minha mãe, diria que era uma sufragista, uma democrata profunda, educada nos valores ingleses (o rigor das contas, trabalho, ser to the point, espartana). O meu pai era mais liberal, muito carismático», contou na mesma entrevista.

Manteve uma fervorosa intervenção nos movimentos políticos que antecederam o 25 de abril de 1974. Foi um dos protagonistas da crise académica do princípio dos anos 60, um tempo descrito pelo professsor Octávio Quintela, que viveu este período, como tendo tido início durante a Guerra Colonial, quando, «para ter milicianos à disposição, era indispensável controlar o meio universitário, pondo termo a veleidades autonomistas das Associações de Estudantes».

Em Algumas considerações a propósito da crise académica de 1962, o autor evidencia Jorge Sampaio como um dos rostos da luta em Direito, juntamente com Vítor Wengorvius, Correia de Campos, J. Felismino, Macaísta Malheiros e Pedro Ramos de Almeida. Contudo, foi com João Cravinho – antigo deputado e ministro socialista, pai do ministro da Defesa Nacional João Gomes Cravinho – que o jovem criou o MAR – Movimento de Ação Revolucionário, de esquerda radical, que chegou a contar com a participação de Vasco Pulido Valente.

E foi exatamente nessa janela temporal que iniciou uma colaboração com as revistas de oposição Seara Nova e O Tempo e o Modo, aproximando-se de nomes como António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, podendo ser associado tanto aos católicos progressistas como à esquerda republicana oposicionista.

Na sequência da greve às aulas foi detido durante três dias na prisão de Caxias, em 1962, e acabou por ser expulso da Faculdade de Direito, com o argumento de que já não era estudante. Nesse mesmo ano, no mês de julho, a PIDE visitou a casa de Sampaio, em Sintra, e apreendeu-lhe alguns livros assim como documentos pessoais. Volvidos dois meses, o jovem foi chamado para interrogatório.

Esta sua intervenção política intensa deu-se quando já exercia advocacia, tendo iniciado o percurso profissional em 1961, e tendo ficado conhecido pela defesa de presos políticos – entre eles, um dos arguidos do Golpe de Beja, por convite de Mário Soares – no Tribunal Plenário, desempenhando igualmente funções diretivas na Ordem dos Advogados.

 

A onda democrata

Porém, em 1969, candidatou-se, nas eleições legislativas, à Assembleia Nacional, integrando as listas da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), que em Lisboa se opunha à Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD) – liderada por Soares e com incorporação da Comissão Eleitoral Monárquica. A_CDE criticava profundamente a Guerra Colonial e o próprio colonialismo, defendendo que a negociação com os movimentos independentistas africanos seria o caminho para alcançar a paz.

Em criança, integrou a Mocidade Portuguesa. «Lembro-me de desfilar, fardado e muito ordenado. Eram momentos que me enchiam de uma felicidade infantil», lembrou numa entrevista ao Diário de Notícias. Em oposição a este pensamento, na conversa que teve com Anabela Mota Ribeiro, pareceu transmitir lembranças menos positivas. «Um exemplo que explica a diferença: tínhamos de fazer a Mocidade Portuguesa e desfilar. Cada vez que me lembro disso… é um frio que me passa pela espinha. O desfile dos alunos do Pedro Nunes era muito organizado, respeitador dos bons costumes; no Passos Manuel, era uma bandalheira generalizada; descíamos a Rua do Ouro sem prestar a menor atenção às filas».

Sampaio passou pelos EUA, em primeira instância, devido à profissão do pai – quando completou oito anos, viajou para Baltimore, com a família, já que Arnaldo Sampaio recebera uma bolsa para estudar saúde pública na Universidade Johns Hopkins. Mais tarde, seria a sua vez: conseguiu uma bolsa de Foreign Leader Program, com a duração de quatro meses, tempo em que assistiu  aos discursos dos democratas Edward Kennedy e Robert Kennedy, no Senado, em Washington. Curiosamente, em 1952, a algumas semanas de completar 13 anos, passou férias com os pais em Londres, onde o pai fez investigação científica, e a mãe leva-o ao parlamento britânico, assistindo a um debate na Câmara dos Comuns, observando Winston Churchill e Clement Attlee, dirigente dos trabalhistas.

 

Período pré-revolução e os ventos de liberdade

Em 1967, aos 28 anos, casou com Karin Schmidt Dias, uma estudante de Medicina que se tornou pioneira da Neuropediatria na região sul de Portugal. Um ano depois, em agosto, deslocando-se a Paris, conheceu Álvaro Cunhal, o líder dos comunistas que defendia a invasão soviética da Checoslováquia e, por esse motivo, o entendimento entre ambos não existiu, apesar de Sampaio ser tão fluente em Inglês como Cunhal era em Francês. Herança da mãe: «Até morrer, falávamos metade em português, metade em inglês. Por vício. As pessoas não entendiam que falasse em inglês com a minha mãe, achavam que era uma peneirice… Não era. A minha mãe escrevia muito bem cartas e escreveu sempre metade em português, metade em inglês. Tinha um invulgar jeito para línguas», lembrou na entrevista a Anabela Mota Ribeiro publicada no Público em 2010.

Depois do 25 de abril – foi o autor do lema «25 de abril, sempre!» –, fundou o Movimento de Esquerda Socialista (MES), abandonando-o durante o primeiro congresso por discordar com a orientação ideológica delineada no decorrer do evento. Em 28 de setembro de 1974, impediu a chegada da população à manifestação de apoio ao general António de Spínola, que ficaria conhecida como a manifestação da maioria silenciosa. Em abril, divorciado de Karin há três anos, casou com Maria José Ritta, sendo pai de Vera Ritta de Sampaio, nascida em 1977, e André Ritta de Sampaio, nascido em 1981.

A seguir ao golpe de 25 de novembro, fundou a Intervenção Socialista (IS), sonhando com a união de todas as esquerdas e defendendo a existência de uma terceira via, uma alternativa ao PS e ao PCP. Em 1978, a IS aderiu ao PS e Sampaio tornou-se militante do Partido Socialista, com o número 102.279, sendo eleito pela primeira vez deputado do PS no ano seguinte.

Em 1986, já liderava o grupo parlamentar do PS e, a 18 de novembro de 1988, candidatou-se a secretário-geral, tendo sido eleito deputado nas eleições de 1980, 1985 e 1987, cargo que voltaria a desempenhar em 1991, quando já era presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML). Mas já lá vamos, pois nesta época, foi o primeiro português a integrar a Comissão Europeia dos Direitos do Homem, no Conselho da Europa.

A 16 de janeiro de 1989, foi eleito secretário-geral do PS, derrotando Jaime Gama e liderou o PS até 1992, altura em que António Guterres conquistou o partido. Em dezembro desse mesmo ano, obteve 49,1% dos votos na corrida à CML, contra os 42,1% de Marcelo Rebelo de Sousa, candidato do PSD-CDS-PPM.

Entre alguns momentos menos felizes – em outubro de 1991, concorreu às eleições legislativas, mas perdeu para Cavaco Silva e, em 1992, o partido escolheu António Guterres como secretário-geral –, é lembrado, como autarca, pela definição da conclusão do Plano Estratégico e do Plano Diretor Municipal (PDM) e do Plano Especial de Realojamento (PER) como prioridade, sendo também anfitrião de Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura, tomando as rédeas da reconversão urbana da zona oriental da capital.

Aos 56 anos, em janeiro de 1996, foi eleito Presidente da República à primeira volta contra Aníbal Cavaco Silva e, pela primeira vez na história da democracia em Portugal, Governo e Presidente da República são do mesmo partido. O seu primeiro mandato ficou marcado por acontecimentos em que foi pioneiro como a convocação de referendos sobre a interrupção voluntária da gravidez e acerca da regionalização, em 1998, vendo-se a braços, no ano seguinte, com os massacres originados pelo referendo em Timor-Leste, tentando fomentar a paz no país.

Após 442 anos de história, Jorge Sampaio foi o Presidente da República que concretizou a transferência de Macau para a China, sendo confrontado, dois meses após a sua reeleição, com a queda da ponte de Entre-os-Rios, em março de 2001.

Não desistindo de fazer política mesmo após momentos tensos como a dissolução da Assembleia da República, saiu do Palácio de Belém, entregando a pasta a Aníbal Cavaco Silva.

Os últimos anos da vida de Sampaio viriam a ser marcados pela publicação de uma biografia oficial, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira, e pela fundação da Plataforma Global de Assistência Médica de Emergência a Estudantes Sírios no prosseguimento de estudos superiores, por meio da atribuição de bolsas, bem como pela conquista de galardões como o primeiro Prémio Nelson Mandela das Nações Unidas, em julho de 2015.

No passado dia 27 de agosto, foi internado com dificuldades respiratórias, perdendo a vida a oito dias de completar 82 anos. Um dia antes do internamento, anunciou, num artigo no Público, a vontade de preparar um reforço do programa de emergência de bolsas de estudos e oportunidades académicas para jovens afegãs, frisando que não se pode responder às crises humanitárias «ao sabor de modas e ignorá-las por razões de cansaço, enfado ou indiferença».