Vinte anos de Guerra ao Terror. E agora?

Vinte anos de Guerra ao Terror. E agora?


Com o fim da era de grandes invasões, a América quer projetar poder com drones e forças especiais. Mas “se for instigada uma nova Guerra Fria, a guerra convencional pode regressar”, diz Samuel Moyn, ao i.


O poder americano, com a retirada do Afeganistão, vinte anos depois do 11 de Setembro, parece mais frágil que nunca. A era das grandes intervenções militares, desfazendo e refazendo países, com tropas no chão, acabou, prometeu o Presidente Joe Biden, mas o Pentágono ainda sabe projetar poder. Os céus continuam a pertencer à América, que ao longo da última década usou e abusou de ataques de drones, combinados com pequenas equipas de forças especiais – só os ataques de drones mataram pelo menos 22 mil civis, segundo os dados oficiais, compilados pelo Air Wars, podendo o número real chegar aos 48 mil.

Vivemos uma Guerra ao Terror mais silenciosa e menos custosa em vidas americanas, apresentada como quase limpa, nota Samuel Moyn, historiador e professor na Universidade de Yale, no seu livro Humane: How the United States Abandoned Peace and Reinvented War, lançado esta semana.

“De todos os povos nos anais da guerra, os americanos foram aqueles que inventaram uma forma de guerra conduzida como sendo superior por ser mais humana, e mais tolerada pelas audiências por essa mesma razão”, escreveu o autor no seu livro. “Também foram os americanos que revelaram – contrariamente a toda a literatura desde Homero – que o rosto mais elementar da guerra não é a morte. Em vez disso, é o controlo por dominação e vigilância, com a mortalidade e até a violência editada”.

Contudo, se esse é o presente que vivemos, pode não ser o futuro, alertou Moyn ao i. “É imprevisível. Neste momento, o contraterrorismo americano, enquanto grande potência, continua. Se for instigada uma nova Guerra Fria, a guerra convencional pode regressar”, considera. “É uma pergunta em aberto, se as normas daquilo a que chamo guerra ‘humana’ podem sobreviver a uma guerra entre grandes potências. Os registos históricos sugerem que não”.  
 
Tragédia

Importa perceber como chegámos aqui. Desde que as Torres Gémeas tombaram, levando consigo quase três mil pessoas, num inferno até então inimaginável, a cruzada lançada por George W. Bush, continuada por todos os Presidentes americanos e os seus aliados até hoje, mudou o mundo. Não para melhor, argumentam muitos, com mais de 900 mil mortos no conflito ao longo das últimas duas décadas, estimou um estudo recente da Brown University, e um custo inacreditável de uns 8 biliões de dólares, quase 7 biliões de euros. Para ter noção da escala, pense que se trata do equivalente a cerca de 40 vezes o PIB português. Depois lembre-se que ainda falta contabilizar os gastos dos restantes países da NATO, mais dos restantes aliados dos EUA pelo globo fora.

Agora, pondere nas ramificações dessa Guerra ao Terror. Em como a missão para atingir a Al Qaeda, responsável pelo 11 de Setembro, virou uma tentativa falhada de reconstrução do Afeganistão, a cujos efeitos assistimos, com os talibãs a tomarem o país, ainda mais fortes do que eram. Ou na trágica invasão do Iraque, baseada na mentira de que Saddam Hussein teria armas de destruição em massa, terminando com um Governo instável, corrupto, dominado por brutais milícias xiitas e sob influência do Irão.

Recorde como o Estado Islâmico nasceu dessa intervenção, em campos de prisioneiros americanos que eram como uma caixa de petri de jiadistas, devastou o Iraque e a Síria, a partir de 2014, lançando uma onda de terror em Paris, Bruxelas, Barcelona, Istambul, Tripoli, Orlando, Beirute – a lista é demasiado longa para enumerar.

Logo a seguir, essa ameaça metastizou com a queda do califado, em 2019, focando-se em Estados frágeis como Moçambique, Nigéria, Níger, Mali, Chade ou Burkina Faso, agravando disputas locais. Isto por entre uma crise de refugiados sem precedentes, com o Médio Oriente instável, Síria e Líbia a arder, sendo essa maré de gente recebida com um crescendo da xenofobia, alimentada pelo discurso securitário da guerra ao terror.

Debaixo desse conflito estava o resto do iceberg, as detenções ilegais, os prisioneiros arrastados para Guantânamo pela calada da noite, de saco na cabeça e sem processo judicial, a tortura, os ataques de drones em países soberanos, a erosão da lei internacional. Mas esta guerra também é travada em casa, com a massificação da vigilância, o fim da privacidade, denunciado por Edward Snowden e a Wikileaks.

Tudo isto num cenário em que a teoria do “choque de civilizações”, entre o ocidente e o islão, popularizada por Samuel Huntington, anos antes do 11 de Setembro, virou profecia autocumprida. “Ao definir a batalha em termos tão grandiosos, aceitámos a mesma narrativa que os jiadistas, que isto era uma guerra pela civilização, pela própria alma da humanidade”, lamentou Omer Aziz, investigador do Yale Information Society Project, na New York Magazine. “Os termos do debate foram impostos pelos extremistas islâmicos de um lado, e neoconservadores ocidentais do outro. Pessoas como eu deram por si apanhadas no meio”.

“Bin Laden ganhou”, sumarizou Aziz. “Osama Bin Laden queria acabar com o reinado de um Ocidente decadente, infligir um golpe devastador na democracia americana, envolver cada muçulmano no conflito”, salientou. “Bin Laden pode estar morto, mas não é difícil concluir que conseguiu o que queria”.

Guerra para lá do horizonte

Dois meses depois do 11 de Setembro, uma América traumatizada, dolorosamente consciente do monte de escombros e morte que assombrava Lower Manhattan, assistindo avidamente à invasão do Afeganistão, recebeu a estreia de 24. Nesta série televisiva, que teria nove temporadas e mais de 200 episódios, sem contar com sequelas, Jack Bauer, agente de contraterrorismo da Califórnia, encarnado pelo ator Kiefer Sutherland, literalmente corria contra o tempo, com menos de uma hora para salvar o mundo de terroristas da Al Qaeda, ou vilões do género. E Bauer não hesitava em sujar as mãos, enquanto a América torcia por ele, unida, assustada, desejosa de vingança, colada ao sofá.

Era um reflexo do seu tempo, em que o inimigo já não eram soviéticos ou chineses. “24 tem um instinto sinistro quanto às ansiedades dos cidadãos do império americano moderno, e do ocidente em geral”, escreveu um jornalista do Guardian, em 2004, admitindo que ele próprio era viciado na adrenalina da série. Afinal, na primeira temporada, um avião comercial explodiu, cheio de gente; na segunda, o risco eram armas nucleares nas mãos de jiadistas, numa espécie de eco das supostas armas de destruição em massa iraquianas, inventadas pela Administração Bush.

“É fácil rir dos bigodes tolos, dos sotaques manhosos e da fraca caracterização dos vilões, da maneira que nos apercebemos dos clichés da trama, como a necessidade da enfadonha filha de Jack Bauer ser raptada regularmente”, continuou o Guardian. “Mas a Guerra ao Terror não é uma piada, e 24 é uma propaganda viciante”.

Como aconteceu com a 24, a repetição desgasta. À medida que a raiva com o 11 de Setembro foi sarando, dentro do possível, após anos e anos de ver tragédias na televisão, de uma guerra sem fim e sem resultados no Iraque, Afeganistão ou através da fronteira do Paquistão, a Guerra ao Terror foi cansando, deixando o público americano sem vontade de sacrificar os seus, longe de casa.

Os escândalos foram-se sucedendo, expondo à luz do dia as atrocidades cometidas em nome do contraterrorismo. A sucessão de fotos da prisão de Abu Ghraib, de corpos nus pendurados, de iraquianos algemados com o rosto tapado pelas cuecas, as imagens de cadáveres profanados por soldados entusiasmados, os relatos de ataques com cães – desprezados na cultura árabe – e de violações sistemáticas, revelados em 2003, eram mais horríveis do que qualquer propagandista jiadista poderia imaginar. O massacre da Praça Nisour, em 2007, quando funcionários da Blackwater abriram fogo de metralhadora pesada, sniper e lança-granadas sobre o trânsito caótico de Bagdade, matando pelo menos 14 civis, incluindo duas crianças, mostrou quão pouco escrutínio existia sobre o uso de mercenários, tanto no Iraque, como no Afeganistão ou noutros teatros.

Se o uso de mercenários, cujas mortes não são contabilizadas oficialmente, ajudava a mascarar o custo humano da guerra, pelo menos em vidas americanas, era preciso algo diferente para sustentar conflitos cada vez mais impopulares. A tecnologia veio ajudar: a Administração Bush já tinha usado drones, mas foi com Barack Obama que a prática disparou.

“Foi sobretudo porque Obama queria encontrar um compromisso entre os seus conselheiros militares e das secretas, exigindo ação, e a sua consciência da impopularidade da guerra”, explica Samuel Moyn. “O uso de drones e forças especiais permitia-lhe agradar a ambos os lados”.

Daí que a prática se tenha mantido, mesmo quando a guerra no Afeganistão mostrava que não era assim tão eficaz. Sim, a liderança talibã foi devastada por drones, obrigada a esconder-se, andar disfarçada, a não dormir duas noites no mesmo sítio. Ao mesmo tempo, o baixo padrão americano quanto a vítimas civis, chegando a bombardear casamentos e funerais porque talibãs estavam presentes, deixou aldeias inteiras de luto, criando uma geração com medo de olhar para o céu. E permitindo aos talibãs recrutar mais rápido do que os americanos os conseguiam matar.

“As pessoas tinham muito medo dos drones”, menciona Jelena Bjelica, investigadora da Afghanistan Analysts Network, recordando os anos que passou no país, ao i. “Parte do motivo porque os talibãs foram tão bem sucedidos no Afeganistão rural foi porque, nas aéreas que tradicionalmente apoiavam os talibãs, o receio das pessoas não eram eles, era serem atacados pelos drones”.